As Taças de Vidro
Maldonha
desistiu de fumar o
restante do cigarro que acabara de acender e apagou-o no cinzeiro, assim que
Pedro voltou do banheiro e lhe cobrou a história.
— Bem, Pedro, vou falar
de um rapaz — começou Maldonha, dando início à sua história, após beber um gole
de vinho. — Ele morava somente com a mãe, pois o pai dele havia falecido fazia
pouco tempo. Ele também tinha uma irmã, mas ela era casada. Era jovem, tinha
vinte e três anos e gostava de farra. Quando a tristeza do luto pela morte do
pai começou a se transformar em saudade, ele não parava um fim de semana sequer
em casa pra fazer companhia à mãe, e ela não dormia por estar sempre pensando
no pior. É estranho, as mães nunca se acostumam… Um filho pode aprontar mil
vezes a mesma coisa, mas elas sempre ficam preocupadas. Compreender o coração
de uma mãe é muito mais difícil do que podemos imaginar, Pedro.
Pedro consentiu com a
cabeça, enquanto abria a lata de cerveja que acabara de ser posta sobre o
balcão. A porção de salame, que pedira havia alguns instantes, chegou em
seguida.
Maldonha prosseguiu:
— Não sei como podem
existir histórias, como vemos por aí, de mães que abandonam seus filhos dias depois
de eles terem nascido. Deve haver alguma força maligna que faça essas mulheres
cometerem tais atrocidades…
Safadeza, pensou Pedro, essa é a força:
safadeza! Trepam como cadelas no cio com seus machos, depois querem alegar
insanidade mental.
—… como essas, mas isso
não importa agora. Vamos falar do rapaz de quem eu estava falando. Numa dessas
vezes, quando ele chegou em casa, teve uma discussão com a mãe. Ela só queria
que ele não fizesse mais aquilo, mas por ser maior de idade, esse rapaz, que se
chamava Henrique, achava que não devia satisfação; não dava a mínima pra
aflição que a mãe sentia.
Maldonha parou de falar
por um instante e, apesar de ter dito que não queria mais salame, pegou um
palito e perguntou a Pedro se podia.
— Claro! — respondeu
Pedro.
Maldonha espetou três
fatias de uma só vez.
Pedro ficou em silêncio,
enquanto esperava o velho mastigar e engolir as fatias de salame. Depois que as
engoliu, Maldonha continuou:
— Apesar de tudo,
Henrique era bom filho, Pedro. Agia daquela forma, mas não era uma má pessoa.
— Sei… — concordou Pedro,
com ironia.
— Ao contrário de você,
ele acreditava em Deus, mas a fé sem obra é morta; tão morta quanto uma fatia
desse salame — apontou com o palito para a bandeja. — E não era bem fé o que
ele sentia, sabe? Ele simplesmente acreditava e ponto. No seu caso, você não
acredita, mas pelo que percebi, não gosta de falar sobre esse assunto.
— Não é questão de não
gostar…
— Eu sei — interferiu
Maldonha —, querer discutir religião gera brigas e nunca ninguém chega a um
acordo. Religião não é pra ser discutida. Também não é uma coisa que tem que
ser posta à força na cabeça de uma pessoa, ainda mais quando essa pessoa já é
adulta.
— É, eu concordo.
— Conheça a verdade, e ela vos libertará — tornou a dizer o velho.
Nesse momento, Pedro
lembrou-se de seu pai. Na verdade, o que lhe veio à cabeça foram imagens de uma
discussão que tivera com ele por causa de religião semanas antes da morte dele.
— Bem, Pedro — continuou
Maldonha, interrompendo os pensamentos de Pedro —, esse rapaz blasfemava, e a
mãe dele lhe pedia que parasse, mas ele não lhe dava ouvidos. É por isso que eu
digo: você, que não acredita em Deus, não se julga melhor do que as pessoas que
acreditam e também não fica dizendo pra todo o mundo o que acha ou deixa de
achar a respeito d’Ele. Não fica defendendo o fato de não acreditar, entendeu? Já
algumas pessoas que dizem acreditar e amar a Deus acima de todas as coisas, não
param de culpá-Lo por tudo que acontece de errado em suas vidas — fez uma pausa
e sorriu com ironia. — Essas pessoas não passam de hipócritas, pois dizem que
amam, mas amam apenas com os lábios, pois o coração delas está longe de Deus.
Maldonha pegou o maço de
cigarros no bolso da camisa. Enquanto observava-o acender mais um, Pedro
percebeu que ele não fumava apenas por vício, era também um hábito, pois acabara
de vê-lo apagar um cigarro ainda inteiro havia poucos instantes.
— O que vou contar agora
aconteceu mais ou menos onze horas da manhã — prosseguiu Maldonha —, quando
Henrique e outros amigos saíram de carro, mas não chegaram ao destino; sofreram
um acidente horrível e fatal. Nem um deles sobreviveu. O carro capotou várias
vezes e só parou de se arrastar pelo asfalto depois que entrou debaixo de um
caminhão.
Pedro admirou-se com
tamanha proporção do acidente, mas estava confuso, não conseguia entender o que
Maldonha queria dizer-lhe com tudo aquilo.
— O que isso tem a ver
com blasfêmia?
Maldonha tragou, soprou a
fumaça para o alto e respondeu:
— Você vai entender.
Então, antes de sair com os amigos, Henrique havia ido ao mercado com a mãe.
Quando Marta estava levando as últimas sacolas pra dentro…
— Marta era a mãe dele? —
perguntou Pedro.
