sábado, 27 de maio de 2017

Capítulo 8 - O Mistério do Viúvo Maldonha


Raios de sol entravam por uma fresta da janela e iluminavam parte do quarto de Pedro, que acabara de acordar. Mal parecia que uma forte chuva havia caído na noite anterior e se estendido por quase toda a madrugada. Desligou o abajur, que passara a noite toda aceso, e levantou-se, tentando apagar da memória as partículas do sonho que tivera.
Está pegando fogo!, pensou, mas ficou aborrecido só de lembrar que havia sonhado.
As vagas lembranças vinham-lhe à cabeça, e a mais clara delas era o fogo.
Já chamaram os bombeiros?, alguém perguntava, aos gritos.
No sonho, havia uma pessoa gritando fogo, e Pedro saiu de casa para ver o que estava acontecendo. Já na rua, viu carros do Corpo de Bombeiros passarem com suas sirenes ligadas. Tentou lembrar-se de mais algum detalhe, mas não conseguiu. Algo na mente não lhe permitia, feito uma cortina escura que balançava, escondendo o que estava atrás, no palco, aguçando-lhe a curiosidade.
Durante o café da manhã, ele estava tão absorto, que Lívia chamou-lhe a atenção. Nesse momento, uma última lembrança vinha-lhe à mente: era Leandro Maldonha. O velho estava no sonho, encostado a um portão, o rosto complacente, enquanto apontava na direção do bar de John.
— Pai? Pai, você está bem? — perguntou Lívia.
— Hum?! — ele olhou para filha. — Tudo bem, eu só estava pensando num… num sonho… que tive essa noite.
— Sonho?! Você… pensando em sonho?!
Pedro deu um sorriso amarelo; nem ele mesmo acreditava no fato de se distrair pensando em sonhos. Os únicos sonhos sobre os quais achava útil perder tempo eram os que ele denominava projetos de vida, e Lívia sabia muito bem disso.
— É aquele pessoal do bar — comentou ele.
— O que tem?
— Eles ficam falando de sonhos… Falam tanto que acabam nos deixando impressionados.
Lívia pôs-se de pé.
— Que pessoal? — perguntou, caminhando para a sala.
— O Afonso e o Marsílio — Pedro também se levantou e seguiu a filha. — O Viúvo também.
— O quê? — espantou-se ela. Virou o corpo e ficou olhando para o pai. — O velho Leandro fica com vocês no bar?
— Às vezes — Pedro passou pela filha e sentou-se no sofá. — Quero dizer, só nesses últimos dias. Ele é esquisito. Todo cheio de suspense…
— Disso todo mundo sabe.
— Apesar de tudo, ele parece ser boa gente. Não parece ser um… sei lá… algum tipo de psicopata.
— Será? — insinuou Lívia, sentando-se ao lado do pai. — E essa história que o povo conta do desaparecimento da mulher dele?
— Eu nem morava aqui ainda, Lívia. Acho que nem conhecia a sua mãe na época em que isso aconteceu. Isso deve ter uns… trinta anos. O povo fala disso desde que eu e sua mãe viemos morar aqui. Ninguém sabe ao certo o que realmente aconteceu. Há quem diga que ele passou a usar apenas roupas pretas depois que ela… sumiu. Mas de tudo isso a gente já sabe, Lívia. Não é nenhuma novidade. Como também não é novidade que ele é chamado de Viúvo por causa disso tudo. Quando vim morar aqui, ele já era assunto da vizinhança, e o que sei sobre ele é só o que comentam por aí.
— E ela nunca apareceu, não é? E fica um monte de hipótese no ar…
Pedro olhou para a filha com um olhar questionador, mas nada disse.
— Isso daria um bom tema… — pensou ela em voz alta.
Pedro levantou-se e foi até o rack.
— Bom tema pra quê? — perguntou, enquanto pegava um cartão de banco numa das gavetas.
— Ou uma boa matéria…
Pedro riu, voltando-se novamente para a filha.
— Depois o doido é o Maldonha…
— Você está me chamando de doida?
— Não! Claro que não! ― gracejou ele, sorrindo. — Eu vou ao banco. Quer ir comigo? De lá a gente vai ao mercado fazer uma compra.
Lívia pôs-se de pé.
— Espere um pouco… eu só vou trocar de roupa e dar um jeito nos cabelos — disse, enquanto corria em direção à escada.
— Espero por você lá no carro — alertou e, quase gritando para que ela pudesse ouvi-lo, continuou: — Não se esqueça de fechar a porta quando sair!
No supermercado, Lívia não perdia a oportunidade de atacar a seção de chocolates. Pegava os seus preferidos e sorria para o pai, na intenção de comprar dele uma indulgência. Pedro apenas balançava a cabeça, como se quisesse dizer: “Tome cuidado, senão vai engordar!”.
No caminho de volta, ele passou no Texas e acertou com John o que havia gastado na noite anterior, e seguiram para casa em seguida.


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domingo, 21 de maio de 2017

Capítulo 7 - O Mistério do Viúvo Maldonha


Uma Ocasião Especial


Instantes depois, Maldonha voltou do banheiro enxugando as mãos na lateral das calças.
         — Bem — disse ele, encostando-se ao balcão —, a mãe desse rapaz dessa história… esse tal Marcos, se chamava Maria. Tudo começou quando ele entrou no quarto dela, e ela quase teve um ataque ao ver que ele estava nu.
— Nu?! — estranhou Afonso.
— Sim, nu — repetiu Maldonha, olhando para Afonso. — Ele perguntou o que ela achava daquilo, mas ela não respondeu; estava abismada. Ele a chamou pra sala, pois tinha algo a mostrar pra ela. Ela estranhou toda aquela atitude do filho, que podia ter todos os defeitos do mundo, mas naquele momento estava completamente diferente do que era. Imaginem a aflição dela ao ter que cruzar aquela porta e, talvez, ver algo ainda mais constrangedor do que o filho nu… Mesmo assim, ela começou a caminhar em direção à porta. No outro cômodo se deparou com muitas pessoas, que cochichavam todas ao mesmo tempo. Ela se aproximou deles. Tudo era estranho, pois apesar de estar nu, Marcos passava despercebido por todos, que olhavam apenas pra ela, como se ela estivesse sozinha. Ao chegarem no centro da sala, ela se deparou com um caixão repleto de flores e, enquanto olhava perturbada para o caixão, Marcos, que ainda segurava a mão dela, perguntou: “E assim, que tal estou?”.
