domingo, 13 de agosto de 2017

Capítulo 13 - O Mistério do Viúvo Maldonha


Minutos depois de a filha ter ido para o quarto, Pedro desligou a tevê e também subiu. Deitou-se e deixou, como de costume, o abajur ligado. Pôs atrás da cabeça as mãos entrelaçadas pelos dedos e ficou olhando para o teto, pensativo. Sentia que algo lhe faltava, mas não sabia bem o quê. Lembrou-se da Bíblia, porém não queria admitir o fato de que era algo relacionado a ela que o deixava com essa forte impressão de impotência. Tentou ser duro consigo mesmo, repetindo pela centésima vez que não havia nada na Bíblia que pudesse ajudá-lo de alguma forma.
Encontrei conforto, pensou.
Virou o corpo na cama e ficou de lado, contemplando a fraca luz do abajur. Estava com sono, mas não conseguia ao menos ficar de olhos fechados. Virou para o outro lado e continuou tentando fugir dos pensamentos, mas eles eram implacáveis e não lhe saíam da cabeça. Fechou os olhos e assim se manteve por longo tempo, até que a realidade e a inconsciência começaram a fundir-se, tornando-se um complicado mundo de desejos ocultos.
João, capítulo três.
Foi em meio a esse pensamento que se levantou da cama, desceu a escada e dirigiu-se ao rack. Sem hesitar, abriu uma das portas e pegou a Bíblia. Olhou-a por alguns segundos e voltou para o quarto, segurando-a com uma das mãos. Sentou-se na beira da cama, de frente para o abajur, abriu-a e procurou o livro de João.
Jesus instrui Nicodemos acerca do novo nascimento, Pedro leu mentalmente. Pensou em parar por aí, mas algo o fez ler adiante, e leu do primeiro versículo até o vigésimo primeiro e achou que bastava. A cada versículo lido sentia o coração acelerar inexplicavelmente, misturado a uma intensa vontade de chorar. Fechou a Bíblia, reflexivo, os olhos úmidos, a boca seca. Estava impressionado como aquela passagem parecia ser direcionada a ele, mas achava ser uma mera coincidência; entretanto, algo lhe dizia que as coisas iam muito além de um simples fato coincidente. À tarde, ao abrir a Bíblia nesse capítulo, não deu muita importância, mas ao lê-lo nesse momento pôde perceber que o texto continha uma mensagem tão análoga à vida dele nos últimos dias que isso não poderia ter acontecido por acaso, sem uma explicação por trás dos fatos, mesmo que essa explicação fosse muito além de suas convicções alimentadas por sua incredulidade de anos.
Ao deduzir isso, largou a Bíblia sobre a cama, levantou-se e caminhou em direção à janela fechada. Ficou por alguns instantes ali, diante dela; depois, abriu-a e pôs a cabeça para fora. Ventava um pouco, e o vento parecia assobiar uma melodia suave de poucas notas. Por sobre o telhado de sua garagem podia ver apenas a copa da árvore, que ficava de frente ao portão pequeno de sua casa, balançar os seus galhos freneticamente. Fechou os olhos e ergueu a cabeça, sentindo uma imensa vontade de chorar, sentindo faltar-lhe o chão sob os pés descalços.
Anima-te, Pedro, tu renascerás.
Essa frase soou feito um trovão para Pedro, mesmo assim pareceu-lhe suave aos ouvidos. Era como se viesse de todos os lados, e foi ao ouvi-la que se sentou na cama. Passou as mãos no rosto e percebeu que ele estava molhado: havia chorado enquanto dormia. Olhou para a janela, e ela estava fechada. Moveu o corpo como quem vai se levantar e sentiu uma forte dor de cabeça. Gemeu calado e levantou-se. Acendeu a luz, e a claridade ofuscou-lhe os olhos, fazendo a cabeça latejar impiedosa e insuportavelmente. Franziu a testa e protegeu os olhos até que suas pupilas se acostumassem à claridade. Procurou a Bíblia. Ela não estava no quarto. Olhou em volta da cama, no chão, mas não adiantava procurar, ela não estava ali; tudo não passou de um sonho. Tudo havia sumido e o que lhe restou foi uma dor de cabeça forte, como se os miolos tivessem sido lavados, torcidos e postos para secar.
Mas foi tão real
Foi um sonho.
Eu podia sentir o vento.
Mas foi apenas um sonho.
Tu renascerás.
A memória de Pedro reproduzia-lhe a voz de um tom forte vezes sem conta na cabeça, que latejava no ritmo de sua respiração.
A Bíblia.
A Bíblia! Pedro precisa ver a Bíblia, mas ela não estava no quarto. Estava no rack, junto aos álbuns de fotografia.
Preciso verificar… Eu preciso
Com a cabeça jorrando-lhe pergunta sobre pergunta, saiu do quarto, desceu a escada e foi até a cozinha. Acendeu a luz e puxou uma gaveta do gabinete da pia à procura de uma aspirina. Encontrou uma cartela, pegou os dois comprimidos que restavam e jogou um deles na boca. Encheu um copo com água e virou-a em grandes goles garganta abaixo. Enxugou a boca e o queixo com a mão e, em seguida, pôs o outro comprimido na boca; triturou-o entre os dentes caninos e sentiu o seu horrível gosto amargo. Achava que, ao fazer isso, o efeito seria mais rápido. Se isso era verdade, não sabia, mas era o que costumava fazer com qualquer tipo de remédio que tomava, exceto os que eram revestidos com uma cápsula. Estes, ele abria, despejava o conteúdo na água e jogava as cápsulas fora.