— Exatamente — esclareceu
o velho. — Quando ela levava as sacolas com as compras pra dentro de casa, os
amigos dele chegaram e entraram no carro. Quando Henrique ia dar a partida, a
mãe voltou e ficou furiosa ao ver aqueles rapazes no carro, mas Henrique não
quis saber. Ela ficou furiosa, pois o filho ia sair sem avisar; mesmo assim
disse a seguinte frase: “Que o Espírito Santo os acompanhe!”.
Maldonha espetou mais uma
fatia de salame.
— E então? — Pedro cobrou
a continuidade.
— Eu não sei direito o
que aconteceu — continuou o velho, de boca cheia. — O que sei é que nos
destroços do carro, ou melhor, no porta-malas, foi encontrado um jogo de taças.
— E daí? — Pedro não via
nenhum sentido.
— Nem uma das seis taças
estava quebrada, Pedro. Nem sequer uma delas estava trincada.
— Como?! — Pedro estava
incrédulo. — Como é possível, se você disse que o carro ficou completamente…
— É verdade, Pedro, as
taças estavam inteiras. Intactas!
— Como tem tanta certeza
disso?
— Eu fui ao velório e ao
enterro de Henrique, e a mãe dele, que era uma velha conhecida minha, me contou
tudo; até me mostrou as taças.
Pedro balançou a cabeça e
riu. Nada fazia sentido e, apesar de achar normal uma pessoa ir ao enterro de
outra, estranhou o fato de Maldonha ter ido ao velório e ao enterro desse
rapaz. Na verdade, achava tudo muito fantasioso para ser verdade e, para causar
mais estranheza ainda aos fatos, havia o detalhe de o jogo de taças estar
intacto no porta-malas de um carro que foi destruído em um acidente de
trânsito.
— E essa mulher, onde ela
está agora? — perguntou Pedro, querendo mais informações.
— Isso aconteceu há muito
tempo. Ela morreu algum tempo depois do filho. Na época, eu tive uma longa
conversa com ela, no dia do velório. Foi ela quem me disse toda essa história.
Disse que dias antes do acidente teve uma visão enquanto orava diante de um
pequeno altar que havia em sua casa. Ela não compreendeu a mensagem de sua
visão; disse que ouviu barulhos como se fosse uma batida de carro; ouviu vozes
zombando às gargalhadas de algo. Ela me disse que teve outras visões, mas eu
não me lembro direito pra poder contar pra você. Eram mensagens muito confusas,
e ela não pôde compreender. No dia do acidente, ela havia feito uma compra com
o filho e me disse que havia esquecido algo no porta-malas.
— Eram as taças? —
perguntou Pedro, em tom de afirmação.
— Sim, eram, mas quando
ela voltou pra pegar, o filho já estava de saída. Como já disse, ela ficou
furiosa com ele, mas pediu que o Espírito Santo o acompanhasse. Henrique não
deu muito ouvido ao que ela disse. Quando ele já estava um pouco distante, ela
se lembrou das taças e gritou que havia esquecido algo no porta-malas. Sabe o
que Henrique disse, Pedro?
— É claro que não! Como é
que vou saber?! — exclamou Pedro num misto de curiosidade e irritação.
Maldonha tragou mais uma
vez, prendeu por um instante a fumaça nos pulmões e soprou-a para o alto em seguida. Olhou sério
para Pedro e continuou:
— Henrique parou o carro
e pôs a cabeça pra fora, olhando pra trás. O carro estava um pouco distante de
sua mãe, mas ela pôde ouvir com perfeição cada palavra que ele disse.
— O que ele disse?! —
perguntou Pedro, olhando para Maldonha, que parou de falar para beber um pouco
de vinho. A curiosidade envolvera-o de tal forma que as palavras de sua
pergunta saíram quase num grito.
— Deve ser o Espírito
Santo que a senhora esqueceu no porta-malas, porque aqui dentro do carro não
cabe mais ninguém — disse Maldonha, voz calma, enquanto colocava o copo sobre o
balcão. — Foi exatamente isso o que ele disse, e os amigos dele riram como se
tivessem ouvido a melhor piada da vida deles. De onde estava, Marta pôde ouvir
as gargalhadas, mas não era uma piada, e se tivesse sido, seria a última.
Um silêncio envolveu-os.
Maldonha pegou mais uma fatia de salame, enquanto Pedro, pensativo,
observava-o. Agora ele sabia o que Maldonha queria dizer com aquilo tudo.
O Espírito Santo estava no porta-malas, pensou Pedro, tentando pôr em ordem
cada imagem que a cabeça desenhava. Era como se tentasse reconstruir nos
pensamentos uma cena que não vira. Era chocante, era impressionante e, em meio
às concepções dele, era um absurdo.
Não, eu não posso estar pensando nisso. Seis taças de vidro,
e nem uma delas se quebrou?!
Seis taças…
As taças estavam
inteiras. Nem uma delas estava ao menos trincada. Pedro queria saber como isso
era possível…
… de vidro…
… e não conseguia achar
uma resposta que não fosse a proposta na história contada por Maldonha.
… e nem uma quebrada…
Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas
do carro.
— Isso é loucura! —
disse, olhos arregalados, enquanto tentava afastar qualquer pensamento que o
deixasse cada vez mais atordoado.