Maldonha fez uma pausa; em seguida, continuou:
— Maria não conseguiu responder à pergunta. Não era o caixão que a deixava com uma sensação de enjoo; era outra coisa. Era a mais confusa e assustadora cena que tinha visto na vida. Era algo que uma pessoa, em sã consciência, nunca acreditaria que pudesse ser possível; mas estava ali, diante de seus olhos, o seu filho nu, segurando a mão dela e, ao mesmo tempo, no caixão, usando um terno branco. Era mórbido…
— Deus do céu! — exclamou Afonso, sobrepondo sua voz à de Maldonha.
—… Intensamente mórbido — prosseguia o velho. — Ao ver essa cena, ela gritou. Nesse momento, Marcos entrou no quarto da mãe e perguntou o que estava acontecendo, pois o grito dela foi tão alto que ele acordou no quarto ao lado. Ele se sentou na beira da cama, muito preocupado. Maria estava ofegante, sentada no centro da cama, o rosto molhado de suor. Ela abraçou o filho com força. “Só um pesadelo!”, disse ela. “Só mais um pesadelo!”.
— Era só um sonho? — perguntou Afonso.
— Sim, era só um sonho — respondeu o velho —, mas não apenas um sonho comum.
— E esse terno branco? — perguntou Marsílio. — O que tem a ver?
Maldonha pegou o maço de Pall Mall, retirou um cigarro, colocou-o na boca e acendeu-o com um fósforo, fazendo uma concha com a mão para dar mais volume à chama do palito.
— Vocês vão ver — respondeu, ao soprar a fumaça tragada. — Tenham paciência!
Pedro ajeitou-se no banco e nada disse. Apenas prestava atenção. Apesar de achar que aquilo poderia acontecer com qualquer pessoa, lembrava-se perfeitamente dos sonhos que tivera durante anos ao encontrar o pai caído entre a vida e a morte, e essa lembrança lhe causava uma sensação de mal-estar.
Tudo não passa de sonho, simplesmente sonho, nada mais que isso, tentava se convencer em vão, enquanto ouvia a história contada por Maldonha.
John fazia o possível para não ter de atender a algum freguês que porventura entrasse no bar. Queria saber o que Maldonha queria dizer com aquela história. As duas moças, que trabalhavam para ele, tinham de atender sozinhas aos fregueses, o que não era uma tarefa muito difícil, pois o movimento era pouco.
— Marcos quis saber o que estava afligindo a mãe — prosseguiu Maldonha, ao bater com o dedo indicador no cigarro para derrubar a cinza que se formava na ponta —; queria saber como eram os pesadelos que a incomodavam com tanta frequência, mas ela desconversava, fugia do assunto, preferia guardar pra si aquilo que a incomodava havia quase um ano. Marcos bem que tentava fazer a mãe dizer, mas era inútil, a opinião dela não mudava. Naquela época, o pai de Marcos já era falecido; um derrame causou a morte dele. Desde então, Marcos e a mãe se sustentavam com o dinheiro de uma pequena mercearia que tinham no salão inferior da casa. Além da casa, essa foi a única coisa que o pai de Marcos deixou. Antes da morte do pai, Marcos era um rapaz despreocupado com a vida. As coisas tinham que ser do jeito que ele queria, senão a discussão estava armada. Não que fosse um mau-caráter, não era nada disso, era simplesmente uma rebeldia, algo que com o tempo iria passar. Depois da morte do pai, ele começou a ver as coisas de outra forma, pois havia percebido que a vida não era apenas uma diversão; estava repleta também de deveres e obrigações. Ao perceber isso, passou a não dizer as besteiras que tanto dizia, principalmente quando estava nervoso com a mãe.
— Que besteiras? — perguntou Afonso.
Depois de uma tragada, Maldonha respondeu:
— Besteiras semelhantes àquelas ditas por aquele rapaz da outra história que contei.
Marsílio sorriu.
— Ele também disse que dançaria uma valsa com…?
— Não importa o que ele dizia — interrompeu Maldonha, com rudez na voz, o que desfez o sorriso de Marsílio.
O velho abaixou a cabeça olhando para a ponta do cigarro preso entre os dedos médio e indicador.
— Tudo bem — disse Marsílio, envergonhado. — Continue a sua história, eu…
— Desculpe, eu não quis ser grosso — Maldonha percebeu que havia exagerado. — O que esse rapaz dizia não tem importância nessa história e…
— Tudo bem! Eu compreendo.
Os outros também compreenderam a atitude de Maldonha, mas Pedro a achou estranha e sentiu que algo naquela história da valsa incomodava o velho, mas sem saber o que achar direito preferiu ficar quieto.
— Bem, onde eu estava? — perguntou Maldonha, tentando dar continuidade à sua narrativa.
— Você falava da mudança de atitude de Marcos após a morte do pai — lembrou-lhe Afonso.
— Pois bem — prosseguiu o velho —, a morte do pai do Marcos não foi o único motivo pra essa mudança, que também não aconteceu da noite para o dia. Ele havia conhecido uma moça, logo em seguida à morte do pai.
Maldonha levou o cigarro à boca, pensativo.
— Era uma bela moça — continuou, com ternura na voz. Expeliu a fumaça tragada e, em seu tom de voz grave e habitual, prosseguiu: — Daí em diante, Marcos percebeu que não podia ficar preso a uma mercearia; resolveu então procurar um emprego, pois já estava namorando a moça havia algum tempo e os dois já falavam em casamento. Assim que arrumou um emprego, deixou a mercearia aos cuidados da mãe e da namorada, que passou a ajudar. Em poucos meses, ele conseguiu economizar dinheiro. O local em que trabalhava era distante de sua casa, mesmo assim ele ia de bicicleta para economizar mais. Queria casar logo, por isso dava duro no trabalho e mal tinha tempo pra namorada. Um dia, ele chegou em casa trazendo duas caixas; uma do tamanho de uma caixa de sapatos e a outra um pouco maior. A mãe dele quis saber o que era, mas ele disse que era uma surpresa, que aquilo era algo pra uma ocasião especial, muito especial. Pediu também que ela não mexesse e guardou as caixas sobre o guarda-roupa de seu quarto. Ela respeitou a vontade dele, mas algo em relação àquelas caixas a fazia ter um pressentimento estranho, uma sensação que não conseguia explicar, que a deixava paralisada, como se não existisse nada no mundo além daquelas malditas caixas. Houve noites em que teve sonhos estranhos, até chegou a acordar diante da porta do quarto de Marcos em plena madrugada, depois de ter tido uma crise de sonambulismo, coisa que nunca havia acontecido.
Leandro Maldonha fez uma pausa, bebeu um gole de vinho, tragou e jogou o cigarro ainda quase pela metade no chão, amassando-o em seguida com o calcanhar.