Apagou a luz da cozinha e foi para a sala. Estava escuro, mas não acendeu a luz. Abriu o rack e, sem dificuldade alguma, achou a Bíblia, que estava lá onde a havia colocado antes de a filha voltar do encontro com Roberto. Pegou-a e seguiu em direção à escada, andando com cuidado para não tropeçar em algo. Era forte a sensação de déjà vu que sentia, pois o sonho fora tão real, que ele parecia estar repetindo os mesmos movimentos que fizera havia alguns instantes; mas não havia feito nada, afinal de contas, fora um sonho.
Um sonho absurdamente real.
Subiu a escada e andou até o fim do corredor, onde ficava o seu quarto. Lívia dormia profundamente no quarto em frente ao dele.
No quarto, lembrou-se de olhar a hora. O rádio-relógio mostrava em grandes números vermelhos três e vinte e seis da madrugada. Ele havia dormido e por um bom tempo.
Sentou-se na beira da cama com a Bíblia no colo.
— João, capítulo três. João, capítulo… três.
Repetia essas palavras vezes seguidas, enquanto procurava a passagem. Não sabia bem ao certo por que estava fazendo isso, mas era mais forte do que ele; era como se essa força o fizesse agir contra a vontade, contra os próprios desejos.
Quando conseguiu achar o trecho que procurava, ficou durante alguns segundos apenas olhando as letras. O coração batia fora de ritmo, em um diminuir e acelerar constante. Sentia uma sensação estranha como se estivesse prestes a cometer algo ilícito, um crime inafiançável. Era como se existissem dois Pedros, e um deles era feito um censor que inspecionava o outro para que não mudasse de opinião ou fizesse algo que fosse contra o modelo anterior do padrão Pedro de viver. Porém, no fundo, sabia que não havia mal algum no que estava fazendo, então suspirou e mergulhou de vez nas letras. À medida que a leitura avançava, sentia novamente a forte sensação de déjà vu. Em poucos minutos, leu toda a passagem e nenhuma vírgula estava diferente do que havia acontecido em seu…
(… sonho?)       
Sonho. Por que a dúvida? Havia sonhado, mas sentia que fora tão real, tão real que…
Não importava. O que importava era o fato de a passagem bíblica ser tão análoga à do sonho dele que o fazia sentir um arrepio no corpo inteiro. Fechou a Bíblia, jogou-a sobre a cama e levantou-se, pondo as mãos na nuca, ainda incrédulo, querendo uma explicação realista e menos fantasiosa, mas, apesar de tentar, não conseguia.
— É claro! — exclamou, olhando para as mãos espalmadas.
Pedro achava ter conseguido uma resposta para tudo o que estava acontecendo. Ocorreu-lhe que na época em que lia a Bíblia com frequência, interessado apenas na parte histórica (na verdade, tentava alimentar a fé, mas em vão), certamente lera essa passagem, portanto estava gravada em seu inconsciente e reapareceu em forma de sonho.
Mas por que as lágrimas, a sensação de leveza e esse arrependimento que eu não sei bem do quê?, pensou, confuso.
Sua razão queria uma explicação, mas o coração tentava quebrar a barreira de pedra que ele pusera em sua volta, e isso o deixava confuso, perdido. Ele queria saber o que era certo e o que era errado, mas oscilava em meio a tantas dúvidas. Afinal de contas, o que é certo ou errado num caso como esse? Sem saber direito o que achar de tudo, foi ao banheiro, abriu a torneira do lavatório e jogou água no rosto. Depois, encarando a própria imagem no espelho, tomou uma decisão: tirou a roupa, largou-a no chão, próximo ao lavatório, foi para o boxe, colocou o chuveiro na água fria, ligou-o e entrou debaixo. Por um instante, achou que foi a pior atitude que tomara na vida; não era nada agradável sentir, àquela hora da madrugada, a água fria cair-lhe sobre as costas em jatos que pareciam cortar-lhe a pele. No entanto, aliviou-lhe a cabeça, pois não conseguia pensar em nada além do banho, que de forma alguma fora o mais agradável de sua vida.
Menos de três minutos foi quanto aguentou debaixo da água, mas foi tempo mais do que suficiente para os dentes começarem a bater freneticamente. A dor de cabeça começava a ceder aos poucos e não passava de uma leve pontada distante. Enxugou o corpo e vestiu-se. Os dentes não batiam mais, apenas os lábios tremiam um pouco. A língua, por causa da aspirina que mastigara, ainda estava levemente adormecida. Cuspiu no lavatório na tentativa de se livrar daquele sabor amargo e, em seguida, encarou novamente a própria imagem no espelho.
— O que está acontecendo com você, Pedro? O quê?! — questionou-se em voz baixa, mas o seu reflexo não respondeu e nunca responderia. Era só um reflexo, e Pedro sabia muito bem disso, mas tornou a perguntar mais algumas vezes, mesmo sabendo que não obteria resposta. Pelo menos não de seu reflexo, que parecia devolver-lhe a pergunta, como se também precisasse de algumas respostas.
Saiu do banheiro e apagou a luz. Deitou-se com o rosto voltado para o abajur, que mantivera aceso. Enquanto esperava o sono aparecer, tentava esvaziar a mente, observando os minutos do rádio-relógio pularem um após o outro. A sensação que tinha era de que cada minuto durava como se fossem dois. Rolou várias vezes na cama, torcendo os lençóis, lutando contra um sentimento muito maior do que ele, sentindo-se como se fosse a única sentinela na guarita.
Dormiu olhando para o relógio, sem ao menos se dar conta de que passava das cinco da manhã.

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