— Não, não é — Maldonha estava
calmo, tragou o cigarro e encarou Pedro por entre a nuvem deslizante de fumaça
acinzentada que expeliu lentamente dos pulmões. E, embora a história fosse
absurda, não havia traços de mentira em seu olhar. Segurava o cigarro entre os
dedos indicador e médio da mão direita que estava sobre o balcão. Pedro olhava
para a fina fumaça que subia do cigarro e serpenteava o ar até sumir em sua
parte mais alta.
— Quem encontrou as
taças? — perguntou Pedro, para retomar a conversa.
— Um dos bombeiros. Ele
deve ter questionado tanto o ocorrido quanto você deve estar questionando
agora, mas com uma única diferença: ele não sabia de toda a história.
— Quer dizer então que
Deus castigou esse rapaz e os amigos dele?!
Maldonha não respondeu,
apenas olhou para Pedro, que continuou:
— Que Deus misericordioso
é esse que castiga…?!
— Pedro…? — interferiu
Maldonha, voz branda, colocando a mão sobre o braço do outro como se quisesse
pedir-lhe que parasse de falar, e Pedro parou. — Não foi Deus quem bateu o
carro daqueles jovens. As pessoas são livres pra fazer o que elas quiserem da
vida. Por que atribuir a Deus as consequências de nossos atos? Deus não é
responsável por nossas irresponsabilidades. Escute e tente entender: nós
fazemos julgo de nós mesmos. De uma forma ou de outra, somos responsáveis pelos
nossos atos. Há um versículo na Bíblia, que não me lembro bem onde está… sei
apenas que está, se não me engano, em Gálatas, que diz que com Deus não se
brinca, que o que uma pessoa planta, ela também colherá. Deus é Vida, e é com
essa Vida que não devemos brincar. Você nunca vai colher peras se plantar uma
macieira, Pedro.
Pedro nada disse. Meneou
a cabeça e bateu a mão no ombro de Maldonha, que percebeu que Pedro havia
compreendido o que ele queria dizer.
Ficaram quietos. O velho
bebeu o resto do vinho, pegou uma fatia de salame e colocou-a na boca, olhando
para Pedro, que bebia a sua cerveja. Ficaram assim por longo tempo, como se
Maldonha tivesse dito tudo o que queria dizer, e Pedro, perdido a fala, embora
tivesse um rio de palavras para elaborar inúmeras perguntas. Sabia, entretanto,
que para cada resposta que obtivesse, uma nova pergunta se formaria em sua
cabeça.
Que o Espírito Santo o acompanhe!
Os minutos foram
passando. Ambos ficaram em silêncio tempo suficiente para Pedro beber mais uma
lata de cerveja, e Maldonha, outro copo de vinho, além de fumar mais um
cigarro, que acendeu na guimba do anterior.
Seis taças… inteiras… Capotou várias vezes…, Pedro pensava
sem parar.
E o silêncio se arrastou
de gole em gole, de tragada em tragada e, por algumas vezes, com sabor de
salame. Quando o último gole de cerveja molhou-lhe a garganta, Pedro pôs a mão
direita no ombro de Maldonha, perguntando:
— Vai querer mais alguma
coisa?
Maldonha bebeu o restante
do vinho que estava no copo.
— Só um maço de cigarros
— respondeu.
Pedro levantou-se e pegou
a carteira; Maldonha também se levantou e, quando ia retirar o dinheiro do
bolso, Pedro segurou-lhe a mão, dizendo:
— Pode deixar. Eu pago!
— De forma alguma! —
Maldonha tentou relutar.
— Não insista — Pedro abriu
a carteira e pegou o dinheiro. — Pode pedir o seu cigarro, eu pago!
— Por favor…
— Por favor, digo eu —
depois olhou para o dono do bar. — Quanto deu aqui?
O dono do bar recebeu o
dinheiro da mão de Pedro, que disse:
— Inclua também um maço
de cigarros — olhou para Maldonha. — Que cigarro você fuma mesmo?
— Pall Mall, por favor! —
respondeu o velho.
Pedro recebeu o troco, e
Maldonha, o maço de cigarros. Depois saíram do bar lado a lado.
Caminharam por um tempo em silêncio. Muitas
coisas passavam pela cabeça de Pedro. Mais uma vez, Maldonha o surpreendera, e,
novamente, ele não sabia o que achar; sua cabeça era uma confusão; quando por
alguns momentos pensava em mudar os seus conceitos sobre a existência de Deus,
algo, que cultivava havia anos, rebatia tais pensamentos, dizendo-lhe que
qualquer um poderia ter forjado aquele fato das taças, colocando-as no local do
acidente.
Oh, mas é claro! Um dos bombeiros. Só pode ter sido um dos
bombeiros. Não, é claro que não foi nenhum deles. Pra que a mãe do rapaz
estaria mentindo…? Mentindo! É isso! Maldonha está mentindo,
e fim de papo. Maldonha é um mentiroso, um tremendo de um velho mentiroso.
— Se eu lhe disser algo —
começou a falar Pedro —, você não vai se aborrecer?
— Por que me aborreceria?
Deram mais alguns passos
e pararam em frente à rua que dava para casa de Maldonha.
— Você me contou essa
história só pra me deixar impressionado, não foi? Ela não aconteceu de fato,
não é mesmo?
Decepcionado, Maldonha
balançou a cabeça para os lados. Pedro percebeu o que acabara de fazer e sentiu
vergonha. Sentiu-se também ridículo, pois ninguém o estava obrigando a
acreditar em nada.
Bastava não acreditar e pronto. Por que levar o velho
Maldonha tão a sério? No entanto, algo o confundia, como se necessitasse
acreditar, o que, para ele, era excessivamente estranho.