— Os meses foram passando — continuou. — Nesse meio tempo, Marcos fez uma singela cerimônia de noivado e, no mesmo dia, marcou a data do casamento. Ele e a noiva estavam muito ansiosos e viviam falando do casamento. A mãe dele apoiava cada decisão que eles tomavam, só achava que o filho não precisava trabalhar tanto, mas a cada dia Marcos trabalhava mais e mais. O que vou contar agora aconteceu numa noite de chuva. Naquele dia, Maria estava preocupada, pois já havia passado da hora de Marcos chegar. Como sempre, ela estava esperando por ele, mas acabou cochilando no sofá em meio à intensa chuva que caía. Instantes depois, ela viu o filho chegar, empurrando com certa dificuldade a bicicleta com a qual ele ia trabalhar. Ele estava todo machucado, molhado e sujo de barro. Da cabeça dele, escorria muito sangue, que encharcava a camisa na altura do peito. Mas tudo isso não era o que mais assustava Maria…
— Então o que era? — perguntou Marsílio.
— Era o que ele estava vestindo… Era o terno branco.
— De novo esse terno branco? — indagou Marsílio. Na verdade, era como se quisesse reforçar o que acabara de ser dito por Maldonha, que balançou a cabeça de forma afirmativa e deu continuidade à narrativa:
— Fortes batidas na porta despertaram Maria do terror. Novamente ela estava sonhando, como vocês perceberam. Bateram com mais força. Ela foi ver quem era e recebeu a notícia de que o filho havia morrido em um acidente.
— Caramba! — por fim, Pedro manifestou-se, sobrepondo sua voz à de Maldonha, que continuava:
— Depois que os dois homens foram embora, Maria se viu na presença da nora, que estava acompanhada dos pais e de seu único irmão, mais novo que ela. Certo momento, Maria foi para o quarto do filho. A moça foi atrás, enquanto os pais dela e o irmão ficaram na sala. O que aconteceu no quarto, eu não sei ao certo. O que sei é que as caixas que Marcos havia comprado foram abertas. Maria deve ter ido escolher uma roupa para o filho e, ao abrir o guarda-roupa, as caixas caíram no chão.
Maldonha parou de falar para beber o restante do vinho. Depois fez um sinal para John, apontando para o copo. Queria outra dose.
— Maria pegou a caixa maior e a entregou à nora, pedindo a ela que abrisse — continuou Maldonha, enquanto John enchia o copo com vinho —; parecia ter medo de ver ela mesma o conteúdo da caixa.
— Ela abriu? — perguntou Afonso.
— Sim. A moça abriu a caixa e pegou o seu conteúdo, e Maria recuou assustada. Os seus pesadelos pareciam ter vindo à tona e todos de uma única vez. As lembranças dos dias em que não conseguia ficar um único segundo sem pensar naquelas malditas caixas vieram à memória dela. Os pesadelos pareciam ter adquirido forma e estavam ao seu redor e a cercavam por todos os lados. A moça perguntou à Maria o que estava acontecendo, se era com aquilo que iam vestir Marcos para o velório.
— O terno branco? — perguntou Marsílio, em tom de afirmação. — Foi o terno branco que ela retirou da caixa? E na outra estavam os sapatos?
— Exatamente — confirmou Maldonha. — Foi o terno que a moça retirou da caixa, e Maria não acreditava no que estava vendo. Aquilo não podia ser real. Essa era a sua única certeza. Os três, que estavam na sala, apareceram no quarto e, rindo, começaram a se aproximar de Maria. Um riso que aos poucos virou uma intensa gargalhada. A moça ainda segurava o terno branco, mas antes que ela fizesse outra pergunta, Maria arrebatou o terno e, em meio a um grito, o jogou no chão. De repente, tudo estava na mais absoluta escuridão, e mais uma vez Marcos entrou no quarto de sua mãe assustado.
— Você está de brincadeira, não é? — perguntou Afonso. — Era outro sonho?!
— Eu tenho mais o que fazer! — resmungou John, seguindo rumo ao banheiro. — Terno branco, agora mais essa!… — e continuou a resmungar enquanto andava.
— Depois disso, o que aconteceu? — perguntou Marsílio. — Ela resolveu contar os sonhos para o filho?
— Sim — respondeu Maldonha, enquanto retirava o maço de cigarros do bolso da camisa. — Contou com todos os detalhes que eu contei aqui pra vocês?
— Você não quer nos dizer que isso realmente aconteceu, não é? — perguntou Afonso, em tom irônico.
— Por quê? Você acha que não? — perguntou Maldonha com rudez.
Afonso ficou em silêncio.
Marsílio pediu outro chope a Júlia; em seguida, perguntou a Maldonha:
— O que havia nas caixas então, já que tudo não passou de sonho?
— O par de sapatos e o terno — respondeu Maldonha e, em seguida, acendeu o cigarro.
— Mas como assim? — perguntou Afonso.
— Quando acordou desse último sonho, Maria resolveu contar para o filho os sonhos que a atormentavam, com todos esses detalhes que eu contei na história. Depois, ela foi até o quarto dele, pegou as caixas e abriu as duas de modo eufórico. Ele não gostou da atitude dela, mas ela tentou se justificar contando tudo o que estava se passando… Contou os sonhos com todos os detalhes; disse que achava que eles eram avisos, mas Marcos disse que era besteira e chegou a acusar a mãe de ter mexido nas caixas antes. Ele achava que era impossível de ela sonhar com algo que nunca havia visto, mas ela disse que os sonhos começaram antes mesmo de ele comprar aquele maldito terno. Ele acusava, e ela negava, negava e continuou negando; disse que as caixas lhe davam uma sensação estranha e que não faltou vontade, mas nunca havia mexido nelas, a não ser naquele dia.
John voltou do banheiro, mas não parou próximo do local no qual estavam Maldonha e os outros. Passou direto e foi atender a um rapaz que acabara de chegar e estava encostado ao balcão. O freguês pediu um maço de cigarros e queria saber se havia ali próximo alguma loja que vendesse filmes para máquina fotográfica e utensílios para pintura; alegou que não conhecia quase nada na região, pois acabara de chegar de outro estado e ainda estava se adaptando. John disse não saber; o rapaz agradeceu e foi embora.
Enquanto isso, Afonso queria saber em qual ocasião Marcos usou o terno. Maldonha tentou desconversar, como havia feito na primeira história que contou, mas Afonso insistiu.
— Usou no dia de seu casamento — respondeu Maldonha. — O dia de seu casamento era a ocasião tão especial.
— Mas quem contou essa história pra você? — perguntou Marsílio.
