sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

O Amor Não Vence


O Amor Não Vence

Era começo de noite. Fazia um pouco de frio, mesmo assim o senhor Gustavo tomou banho morno, como gostava, demorado. Era um dia especial para ele, aguardado por anos. Assim que saiu do banheiro, escolheu a melhor roupa que tinha. O perfume era o mesmo de quando era jovem. Trocou-se com calma e penteou os ralos cabelos grisalhos que o tempo lhe presenteou. Ela não iria reparar em sua calvície, embora isso já não importasse tanto. Não tinha pressa, pois não sabia se sua visita dessa vez cumpriria a promessa de ir vê-lo. Encontrara-a na fila do banco, por acaso do destino, ele pensava. Anos sem vê-la. Não conversaram muito. Poucas palavras foram trocadas. No entanto, ele aproveitou para convidá-la para uma visita.
— Moro no mesmo lugar de sempre — disse ele após ter feito o convite.
— Eu vou sim, pode deixar — disse ela, ao ir embora.
Ele sorriu, porém sem depositar muita fé de que ela o visitaria.
Em casa, enquanto se arrumava, lembrou-se de momentos da juventude, tentando afastar a ponta de tristeza que ainda lhe assolava o coração. Abotoou vagarosamente a camisa, sentindo os botões passarem pelos furos. Quando estava pronto, desceu a escada e rumou para a sala. Na mesa de jantar, acendeu as velas do castiçal com um fósforo, mas não havia preparado nada para comerem, mas havia algo especial que guardara por anos. Em seguida, sentou-se no sofá e ficou a esperar: mais alguns minutos não seriam intoleráveis para quem estava havia décadas esperando por um momento que não chegava, um momento que só acontecia em seus infindáveis sonhos, que o faziam acordar de madrugada para velar suas lembranças.
Quase uma hora depois, a companhia tocou, mas ele não se levantou de imediato. O som agradou-lhe os ouvidos, fazendo-lhe o coração bater forte no peito. Novo toque soou, e ele quase não acreditou que era real. Levantou-se, fazendo força com os braços no sofá para erguer o peso de seus oitenta e três anos. Caminhou a passos lentos até a porta, olhou através do olho-mágico: era ela. Finalmente era ela. O coração descompassou outra vez. Sentiu-se um adolescente. Respirou fundo e girou a chave na fechadura. Era a primeira vez em décadas que destrancava a porta, pois havia muito não a trancava a chave.
A porta aberta deixou-os cara a cara. Ela sorriu; ele sentiu vontade de chorar.
— Entre, Lívia — pediu ele, controlando o choro, saindo um pouco para o lado para dar-lhe caminho.
Após agradecer, ela entrou. Parou dois passos para dentro, olhou em volta, admirada.
— Você reformou a casa — comentou ela. — Está como você sempre disse que a deixaria.
— Sim — respondeu ele, aproximando-se dela. — Fiz isso aos poucos. Demorou um bocado, pois o dinheiro era sempre pouco, mas está aí, arrumada, como eu lhe havia prometido.
Em seguida, caminharam juntos até a sala.
— Sente-se aqui — pediu ele, puxando gentilmente a cadeira da mesa para ela, que se sentou agradecida.
— Ficou bonita a casa — continuou ela, observando. — Do jeito que você gosta.
— Você não estava aqui pra ajudar a opinar… — lembrou ele, e deu a volta na mesa para ficar de frente para ela.
— E você deixaria?
Ele apenas fez que sim com a cabeça, num movimento suave. Olhou-a por alguns instantes; em seguida, dirigiu-se à cozinha, abriu a geladeira, abaixou-se e, numa gaveta, pegou algo em forma de barra. Suspirou sem acreditar no que estava acontecendo. Voltou para a sala e, ao chegar, colocou a barra sobre a mesa e empurrou-a na direção da mulher.
— O que é isso? — perguntou ela, olhando para o que fora posto diante dela. A embalagem estava velha, desbotada, mas denunciava a marca do produto que não era fabricado havia anos.
— Quarenta e oito anos e vinte e seis dias, Lívia.
— Você comprou? Eu… — a voz falhou, perdeu-se em algum lugar do passado.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Você disse que viria e me pediu um chocolate — disse ele. — Eu comprei. Eu disse também que a porta estaria aberta, que não precisava chamar. Fiquei esperando você chegar, mas…
A senhora deixou uma lágrima escorrer dos olhos azuis, pegou a embalagem sobre a mesa e sentiu o chocolate esfarelado dentro.
         — E guardou esse tempo todo…? — a voz dela estava embargada, afogada nas lágrimas que tentava segurar.
         — Guardei, como guardei aqui dentro… — ele bateu com a mão direita no centro do peito, a voz falhando por estar segurando o choro. — Como guardei… aqui dentro, Lívia, o que sinto por você. O chocolate está vencido há muito, querida. O tempo o estragou. Mas… mas o que sinto por você… não vence.



8 comentários :

  1. É isso mesmo
    O verdadeiro amor o tempo nao vence
    O amor tudo espera,tudo suporta,tudo sofre,tudo crer......

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  2. Inspirador episódio do cotidiano. Parabéns por esse flash da realidade, imbuído de fantasia, mas tão prosaico a todos nós.

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