— Bem, já está tarde —
continuou Pedro, passando a mão direita no rosto, como se tentasse consertar o
que acabara de dizer. — Qualquer dia desses, a gente sai de novo pra beber
junto, certo?
Maldonha comprimiu os
lábios e tornou a balançar a cabeça, dessa vez afirmativamente. Aproximou-se de
Pedro e bateu-lhe a mão no ombro. Depois deu as costas e seguiu seu caminho.
Pedro observou-o entrar na estreita e pouco iluminada rua sem saída; quando não
pôde vê-lo mais, olhou para o relógio. Era tarde da noite, e Lívia deveria
estar preocupada.
Pedro apressou os passos.
Não estava bêbado. Aquelas poucas latas de cerveja não eram suficientes para
tanto. Sentia apenas uma leve tonteira, mas se julgava sóbrio.
Enquanto caminhava,
pensava em tudo o que Maldonha lhe havia dito.
Conheça a verdade, e ela vos libertará.
Logo adiante, a poucos
metros, havia uma árvore. Lembrou-se do exemplo que o velho lhe havia dado
sobre o livre-arbítrio. Quando chegou próximo da árvore, segurou um fino galho
com a mão direita e continuou andando, puxando-o por sobre a cabeça até
arrancá-lo.
Nenhuma folha cai de uma árvore sem que haja o consentimento
de Deus.
Enquanto seguia rumo a
casa, ia puxando as folhas uma a uma do pequeno galho que arrancara da árvore.
Ao passar ao lado de um portão, um cachorro pulou contra as grades, latindo
ferozmente. Pedro estava tão distraído que tomou um susto daqueles e pulou para
o lado, pensando que o cachorro pudesse pegá-lo.
— Cachorro filho-da-puta!!! — gritou de forma
instintiva. — Vá assustar a cadela da sua mãe!
Depois de gritar essas
palavras, sorriu, sentindo o coração bater na boca.
— Au! Au! — fez ele,
inclinado o corpo na direção do portão, tentando imitar o cachorro, um vira-lata
de porte grande e, por sinal, muito bonito. — Au! Au! Grrr!
Depois continuou a andar,
a passos lentos, enquanto ouvia o cachorro latir de modo enlouquecido.
— A cadela da sua mãe —
repetiu para si mesmo, pensando como isso era sugestivo, já que se tratava de
um cachorro. — A cadela da sua mãe — repetiu, e o sorriso se transformou numa
gargalhada.
Quando estava próximo ao
portão de casa, percebeu que do galho que segurava não restou folha. Arrancara
todas. Jogou-o para trás, por sobre o ombro, antes de abrir o portão.
Ao abrir a porta de casa
e entrar, viu Lívia sentada no sofá, lendo. Ela usava uma calça de moletom
cinza-claro e uma camiseta azul. Gostava de usar essa camiseta quando estava em
casa porque a achava confortável, mas nem sequer sairia ao quintal usando-a.
Ela já havia passado da metade do livro que lia. Estava ansiosa para saber o
desfecho, mas, mesmo estando envolvida pela leitura, marcou a página e fechou o
livro.
Pedro trancou a porta,
olhou para a filha e piscou-lhe um olho, e ela percebeu que ele estava um pouco
ébrio.
— E a sua amiga?
Lívia largou o livro
sobre o sofá e levantou-se.
— Faz tempo que foi
embora.
— Eu demorei?
— Eu estava tão entretida
na leitura que nem percebi a hora.
Pedro se aproximou da
filha e beijou-lhe o rosto, orgulhoso.
— Teve alguma ideia pra
começar a escrever seu livro?
— Não, não tive, mas por
que a pergunta?
— Por nada —
desconversou. Achou melhor não dizer que havia comentado com Maldonha que ela
pretendia escrever um livro. — Eu vi você lendo e lembrei. Só isso.
Lívia sorriu e o abraçou.
— Adivinha quem me ligou
— disse ela, exultante.
— Quem?
— O Roberto!
— Roberto… Roberto… —
Pedro tentava se recordar.
— O Roberto foi quem me
deu aquele celular.
— Ah, sim! — exclamou ele,
enquanto caminhava em direção ao sofá, no qual se sentou. — Pelo seu rostinho
de felicidade, ele chamou você pra sair, não foi?
Lívia pegou o livro do
sofá e sentou ao lado esquerdo do pai.
— Ele já havia me
convidado algumas vezes. Na última, eu fiquei de ligar pra dar a resposta e acabei
esquecendo. Foi no dia em que fomos ao cinema.
— Claro, claro! — disse
Pedro, mudando a voz para fazer graça —, o Pedrão aqui é irresistível.
Lívia sorriu e bateu com
o livro no braço do pai.
— Para de brincadeira,
pai! — fez um instante de silêncio. — Tudo bem, eu confesso que fiquei tão
feliz de sair com você que acabei esquecendo. O Roberto passou o dia ligando
aqui pra casa…
— Coitado!
—… e não havia ninguém
pra atender.
— Ele deve ter ficado
muito chateado. Eu ficaria.
— Ficou mesmo — Lívia se
mexeu no sofá e sentou-se sobre a perna direita para ficar quase de frente para
o pai —, mas depois me deu um celular; assim ficará mais fácil pra ele falar
comigo.
— Como é esse rapaz? —
Pedro estava preocupado com a filha. Lembrava-se muito bem do último rapaz que
ela namorou.
— Ele é um colega de
turma na faculdade. É legal. É bonito!