— Isso não importa — desconversou o velho.
Afonso e Marsílio insistiram com outras perguntas, e Maldonha desconversava sempre que possível. Depois de alguns instantes, o velho pagou o que devia e foi embora, alegando que não queria tomar banho de chuva.
De fato, o tempo havia mudado, ventava um pouco, e a temperatura havia caído uns cinco graus, anunciando a forte chuva que estava prestes a cair; porém, na verdade, ao dizer que não queria tomar banho de chuva, Maldonha tentava livrar-se do bombardeio de perguntas que lhe faziam e, como pretexto, usou isso para fugir do questionário.
— Eu não sei como vocês aguentam ficar ouvindo esse velho — resmungou John.
— Você também estava ouvindo — alertou Marsílio —, então não nos censure.
— Por acaso vocês chegaram a alguma conclusão depois que o velho falou? — continuou a atacar John. — Esse velho está ficando gagá, e eu sou um idiota por ficar ouvindo o que ele diz.
— Gringo, veja quanto deu a minha conta e pendura pra mim — disse Pedro. — Amanhã eu acerto com você, tudo bem?
— Tudo bem — concordou John, voltando os olhos para Pedro, que se despediu dos outros e, apressado, saiu do bar; nem sequer chegou a ouvir John dizer que Maldonha era uma piada. Sua intenção era acompanhar o velho, o que não seria difícil. Quando chegou à calçada, Maldonha não havia andado sequer trinta metros. Assobiou para ver se ele olhava para trás, mas isso não deu resultado. Então, correu para alcançá-lo. Não sabia bem por que estava tomando essa atitude; era como se algo o impulsionasse contra a própria vontade. Correr foi até bom, pois o fez ter uma sensação de que a temperatura havia subido em vez de caído, como era o caso.
— Maldonha! — chamou ele, assim que alcançou o velho, e a voz estava arfante quando continuou: — Eu queria… lhe fazer uma pergunta.
Maldonha parou de andar e voltou-se para Pedro.
— Faça. Pode fazer… Pedro. Não é esse o seu nome?
— Sim, é. Mas… mas eu já lhe falei o meu nome?
— Alguém deve ter falado o seu nome lá no bar e eu… decorei.
— Claro! — concordou Pedro, mas sem convicção, pensando no fato de também não conhecer muito bem o velho e, mesmo assim, saber o nome dele.
— Você queria me fazer uma pergunta. Pode perguntar, Pedro.
— De onde você tira essas histórias?
— Os seus amigos lá no bar já me fizeram essa pergunta. Que diferença faz de onde eu tiro essas histórias?
— Nenhuma… eu acho.
— Então por que quer saber? — perguntou Maldonha, em tom firme.
Pedro sentiu-se sem jeito.
— Por saber, somente isso.
— Isso não é o mais importante. E mesmo que eu lhe contasse de onde tiro essas histórias, você não acreditaria.
— Por que acha que não?
— Intuição.
Pedro ficou em silêncio. Não sabia o que dizer. Nem sequer sabia por que estava ali diante de Maldonha. Por um instante, arrependeu-se de tê-lo acompanhado.
— O senhor tem razão — disse por fim —, eu sempre tive a opinião de que sonhos são sonhos e não passam disso, mas não é por pensar assim que quero mudar a opinião dos outros.
Maldonha jogou a guimba do cigarro no chão.
— Eu não quero mudar a opinião de ninguém — disse o velho, pisando a guimba do cigarro para apagá-lo. — Quem sou eu pra querer fazer isso?
— Me desculpe, eu…
— Você me dá a impressão de que é um homem que só acredita nas coisas óbvias — interferiu Maldonha.
— Não é bem assim…
— Então me diga o que você acha de Deus — novamente Maldonha interferiu e pareceu ter acertado em cheio o cerne da questão.
Pedro engoliu em seco, olhando para Maldonha. Preferiu não responder, mas não por hesitação. Era algo que não conseguia explicar, algo que fez o coração bater fora de ritmo.
— O que você acha de Deus? — insistiu o velho.
— Eu não acredito em Deus — respondeu, em tom baixo.
— Mas você deveria acreditar!
— Mas por quê? Por que eu deveria acreditar?
Maldonha olhou para uma árvore de mais ou menos três metros de altura que ficava do outro lado da rua. O vento balançava-lhe desordenadamente a copa de um lado para outro.
Não se vendem dois passarinhos por um ceitil? E nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso pai — disse e, apontando para a árvore, acrescentou: — E digo a você, Pedro, por minha interpretação, que nenhuma folha daquela árvore cai sem o consentimento de Deus.
Nesse instante, um relâmpago cortou o céu em duas partes, sequenciado de um estrondoso trovão. A claridade e o barulho assustaram Pedro, que não acreditava no que Maldonha havia dito. O velho o olhava de forma serena, as bolsas formadas debaixo dos olhos davam-lhe um ar de tristeza e cansaço, e seu olhar estava repleto de um significado que Pedro não conseguia compreender.
— E se eu for lá e arrancar não só uma única folha, mas sim um ramo inteiro com as minhas mãos, sem ter que precisar do consentimento de Deus? — perguntou Pedro de forma desdenhosa, assim que se recompôs do susto. — O que você me diz?
Maldonha sorriu, e essa foi a primeira vez que Pedro o vira sorrir.
— Do que está rindo? — perguntou Pedro, incomodado.
O velho passou a mão direita nos cabelos grisalhos e calvos; um riso ingênuo formou-se novamente em seu rosto, contrastando com as rugas da face.
— Da sua ingenuidade — respondeu ele. — Se você fosse lá e arrancasse as folhas que disse que arrancaria, eu diria que você está usando da liberdade que Deus lhe deu pra fazer o que quiser. A mesma liberdade que você tem de crer n’Ele ou não. Você pode cortar a árvore inteira se assim o desejar, mas tem que ter a consciência de que é responsável pelas coisas que faz, sejam elas boas ou ruins. Isso é o livre-arbítrio, Pedro, um grande patrimônio que Deus deu aos homens — fez uma pausa e arqueou as espessas sobrancelhas grisalhas. — Mas o livre-arbítrio é uma coisa muito perigosa, pois é como se fosse uma estrada que se divide em uma bifurcação, e é aí que mora o perigo. Que caminho devemos seguir? — fez nova pausa, aproximou-se um pouco mais de Pedro, que ouvia atentamente, e continuou: — O caminho quem escolhe somos nós, e um deles nos leva à salvação. A escolha de um desses caminhos fará toda a diferença, Pedro. Toda a diferença.
