O Amor Não Vence
Era começo de noite.
Fazia um pouco de frio, mesmo assim o senhor Gustavo tomou banho morno, como
gostava, demorado. Era um dia especial para ele, aguardado por anos. Assim que
saiu do banheiro, escolheu a melhor roupa que tinha. O perfume era o mesmo de
quando era jovem. Trocou-se com calma e penteou os ralos cabelos grisalhos que
o tempo lhe presenteou. Ela não iria reparar em sua calvície, embora isso já
não importasse tanto. Não tinha pressa, pois não sabia se sua visita dessa vez
cumpriria a promessa de ir vê-lo. Encontrara-a na fila do banco, por acaso do
destino, ele pensava. Anos sem vê-la. Não conversaram muito. Poucas palavras
foram trocadas. No entanto, ele aproveitou para convidá-la para uma visita.
—
Moro no mesmo lugar de sempre — disse ele após ter feito o convite.
—
Eu vou sim, pode deixar — disse ela, ao ir embora.
Ele
sorriu, porém sem depositar muita fé de que ela o visitaria.
Em
casa, enquanto se arrumava, lembrou-se de momentos da juventude, tentando
afastar a ponta de tristeza que ainda lhe assolava o coração. Abotoou
vagarosamente a camisa, sentindo os botões passarem pelos furos. Quando estava
pronto, desceu a escada e rumou para a sala. Na mesa de jantar, acendeu as
velas do castiçal com um fósforo, mas não havia preparado nada para comerem,
mas havia algo especial que guardara por anos. Em seguida, sentou-se no sofá e
ficou a esperar: mais alguns minutos não seriam intoleráveis para quem estava
havia décadas esperando por um momento que não chegava, um momento que só
acontecia em seus infindáveis sonhos, que o faziam acordar de madrugada para
velar suas lembranças.
Quase
uma hora depois, a companhia tocou, mas ele não se levantou de imediato. O som
agradou-lhe os ouvidos, fazendo-lhe o coração bater forte no peito. Novo toque
soou, e ele quase não acreditou que era real. Levantou-se, fazendo força com os
braços no sofá para erguer o peso de seus oitenta e três anos. Caminhou a
passos lentos até a porta, olhou através do olho-mágico: era ela. Finalmente
era ela. O coração descompassou outra vez. Sentiu-se um adolescente. Respirou
fundo e girou a chave na fechadura. Era a primeira vez em décadas que destrancava
a porta, pois havia muito não a trancava a chave.
A
porta aberta deixou-os cara a cara. Ela sorriu; ele sentiu vontade de chorar.
—
Entre, Lívia — pediu ele, controlando o choro, saindo um pouco para o lado para
dar-lhe caminho.
Após
agradecer, ela entrou. Parou dois passos para dentro, olhou em volta, admirada.
—
Você reformou a casa — comentou ela. — Está como você sempre disse que a
deixaria.
—
Sim — respondeu ele, aproximando-se dela. — Fiz isso aos poucos. Demorou um
bocado, pois o dinheiro era sempre pouco, mas está aí, arrumada, como eu lhe havia
prometido.
Em
seguida, caminharam juntos até a sala.
—
Sente-se aqui — pediu ele, puxando gentilmente a cadeira da mesa para ela, que se
sentou agradecida.
—
Ficou bonita a casa — continuou ela, observando. — Do jeito que você gosta.
—
Você não estava aqui pra ajudar a opinar… — lembrou ele, e deu a volta na mesa
para ficar de frente para ela.
—
E você deixaria?
Ele
apenas fez que sim com a cabeça, num movimento suave. Olhou-a por alguns
instantes; em seguida, dirigiu-se à cozinha, abriu a geladeira, abaixou-se e,
numa gaveta, pegou algo em forma de barra. Suspirou sem acreditar no que estava
acontecendo. Voltou para a sala e, ao chegar, colocou a barra sobre a mesa e
empurrou-a na direção da mulher.
—
O que é isso? — perguntou ela, olhando para o que fora posto diante dela. A
embalagem estava velha, desbotada, mas denunciava a marca do produto que não
era fabricado havia anos.
—
Quarenta e oito anos e vinte e seis dias, Lívia.
—
Você comprou? Eu… — a voz falhou, perdeu-se em algum lugar do passado.
Ele
fez que sim com a cabeça.
—
Você disse que viria e me pediu um chocolate — disse ele. — Eu comprei. Eu
disse também que a porta estaria aberta, que não precisava chamar. Fiquei
esperando você chegar, mas…
A
senhora deixou uma lágrima escorrer dos olhos azuis, pegou a embalagem sobre a
mesa e sentiu o chocolate esfarelado dentro.
— E guardou esse tempo todo…? — a voz dela estava embargada,
afogada nas lágrimas que tentava segurar.
— Guardei, como guardei aqui dentro… — ele bateu com a mão
direita no centro do peito, a voz falhando por estar segurando o choro. — Como
guardei… aqui dentro, Lívia, o que sinto por você. O chocolate está vencido há
muito, querida. O tempo o estragou. Mas… mas o que sinto por você… não vence.