Pedro pôs a mão direita
no rosto da filha. Os olhos dela brilhavam ao falar do rapaz.
— Cuidado pra não se
machucar, meu bem — disse ele, em tom carinhoso. Estava realmente preocupado,
mas reconhecia que a filha sabia se cuidar.
Lívia beijou o rosto do
pai e ficou olhando-o por alguns segundos. Depois, dizendo que o amava muito,
abraçou-o com muita força.
— Eu também amo você —
secundou ele, sentindo uma inexplicável
sensação de perda no peito.
Após o abraço, Pedro levantou-se
e subiu para tomar banho. Lívia voltou à leitura, louca para terminar logo de
ler o livro.
Pedro passou tanto tempo
no banho que Lívia não estava mais na sala quando ele saiu do banheiro. Depois
de tirar o roupão, ele vestiu apenas uma bermuda e ficou sem camiseta. Com os
cabelos ainda molhados e despenteados, foi ao quarto da filha. A porta estava
apenas encostada, e a luz, acesa; Lívia dormia. Adormecera com o livro aberto
sobre o peito. Pedro pegou-o com cuidado, olhou o título, Contágio Criminoso, e com um marcador de páginas com um desenho das
Meninas Superpoderosas, que estava sobre a cabeceira da cama, marcou a
página, fechou o livro e colocou-o sobre o criado-mudo ao lado. Contemplou por
um instante a filha e lembrou-se de quando ela era pequena, e ele contava-lhe
histórias infantis para dormir, que nada se assemelhavam com O Cemitério ou O Iluminado, obras de Stephen King, que ela lera recentemente.
A Valsa. As taças de vidro…, foi o que ocorreu na cabeça de Pedro,
enquanto colocava um lençol sobre a filha. Depois se afastou, apagou a luz,
saiu e encostou a porta devagar para não fazer barulho. Novamente uma sensação de perda apertou-lhe o peito e
um calafrio envolveu-lhe o corpo.
O que está acontecendo com você, Pedro? O quê?
Em meio ao pensamento,
foi para o quarto, caminhou para o banheiro, no qual acabara de tomar banho,
pegou a toalha e secou os cabelos. Enquanto olhava para o espelho, tentava
organizar os pensamentos. Tudo o que ouvira de Maldonha lhe havia tirado o sono;
estava elétrico demais para poder dormir, e, para piorar, o salame lhe havia
dado uma azia tremenda. Sabia que não deveria comer coisas do tipo, pois sempre
sentia essa queimação que estava sentindo.
Antes de se deitar, foi à
cozinha; não estava aguentando aquele gosto de salame que a cada instante
subia-lhe pela garganta em doses amargas. Sobre a geladeira estava guardado um
sachê de antiácido. Pegou-o e despejou-o dentro de meio copo com água. Ficou à
espera da completa dissolução, enquanto observava as bolhas formarem uma fina
espuma que subia até quase a borda do copo. Em seguida, virou o líquido
garganta abaixo em grandes goles. Resmungando, voltou para o quarto.
Maldonha
desistiu de fumar o
restante do cigarro que acabara de acender e apagou-o no cinzeiro, assim que
Pedro voltou do banheiro e lhe cobrou a história.
— Bem, Pedro, vou falar
de um rapaz — começou Maldonha, dando início à sua história, após beber um gole
de vinho. — Ele morava somente com a mãe, pois o pai dele havia falecido fazia
pouco tempo. Ele também tinha uma irmã, mas ela era casada. Era jovem, tinha
vinte e três anos e gostava de farra. Quando a tristeza do luto pela morte do
pai começou a se transformar em saudade, ele não parava um fim de semana sequer
em casa pra fazer companhia à mãe, e ela não dormia por estar sempre pensando
no pior. É estranho, as mães nunca se acostumam… Um filho pode aprontar mil
vezes a mesma coisa, mas elas sempre ficam preocupadas. Compreender o coração
de uma mãe é muito mais difícil do que podemos imaginar, Pedro.
Pedro consentiu com a
cabeça, enquanto abria a lata de cerveja que acabara de ser posta sobre o
balcão. A porção de salame, que pedira havia alguns instantes, chegou em
seguida.
Maldonha prosseguiu:
— Não sei como podem
existir histórias, como vemos por aí, de mães que abandonam seus filhos dias depois
de eles terem nascido. Deve haver alguma força maligna que faça essas mulheres
cometerem tais atrocidades…
Safadeza, pensou Pedro, essa é a força:
safadeza! Trepam como cadelas no cio com seus machos, depois querem alegar
insanidade mental.
—… como essas, mas isso
não importa agora. Vamos falar do rapaz de quem eu estava falando. Numa dessas
vezes, quando ele chegou em casa, teve uma discussão com a mãe. Ela só queria
que ele não fizesse mais aquilo, mas por ser maior de idade, esse rapaz, que se
chamava Henrique, achava que não devia satisfação; não dava a mínima pra
aflição que a mãe sentia.
Maldonha parou de falar
por um instante e, apesar de ter dito que não queria mais salame, pegou um
palito e perguntou a Pedro se podia.
— Claro! — respondeu
Pedro.
Maldonha espetou três
fatias de uma só vez.
Pedro ficou em silêncio,
enquanto esperava o velho mastigar e engolir as fatias de salame. Depois que as
engoliu, Maldonha continuou:
— Apesar de tudo,
Henrique era bom filho, Pedro. Agia daquela forma, mas não era uma má pessoa.
— Sei… — concordou Pedro,
com ironia.