O vento, que já era forte, começou a soprar com mais intensidade, e os relâmpagos se intensificaram. Volumosas gotas de chuva começaram a cair. Pedro sentiu uma cair no braço, depois outra no rosto.
— O seu Deus deve estar mandando a gente ir logo pra casa — disse Pedro com ironia, ao dar o primeiro passo.
Sem dizer palavra, Maldonha também se apressou. Andaram juntos poucos metros, depois se separaram. O velho entrou na estreita rua sem saída em que morava, e Pedro teria de andar mais uns cem metros até chegar a casa. Tentou fazer isso antes que as poucas gotas que caíam se transformassem de uma vez no temporal que o vento profetizava, mas não conseguiu, pois a chuva começou a cair torrencialmente. Ele correu na tentativa de chegar logo ao destino, mas isso não o impediu de estar todo molhado quando por fim cruzou a porta da sala.
Ao ver o pai chegar todo molhado, Lívia correu para buscar uma toalha. Em um instante, estava de volta.
— Eu pensei que você já estivesse dormindo — disse ele, recebendo a toalha da filha.
— Eu estava assistindo a um filme na tevê. Não é lá essas coisas, mas quebra o galho.
Quebra o galho…, pensou Pedro, enquanto enxugava o rosto com a toalha. Eu vou é quebrar um galho na cabeça dele, e vou usar o meu livre-arbítrio pra fazer isso. Velho maluco!
— Que chuva, não? — disse ela.
— Pois não é? Tomei um banho!
Em seguida, Pedro foi para o banheiro de seu quarto e, ao invés de água fria, como na sexta-feira, tomou banho de água quente. Na verdade, quase fervendo. Quando a água caía-lhe no corpo frio, todas as juntas doíam como se estivesse tomando um choque.
Quando saiu do banheiro, voltou à sala e disse à filha que ia se deitar. Deu-lhe um beijo no rosto e subiu. No quarto, deixou acesa apenas a luz do abajur ao lado da cama e deitou-se, colocando atrás da cabeça as mãos entrelaçadas pelos dedos. Ficou nessa posição por longo tempo, olhando para o teto, ouvindo o barulho do vento e da chuva lá fora, misturado a relâmpagos e trovões, que, de quando em quando, interrompiam-lhe os pensamentos. O sono começou a envolvê-lo aos poucos, e ele adormeceu sem ao menos apagar a luz do abajur, mergulhando no enigmático mundo dos sonhos. 


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sexta-feira, 12 de maio de 2017

Capítulo 6 - O Mistério do Viúvo Maldonha


No dia seguinte, antes do almoço, Lívia havia pegado no telefone várias vezes. Pedro já tinha notado a impaciência da filha, ainda mais quando ela deixou o arroz queimar, o que não costumava deixar acontecer. Sem conseguir tirar Roberto dos pensamentos um único instante, ela estava muito distraída.
Preciso falar com ele, nem que seja pra pedir desculpas novamente, pensava ela cada vez que se aproximava do telefone, mas, antes mesmo de discar os três primeiros números do celular do rapaz, desistia. Na noite anterior, dormir havia sido um sacrifício, pois só pensava nele e no que poderia dizer, mas as opções criadas por sua mente eram tantas que nem saberia como começar.
Após o almoço, ela tomou banho, trocou de roupa e disse ao pai que iria sair.
— Vou dar uma volta, mas não demoro.
— Precisa de dinheiro? — perguntou Pedro.
— Não. Não precisa, pai. Obrigada.
Sem destino, Lívia queria apenas caminhar, espairecer um pouco e pensar em Roberto, já que não tivera coragem de ligar para ele. Depois de alguns minutos de caminhada a esmo, viu-se diante da casa de Ana Paula, uma amiga da época de colégio.
Apesar de morarem no mesmo bairro, havia tempos não pararam para conversar. Apenas se falavam quando, por acaso, encontravam-se no mercado ou na fila da padaria, mas não trocavam mais do que três ou quatro frases de cumprimentos.
Parou diante do portão, pensando que, talvez, precisasse de alguém para desabafar, pedir conselhos, trocar confidências e, ao passar próximo à casa da amiga, sentiu algo estranho, uma lembrança saudosa dos velhos tempos, que foi impossível seguir adiante. Depois de um instante de hesitação, resolveu apertar a campainha e, em poucos minutos, viu Ana Paula se aproximar.
— Que surpresa, Lívia! — exclamou Ana Paula, sorrindo.
Assim que Ana Paula abriu o portão, abraçaram-se e logo entraram. Ao ver os pais da amiga na sala, Lívia os cumprimentou. Conversaram um pouco e, depois, em voz baixa, Ana sugeriu à Lívia:
— Vamos subir para o meu quarto? Lá a gente fica mais à vontade.
Lívia assentiu com a cabeça e, após pedir licença aos pais de Ana Paula, acompanhou a amiga.
— Estou morta de curiosidade pra saber as novidades — disse Ana Paula, enquanto subiam a escada em direção ao quarto.
Lívia sorriu.
No quarto, conversaram muito, e o tempo passou depressa, como se cada minuto tivesse apenas um quarto dos segundos que lhe são de direito.
         — Conheci um rapaz na faculdade — comentou Lívia certa hora.
— Sério? Você está ficando com ele?
Lívia torceu a boca para o lado e franziu a testa.
— Ih, logo vejo que há algo errado — deduziu Ana Paula.
— Não. Não tem nada de errado. É que ele acabou de terminar um namoro e…
— A ex dele fica no pé? Ou é ele quem ainda fica atrás dela?
— Ela é quem fica atrás dele. Quero dizer, acho que é… Pelo menos, é o que ele diz.
— Menos mal, sua boba!
— Sei lá, eu sempre me dou mal…
— Ainda se lembra daquele sacana, Lívia? — indignou-se Ana Paula. — Isso já faz tempo e…
— Verdade. Mas não quero falar mais dele. O Marcelo é passado. E você, está ficando com alguém?
— Não. O último rapaz com quem saí era um colega do cursinho pré-vestibular que eu estava fazendo, mas não deu certo, porque ele era um tremendo mulherengo.
— Que pena! — exclamou Lívia, lembrando-se, por um instante, de sua experiência com Marcelo.
— Mas já passou, deixa pra lá.
— Mas me conta, pretende prestar vestibular pra que curso? — perguntou Lívia, curiosa.
— Psicologia.
— Que bom! — disse Lívia, sorrindo. — Assim eu terei a minha psicóloga particular.
Ana Paula também sorriu.
— Quer dizer que eu nem comecei o curso e já tenho uma paciente?
— E olha que eu não sou normal, não, hein? — gracejou Lívia. — Vou acabar enlouquecendo você.