— Ao contrário de você,
ele acreditava em Deus, mas a fé sem obra é morta; tão morta quanto uma fatia
desse salame — apontou com o palito para a bandeja. — E não era bem fé o que
ele sentia, sabe? Ele simplesmente acreditava e ponto. No seu caso, você não
acredita, mas pelo que percebi, não gosta de falar sobre esse assunto.
— Não é questão de não
gostar…
— Eu sei — interferiu
Maldonha —, querer discutir religião gera brigas e nunca ninguém chega a um
acordo. Religião não é pra ser discutida. Também não é uma coisa que tem que
ser posta à força na cabeça de uma pessoa, ainda mais quando essa pessoa já é
adulta.
— É, eu concordo.
— Conheça a verdade, e ela vos libertará — tornou a dizer o velho.
Nesse momento, Pedro
lembrou-se de seu pai. Na verdade, o que lhe veio à cabeça foram imagens de uma
discussão que tivera com ele por causa de religião semanas antes da morte dele.
— Bem, Pedro — continuou
Maldonha, interrompendo os pensamentos de Pedro —, esse rapaz blasfemava, e a
mãe dele lhe pedia que parasse, mas ele não lhe dava ouvidos. É por isso que eu
digo: você, que não acredita em Deus, não se julga melhor do que as pessoas que
acreditam e também não fica dizendo pra todo o mundo o que acha ou deixa de
achar a respeito d’Ele. Não fica defendendo o fato de não acreditar, entendeu? Já
algumas pessoas que dizem acreditar e amar a Deus acima de todas as coisas, não
param de culpá-Lo por tudo que acontece de errado em suas vidas — fez uma pausa
e sorriu com ironia. — Essas pessoas não passam de hipócritas, pois dizem que
amam, mas amam apenas com os lábios, pois o coração delas está longe de Deus.
Maldonha pegou o maço de
cigarros no bolso da camisa. Enquanto observava-o acender mais um, Pedro
percebeu que ele não fumava apenas por vício, era também um hábito, pois acabara
de vê-lo apagar um cigarro ainda inteiro havia poucos instantes.
— O que vou contar agora
aconteceu mais ou menos onze horas da manhã — prosseguiu Maldonha —, quando
Henrique e outros amigos saíram de carro, mas não chegaram ao destino; sofreram
um acidente horrível e fatal. Nem um deles sobreviveu. O carro capotou várias
vezes e só parou de se arrastar pelo asfalto depois que entrou debaixo de um
caminhão.
Pedro admirou-se com
tamanha proporção do acidente, mas estava confuso, não conseguia entender o que
Maldonha queria dizer-lhe com tudo aquilo.
— O que isso tem a ver
com blasfêmia?
Maldonha tragou, soprou a
fumaça para o alto e respondeu:
— Você vai entender.
Então, antes de sair com os amigos, Henrique havia ido ao mercado com a mãe.
Quando Marta estava levando as últimas sacolas pra dentro…
— Marta era a mãe dele? —
perguntou Pedro.
— Exatamente — esclareceu
o velho. — Quando ela levava as sacolas com as compras pra dentro de casa, os
amigos dele chegaram e entraram no carro. Quando Henrique ia dar a partida, a
mãe voltou e ficou furiosa ao ver aqueles rapazes no carro, mas Henrique não
quis saber. Ela ficou furiosa, pois o filho ia sair sem avisar; mesmo assim
disse a seguinte frase: “Que o Espírito Santo os acompanhe!”.
Maldonha espetou mais uma
fatia de salame.
— E então? — Pedro cobrou
a continuidade.
— Eu não sei direito o
que aconteceu — continuou o velho, de boca cheia. — O que sei é que nos
destroços do carro, ou melhor, no porta-malas, foi encontrado um jogo de taças.
— E daí? — Pedro não via
nenhum sentido.
— Nem uma das seis taças
estava quebrada, Pedro. Nem sequer uma delas estava trincada.
— Como?! — Pedro estava
incrédulo. — Como é possível, se você disse que o carro ficou completamente…
— É verdade, Pedro, as
taças estavam inteiras. Intactas!
— Como tem tanta certeza
disso?
— Eu fui ao velório e ao
enterro de Henrique, e a mãe dele, que era uma velha conhecida minha, me contou
tudo; até me mostrou as taças.
Pedro balançou a cabeça e
riu. Nada fazia sentido e, apesar de achar normal uma pessoa ir ao enterro de
outra, estranhou o fato de Maldonha ter ido ao velório e ao enterro desse
rapaz. Na verdade, achava tudo muito fantasioso para ser verdade e, para causar
mais estranheza ainda aos fatos, havia o detalhe de o jogo de taças estar
intacto no porta-malas de um carro que foi destruído em um acidente de
trânsito.
— E essa mulher, onde ela
está agora? — perguntou Pedro, querendo mais informações.
— Isso aconteceu há muito
tempo. Ela morreu algum tempo depois do filho. Na época, eu tive uma longa
conversa com ela, no dia do velório. Foi ela quem me disse toda essa história.
Disse que dias antes do acidente teve uma visão enquanto orava diante de um
pequeno altar que havia em sua casa. Ela não compreendeu a mensagem de sua
visão; disse que ouviu barulhos como se fosse uma batida de carro; ouviu vozes
zombando às gargalhadas de algo. Ela me disse que teve outras visões, mas eu
não me lembro direito pra poder contar pra você. Eram mensagens muito confusas,
e ela não pôde compreender. No dia do acidente, ela havia feito uma compra com
o filho e me disse que havia esquecido algo no porta-malas.
— Eram as taças? —
perguntou Pedro, em tom de afirmação.
— Sim, eram, mas quando
ela voltou pra pegar, o filho já estava de saída. Como já disse, ela ficou
furiosa com ele, mas pediu que o Espírito Santo o acompanhasse. Henrique não
deu muito ouvido ao que ela disse. Quando ele já estava um pouco distante, ela
se lembrou das taças e gritou que havia esquecido algo no porta-malas. Sabe o
que Henrique disse, Pedro?
— É claro que não! Como é
que vou saber?! — exclamou Pedro num misto de curiosidade e irritação.
Maldonha tragou mais uma
vez, prendeu por um instante a fumaça nos pulmões e soprou-a para o alto em seguida. Olhou sério
para Pedro e continuou:
— Henrique parou o carro
e pôs a cabeça pra fora, olhando pra trás. O carro estava um pouco distante de
sua mãe, mas ela pôde ouvir com perfeição cada palavra que ele disse.
— O que ele disse?! —
perguntou Pedro, olhando para Maldonha, que parou de falar para beber um pouco
de vinho. A curiosidade envolvera-o de tal forma que as palavras de sua
pergunta saíram quase num grito.
— Deve ser o Espírito
Santo que a senhora esqueceu no porta-malas, porque aqui dentro do carro não
cabe mais ninguém — disse Maldonha, voz calma, enquanto colocava o copo sobre o
balcão. — Foi exatamente isso o que ele disse, e os amigos dele riram como se
tivessem ouvido a melhor piada da vida deles. De onde estava, Marta pôde ouvir
as gargalhadas, mas não era uma piada, e se tivesse sido, seria a última.
Um silêncio envolveu-os.
Maldonha pegou mais uma fatia de salame, enquanto Pedro, pensativo,
observava-o. Agora ele sabia o que Maldonha queria dizer com aquilo tudo.
O Espírito Santo estava no porta-malas, pensou Pedro, tentando pôr em ordem
cada imagem que a cabeça desenhava. Era como se tentasse reconstruir nos
pensamentos uma cena que não vira. Era chocante, era impressionante e, em meio
às concepções dele, era um absurdo.
Não, eu não posso estar pensando nisso. Seis taças de vidro,
e nem uma delas se quebrou?!
Seis taças…
As taças estavam
inteiras. Nem uma delas estava ao menos trincada. Pedro queria saber como isso
era possível…
… de vidro…
… e não conseguia achar
uma resposta que não fosse a proposta na história contada por Maldonha.
… e nem uma quebrada…
Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas
do carro.
— Isso é loucura! —
disse, olhos arregalados, enquanto tentava afastar qualquer pensamento que o
deixasse cada vez mais atordoado.
— Não, não é — Maldonha estava
calmo, tragou o cigarro e encarou Pedro por entre a nuvem deslizante de fumaça
acinzentada que expeliu lentamente dos pulmões. E, embora a história fosse
absurda, não havia traços de mentira em seu olhar. Segurava o cigarro entre os
dedos indicador e médio da mão direita que estava sobre o balcão. Pedro olhava
para a fina fumaça que subia do cigarro e serpenteava o ar até sumir em sua
parte mais alta.
— Quem encontrou as
taças? — perguntou Pedro, para retomar a conversa.
— Um dos bombeiros. Ele
deve ter questionado tanto o ocorrido quanto você deve estar questionando
agora, mas com uma única diferença: ele não sabia de toda a história.
— Quer dizer então que
Deus castigou esse rapaz e os amigos dele?!
Maldonha não respondeu,
apenas olhou para Pedro, que continuou:
— Que Deus misericordioso
é esse que castiga…?!
— Pedro…? — interferiu
Maldonha, voz branda, colocando a mão sobre o braço do outro como se quisesse
pedir-lhe que parasse de falar, e Pedro parou. — Não foi Deus quem bateu o
carro daqueles jovens. As pessoas são livres pra fazer o que elas quiserem da
vida. Por que atribuir a Deus as consequências de nossos atos? Deus não é
responsável por nossas irresponsabilidades. Escute e tente entender: nós
fazemos julgo de nós mesmos. De uma forma ou de outra, somos responsáveis pelos
nossos atos. Há um versículo na Bíblia, que não me lembro bem onde está… sei
apenas que está, se não me engano, em Gálatas, que diz que com Deus não se
brinca, que o que uma pessoa planta, ela também colherá. Deus é Vida, e é com
essa Vida que não devemos brincar. Você nunca vai colher peras se plantar uma
macieira, Pedro.
Pedro nada disse. Meneou
a cabeça e bateu a mão no ombro de Maldonha, que percebeu que Pedro havia
compreendido o que ele queria dizer.
Ficaram quietos. O velho
bebeu o resto do vinho, pegou uma fatia de salame e colocou-a na boca, olhando
para Pedro, que bebia a sua cerveja. Ficaram assim por longo tempo, como se
Maldonha tivesse dito tudo o que queria dizer, e Pedro, perdido a fala, embora
tivesse um rio de palavras para elaborar inúmeras perguntas. Sabia, entretanto,
que para cada resposta que obtivesse, uma nova pergunta se formaria em sua
cabeça.
Que o Espírito Santo o acompanhe!
Os minutos foram
passando. Ambos ficaram em silêncio tempo suficiente para Pedro beber mais uma
lata de cerveja, e Maldonha, outro copo de vinho, além de fumar mais um
cigarro, que acendeu na guimba do anterior.