— Então você será tema do meu TCC.
Ambas riram alegres.
— Eu preciso ir, meu pai deve estar preocupado — disse Lívia em seguida.
— Fica um pouco mais. Janta com a gente. Liga para o seu pai pra avisar.
Lívia levantou-se.
— Fica pra próxima, eu prometo.
—Tá bom então — concordou Ana Paula, levantando-se também.
Desceram a escada rumo à sala. Lívia despediu-se dos pais de Ana Paula e, acompanhada pela amiga, seguiu para a porta de saída da casa.
Já próximas ao portão, abraçaram-se.
— Venha mais vezes — convidou Ana Paula. — Eu já havia esquecido como é bom ter a sua companhia.
— Agora é você quem me deve uma visita — Lívia sorriu e já havia virado as costas quando se lembrou de algo e voltou. — Me passa o seu facebook.
Ana Paula fez um sinal com a mão para que Lívia esperasse um instante e correu para dentro de casa. Depois de alguns minutos, voltou com o celular na mão.
— Anota meu celular também — pediu ela, e Lívia riu. — Do que tá rindo?
— Eu estou sem celular. Deixei cair na privada do banheiro da faculdade, acredita?
— Não! — exclamou Ana Paula, rindo. — Eu não acredito!
— Para de rir de mim — pediu Lívia, rindo também.
— Ai, Lívia, como pode isso?
— Fui motivo de piada das meninas na faculdade durante uma semana.
Caíram ambas numa gargalhada intensa.
— Ai, Lívia, só você mesmo!
— Marca o telefone da minha casa e me procura no face aí — Lívia aproximou-se da amiga para juntas olharem no celular.
Após Ana Paula anotar as informações, Lívia afastou-se um pouco e colocou as mãos nos bolsos detrás da minissaia jeans.
— Quando eu chegar em casa — disse —, aceito seu convite no face.
— Só não vá esquecer, hein?
— Não vou, não — aproximou-se de Ana Paula e deu-lhe um beijo no rosto. — Pode deixar — concluiu e riu mais uma vez junto com a amiga antes de dar as costas, murmurando um tchau quase inaudível, enquanto caminhava. Ana Paula acenou com a mão para ela.
No caminho de volta, Lívia ainda passou em uma doçaria, pediu um sorvete de flocos e foi para casa. Ela havia esquecido como era bom estar com Ana Paula. Embora tenham conversado bastante, ainda ficaram assuntos pendentes, pois esse tempo de conversa não era o suficiente para colocá-los em dia. Elas, além de comentarem as novidades, relembraram fatos antigos, quase desbotados na memória de ambas, mas que voltaram à tona e as fizeram dar boas risadas.
Minutos depois, Lívia cruzou a porta da sala de casa.
— Eu já estava ficando preocupado — reclamou Pedro, voz branda, mas firme.
Lívia sorriu, e isso desarmou o pai.
— Que carinha de felicidade é essa? — Pedro notou que a filha estava diferente, mais radiante e feliz.
— Eu fui na casa da Ana — explicou ela. — Lembra dela?
— Lembro sim. Mas deveria ter me telefonado, não é?
— A conversa estava tão boa, tão descontraída, que me esqueci da hora. Havia tempo não me divertia tanto sem ter de ir muito longe.
Pedro meneou a cabeça. Sabia que a filha era responsável e achou melhor não insistir na bronca. Lívia deu-lhe um beijo no rosto e subiu a escada em direção ao quarto. Ao chegar, ligou o computador; em seguida, acessou sua página pessoal no facebook e adicionou Ana Paula. Fez isso e ainda ficou um bom tempo trocando mensagens com a amiga, que estava online.

*  *  *

À noite, Pedro foi ao Texas. Ao chegar, encontrou Afonso e Marsílio, que estavam jogando bilhar. Cumprimentou-os, voltou para junto do balcão e pediu uma caneca de chope. Ficou ali, a distância, observando os colegas jogarem. Marsílio estava levando uma surra.
— Afonso já ganhou oito partidas seguidas — disse John a Pedro, rindo.
Depois da nona derrota, Marsílio desistiu do jogo. Dizendo um palavrão, largou o taco sobre a mesa de bilhar, pegou a caneca de chope na mesa ao lado e caminhou para o balcão, onde estava Pedro, que teve de ouvi-lo resmungar sobre a sua falta de sorte. Enquanto isso, Afonso foi ao banheiro.
Maldonha estava sentado no mesmo lugar de sempre, quieto, tomando vinho e fumando um cigarro atrás do outro. Pedro não parava de olhá-lo. Era como se o velho fosse um enorme ímã, atraindo um pequeno pedaço de metal. Essa era a sensação que ele passava para Pedro, que se sentia ridículo por isso.
Sorrindo, Afonso voltou do banheiro. Estava debochando de Marsílio, que aceitava a gozação com indulgência de amigo, mas não estava nem um pouco contente com o fato.
— O que estavam apostando? — perguntou Pedro, mais por gozação do que por curiosidade.
— Apostando? — perguntou Marsílio, exasperado. — Nada! Ainda bem.
— Da próxima vez apostaremos dois livro de gasolina por ficha — brincou Afonso. — Vou abastecer meu carro na maior moleza.
— Cheio de graça! — retrucou Marsílio, enquanto os outros riam. — Sou só o frentista de lá, não virei sócio ainda. Querem que perca meu emprego, já não basta perder na merda da sinuca?
— Do jeito que é ruim jogando, vai ser demitido por justa causa do posto — brincou Pedro e riu em seguida.
A conversa fluía. Trocavam de assunto com extrema facilidade. Nem ao menos percebiam que uma hora falavam de jogo de bilhar e, instantes depois, estavam falando de futebol. Era incrível a capacidade de desenvolvimento da conversa. Dentre pouco estavam falando de um dos assuntos de que Pedro menos gostava: religião. Na verdade, ele parecia ter aversão a essa palavra. Desde muito cedo começou a ter um conceito ateu. Chegou a iniciar um curso de Teologia, no intuito de alimentar a fé que estava morta no peito, mas o abandonou semanas depois de tê-lo iniciado. Quando lia a Bíblia, admirava-se com os contextos do Antigo e, principalmente, do Novo Testamento, mas algo bloqueava a possibilidade de crer na existência de um Ser Supremo que observa tudo o que os humanos fazem na Terra para poder julgá-los depois. Em relação ao Diabo, o vilão da história, sua opinião era semelhante. A maldade, para ele, é intrínseca ao homem, não se pode atribuí-la a outro ser. Mas desde que ouviu a história contada por Maldonha, de alguma forma, começava a mudar de opinião, mesmo que isso fosse apenas a ponta de um iceberg na consciência. Quando o assunto era relacionado à religião, Pedro ficava quieto; preferia não participar da conversa, tornando-se apenas um ouvinte. Tinha a opinião muito parecida com a de Maldonha, pois também achava que discutir isso era algo sem preceitos, que não levava a lugar algum. Achava que quem acreditava em Deus deveria passar mais tempo servindo a esse Deus e não discutindo religião, como verdadeiros tolos, para saber qual era a certa e qual era a errada.
Em meio ao assunto religião — que começou por causa dos comentários que fizeram da história contada por Maldonha —, surgiu a questão sobre sonhos, que passou a ser o cerne da conversa. Queriam saber qual a influência deles na vida de uma pessoa. Era mais um assunto que Pedro evitava. Para ele, sonho era apenas sonho, nada mais que isso; mas, na verdade, havia algo por trás dessa antipatia relacionada aos sonhos que o fazia sentir raiva simplesmente pelo fato de que ao dormir podia sonhar.
À medida que a conversa evoluía, incomodado, Pedro sentia vontade de ir embora. No calor do assunto, havia momentos que parecia uma briga; cada um queria estar repleto de razão, e, quando dois concordavam com algo, o terceiro discordava. Haver um consenso era uma questão impossível.
— O que você acha, Pedro? — perguntou Afonso. — Você não disse nada até agora. O que foi? O gato comeu a sua língua?
Pedro bebeu o resto do chope, contraiu os lábios e ficou em silêncio por alguns instantes.
— Olhe, eu não gosto de conversar sobre esses assuntos. Nunca levam a gente a uma conclusão. Vocês estão aí falando há… há mais de meia hora e não chegaram a conclusão alguma.
— É, você tem razão — reconheceu Afonso.
Pedro pediu outro chope.
— Só mais uma coisa — continuou Afonso —, o que você acha daquelas sensações estranhas que, às vezes, a gente sente… dando a impressão de que a gente já viveu determinada situação?
Déjà vu — reforçou Marsílio.
— O quê? — perguntou Afonso.
Déjà vu. É o nome dado a essa sensação de que você estava falando.
John colocou a caneca com o chope de Pedro sobre o balcão.
— Hein, Pedro, o que você acha? — insistiu Afonso.
— Eu não acho nada. Isso está parecendo conversa de bêbado.
— Vai dizer que você nunca teve uma sensação como essa? — perguntou Marsílio, reforçando o questionário.
— Talvez… — por um instante, Pedro hesitou. Lembrou-se de quando sua ex-mulher disse-lhe estar saindo com outro homem. Naquele dia, ele havia sentido uma sensação de déjà vu, pois no momento em que Ângela disse que queria conversar sério com ele, foi como se já tivesse vivido aquela situação e, de alguma forma, sabia que a conversa não seria nada agradável.
— Hei, Pedro — chamou Afonso. — Pedro…?!
— Oi… — Pedro estava distraído em meio às lembranças. Estava tão absorto que segurava a caneca de uma maneira tal que não faltava quase nada para derramar o chope no chão.
— Você está bem? — perguntou John.
— Tudo bem — respondeu ele, incomodado, ao colocar a caneca sobre o balcão. — Eu só me distraí um pouco.
— Um pouco?! — alarmou-se John. — Você estava quase virando o seu chope no chão.
Pedro sorriu, demonstrando incômodo, como se tivesse pressentido que alguém sabia exatamente o que ele estava pensando ou até mesmo tivesse visto as imagens que lhe passaram pela cabeça no seu momento de viagem ao passado.
— O que será que o Maldonha acha dos sonhos? — perguntou Afonso.
— Aquele velho maluco?! — esbravejou John, enquanto entregava duas canecas de chope à Júlia, uma das moças que trabalhavam para ele. Ela as recebeu e as levou para uma das mesas, na qual havia um casal de jovens. — Deve ter no mínimo uma besteira a dizer.
— Eu vou lá chamar o Viúvo — disse Afonso, indo em direção à mesa em que Maldonha estava.
Nesse momento, Pedro sentiu o coração, inexplicavelmente, bater descompassado. Era uma sensação semelhante a que sentia quando era adolescente e, nos corredores do colégio, deparava-se, sem esperar, com a garota de quem gostava. Só que Pedro não era mais adolescente e não havia nenhuma garota.
Ao chegar à mesa em que estava Maldonha, Afonso puxou uma cadeira e perguntou se podia sentar. Maldonha fez que sim com a cabeça.
— Como o senhor está? — perguntou, enquanto se sentava.
— Bem — respondeu de forma seca, retirando o cigarro da boca —, mas não é só isso que você quer saber…
Afonso ficou sem reação.
— Eu… — hesitou ele, sentindo-se de repente um estúpido. — Quero dizer… a gente…
Afonso sabia o que queria pedir a Maldonha, mas não sabia como. Não imaginou que seria uma situação no mínimo estranha, constrangedora, sem fundamento. Incomodar uma pessoa, cuja impressão era de que sempre queria ficar sozinha, para pedir-lhe a opinião sobre sonhos era algo realmente sem fundamento. Quem ele pensava que Maldonha era? Algum analista de sonhos? Um psicólogo? Afonso não sabia muito bem quem Maldonha era. Julgava apenas que o velho tivesse algo interessante a dizer sobre tal assunto; por isso, estava ali, diante dele, sem saber direito como pedir-lhe a opinião.
— Pode falar — disse Maldonha —, eu não mordo.
Afonso sorriu de forma tímida. Um riso breve e sem graça.
— Olhe, é o seguinte: a gente estava ali falando sobre sonhos… — apontou para o local no qual estavam Pedro e Marsílio. — A gente gostaria de saber a sua opinião…
Maldonha ficou pensativo. Passou as pontas dos dedos da mão direita no queixo, em movimento de vaivém, provocando um barulho por causa da barba por fazer, que já azulava o seu rosto.
— Em que sentido?
— Sei lá — Afonso passou a mão na nuca, arrependido de estar ali diante do velho. — A gente gostaria de saber que influência os sonhos podem ter na vida de uma pessoa. A gente estava falando sobre religião e como o senhor…
— Pode me chamar de você.
—… como você é bastante religioso. Está sempre citando trechos da Bíblia… Os sonhos, pra muita gente, são como algum tipo de aviso… É sobre isso que a gente gostaria que o sen… que você falasse.
Maldonha contraiu os lábios, balançando de forma lenta a cabeça em sinal de aprovação.
— Religião e sonhos — disse, como se falasse para si próprio; depois tornou a ficar quieto, pensativo, o rosto sendo iluminado apenas por um feixe de luz fraca, o que lhe atribuía um ar de mistério. Manteve a cabeça encostada à parede, enquanto Afonso aguardava uma resposta.
— E então? — insistiu Afonso.
— Eu acho que não tenho nada a dizer a respeito de religião. Discutir isso sempre causa polêmica, como já disse outro dia — novamente Maldonha ficou em silêncio, reflexivo. Bebeu o resto de vinho que ainda estava no copo, tragou e, após expelir a fumaça dos pulmões, olhou para Afonso. — Sobre sonhos, eu acho que tenho algo a dizer. Daqui a um instante eu vou até lá.
Afonso apoiou-se com as mãos sobre a mesa para pôr-se de pé.
— Vou ficar à sua espera — disse, dando as costas para seguiu em direção ao balcão em que estavam os outros.
Enquanto Afonso conversava com Maldonha, Pedro e Marsílio apenas observavam. Nada comentaram, senão que ele era um doido de ter ido incomodá-lo por causa de um assunto como aquele.
Nesse meio tempo, John estava ocupado atendendo a dois homens que chegaram e ficaram encostados na outra extremidade do balcão.
Quando Afonso se aproximou dos amigos, Marsílio perguntou sorrindo:
— E então, o que ele disse?
— Que daqui a pouco vem aqui.
Antes de ir até o local em que estavam os outros, Maldonha parecia pensar em algo. Mantinha-se na mesma posição, fumando o seu inseparável cigarro. Se de onde estavam, Pedro e os outros pudessem ver a expressão no rosto dele, veriam uma imagem de um homem triste, decerto recobrando na memória alguma lembrança angustiante, mas quem é que saberia o que ele estava pensando? Poderia ser qualquer coisa, ou simplesmente nada. Depois de alguns instantes, o velho levantou-se e, com seu andar trôpego, seguiu para o balcão.
— Eu ainda acho que os sonhos são uma espécie de aviso — dizia Afonso, enquanto Maldonha encostava-se ao seu lado.
Tive um sonho, que me espantou — Maldonha começou a falar, e isso chamou a atenção até mesmo de John, que se aproximava deles —; e quando estava no meu leito os pensamentos e as visões da minha cabeça me turbaram.
Enquanto Maldonha falava, Pedro sentou-se de frente para o balcão em um dos bancos fixos. Ele era o que estava mais distante de Maldonha. Entre ele e Afonso, estava Marsílio, mas a pequena distância não o impediu de perceber que o velho o olhava de uma forma estranha. Era como se Maldonha tivesse algo a lhe dizer, mas não podia ser ali, na presença dos outros.
Quando Maldonha terminou de citar o trecho bíblico, Afonso olhou para Marsílio, franziu a testa e ficou balançando lenta e afirmativamente a cabeça como se quisesse dizer: “Eu não disse que ele vinha?”.
— Trecho da Bíblia Sagrada — prosseguiu Maldonha. — Está no livro de Daniel.
Era impressionante a capacidade que Maldonha tinha de saber de cor passagens da Bíblia. E não era uma algo que ele decorava em casa para depois sair dizendo, no intuito de se gloriar. Era um trecho preciso, que se encaixava perfeitamente no assunto de que falavam. Não era possível que de um livro tão volumoso, como é a Bíblia Sagrada, o velho tivesse a sorte de decorar justamente o trecho exato para fazer analogia com uma situação cotidiana que nem imaginava que aconteceria. Na imaginação de Pedro e dos outros, o mais provável era que Maldonha tivesse um vasto conhecimento da Palavra Divina, e para isso deveria ficar horas meditando sobre as Escrituras Sagradas.
— Então você também acha que os sonhos querem nos dizer algo? — perguntou Afonso, olhando para Maldonha, que logo acendeu outro cigarro na guimba do anterior.
— Me dê um copo de vinho — pediu o velho a John e, virando-se para Afonso, disse: — Nem sempre os sonhos são avisos. Na maioria das vezes, são apenas sonhos, nada mais que isso.
Assim que John colocou o copo de vinho sobre o balcão, Maldonha o levou à boca com cuidado para não derrubar a bebida. Depois de um grande gole, continuou:
— Em outros casos, os sonhos devem ser levados em consideração. Pois podem estar querendo nos dizer algo… nos preparar pra algo, compreende?
Pedro mantinha-se em silêncio, tentando conciliar a vontade de ir embora, por não gostar desse tipo de assunto, com o inexplicável incômodo que sentia ao ter de aceitar que estava curioso para saber o que o  velho Maldonha diria.
— Nós ficamos debatendo e não conseguimos chegar a um acor…
— E não vão chegar nunca a um acordo — interrompeu Maldonha. — Há certos assuntos que devem ser evitadas em debates. Todo mundo acha que sabe tudo a respeito de determinada coisa, mas na verdade não sabe nada. Até mesmo eu, de quem vocês queriam uma opinião, como ele disse — apontou para Afonso —, não sei de nada. Eu demorei a aprender isso, mas foi a melhor coisa que aprendi na vida.
Todos, incluindo John, estavam em silêncio, ouvindo Maldonha falar. Apesar do ocorrido na sexta-feira, John não conseguia esconder que também ficava curioso quando Maldonha começava a explicar algum assunto. Podia ser o assunto mais simples do mundo, mas algo no velho Leandro tornava a conversa interessante, ou no mínimo fazia dela uma boa distração.
— Houve um ocorrido que posso contar pra vocês — continuou o velho. — É uma história que tem um pouco a ver com esse assunto — ficou um breve instante em silêncio. — A menos que tenha alguém que não queira ouvir.
Todos se entreolharam em silêncio. Pareciam estar de acordo em ouvir a história. Ao perceber isso, Maldonha tragou, soltou o cigarro quase pela metade no chão e saboreou mais um gole de vinho.
— Essa história aconteceu com um rapaz que vou chamar de… — fez uma pausa para pensar. — Marcos. Eu vou chamar esse rapaz de Marcos.
— Mas por que isso? — perguntou Marsílio. — Por que esse mistério até pra dizer o nome…?
— Por nada — desconversou Maldonha. Não queria esticar o assunto.
— Quanto mistério! — exclamou Afonso.
— Já volto — disse Maldonha. Em seguida, deu as costas e seguiu em direção ao banheiro.
Ao ver Maldonha se afastar, Marsílio riu, olhando para Afonso. Não era um riso de deboche, mas sim uma espécie de concordância entre os dois sobre o que possivelmente pensavam do velho.
— Só quero ver o que vem por aí — disse.
— Eu também — reforçou Afonso.
Pedro permaneceu quieto.


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