Seis taças… inteiras… Capotou várias vezes…, Pedro pensava
sem parar.
E o silêncio se arrastou
de gole em gole, de tragada em tragada e, por algumas vezes, com sabor de
salame. Quando o último gole de cerveja molhou-lhe a garganta, Pedro pôs a mão
direita no ombro de Maldonha, perguntando:
— Vai querer mais alguma
coisa?
Maldonha bebeu o restante
do vinho que estava no copo.
— Só um maço de cigarros
— respondeu.
Pedro levantou-se e pegou
a carteira; Maldonha também se levantou e, quando ia retirar o dinheiro do
bolso, Pedro segurou-lhe a mão, dizendo:
— Pode deixar. Eu pago!
— De forma alguma! —
Maldonha tentou relutar.
— Não insista — Pedro abriu
a carteira e pegou o dinheiro. — Pode pedir o seu cigarro, eu pago!
— Por favor…
— Por favor, digo eu —
depois olhou para o dono do bar. — Quanto deu aqui?
O dono do bar recebeu o
dinheiro da mão de Pedro, que disse:
— Inclua também um maço
de cigarros — olhou para Maldonha. — Que cigarro você fuma mesmo?
— Pall Mall, por favor! —
respondeu o velho.
Pedro recebeu o troco, e
Maldonha, o maço de cigarros. Depois saíram do bar lado a lado.
Caminharam por um tempo em silêncio. Muitas
coisas passavam pela cabeça de Pedro. Mais uma vez, Maldonha o surpreendera, e,
novamente, ele não sabia o que achar; sua cabeça era uma confusão; quando por
alguns momentos pensava em mudar os seus conceitos sobre a existência de Deus,
algo, que cultivava havia anos, rebatia tais pensamentos, dizendo-lhe que
qualquer um poderia ter forjado aquele fato das taças, colocando-as no local do
acidente.
Oh, mas é claro! Um dos bombeiros. Só pode ter sido um dos
bombeiros. Não, é claro que não foi nenhum deles. Pra que a mãe do rapaz
estaria mentindo…? Mentindo! É isso! Maldonha está mentindo,
e fim de papo. Maldonha é um mentiroso, um tremendo de um velho mentiroso.
— Se eu lhe disser algo —
começou a falar Pedro —, você não vai se aborrecer?
— Por que me aborreceria?
Deram mais alguns passos
e pararam em frente à rua que dava para casa de Maldonha.
— Você me contou essa
história só pra me deixar impressionado, não foi? Ela não aconteceu de fato,
não é mesmo?
Decepcionado, Maldonha
balançou a cabeça para os lados. Pedro percebeu o que acabara de fazer e sentiu
vergonha. Sentiu-se também ridículo, pois ninguém o estava obrigando a
acreditar em nada.
Bastava não acreditar e pronto. Por que levar o velho
Maldonha tão a sério? No entanto, algo o confundia, como se necessitasse
acreditar, o que, para ele, era excessivamente estranho.
— Bem, já está tarde —
continuou Pedro, passando a mão direita no rosto, como se tentasse consertar o
que acabara de dizer. — Qualquer dia desses, a gente sai de novo pra beber
junto, certo?
Maldonha comprimiu os
lábios e tornou a balançar a cabeça, dessa vez afirmativamente. Aproximou-se de
Pedro e bateu-lhe a mão no ombro. Depois deu as costas e seguiu seu caminho.
Pedro observou-o entrar na estreita e pouco iluminada rua sem saída; quando não
pôde vê-lo mais, olhou para o relógio. Era tarde da noite, e Lívia deveria
estar preocupada.
Pedro apressou os passos.
Não estava bêbado. Aquelas poucas latas de cerveja não eram suficientes para
tanto. Sentia apenas uma leve tonteira, mas se julgava sóbrio.
Enquanto caminhava,
pensava em tudo o que Maldonha lhe havia dito.
Conheça a verdade, e ela vos libertará.
Logo adiante, a poucos
metros, havia uma árvore. Lembrou-se do exemplo que o velho lhe havia dado
sobre o livre-arbítrio. Quando chegou próximo da árvore, segurou um fino galho
com a mão direita e continuou andando, puxando-o por sobre a cabeça até
arrancá-lo.
Nenhuma folha cai de uma árvore sem que haja o consentimento
de Deus.
Enquanto seguia rumo a
casa, ia puxando as folhas uma a uma do pequeno galho que arrancara da árvore.
Ao passar ao lado de um portão, um cachorro pulou contra as grades, latindo
ferozmente. Pedro estava tão distraído que tomou um susto daqueles e pulou para
o lado, pensando que o cachorro pudesse pegá-lo.
— Cachorro filho-da-puta!!! — gritou de forma
instintiva. — Vá assustar a cadela da sua mãe!
Depois de gritar essas
palavras, sorriu, sentindo o coração bater na boca.
— Au! Au! — fez ele,
inclinado o corpo na direção do portão, tentando imitar o cachorro, um vira-lata
de porte grande e, por sinal, muito bonito. — Au! Au! Grrr!
Depois continuou a andar,
a passos lentos, enquanto ouvia o cachorro latir de modo enlouquecido.
— A cadela da sua mãe —
repetiu para si mesmo, pensando como isso era sugestivo, já que se tratava de
um cachorro. — A cadela da sua mãe — repetiu, e o sorriso se transformou numa
gargalhada.
Quando estava próximo ao
portão de casa, percebeu que do galho que segurava não restou folha. Arrancara
todas. Jogou-o para trás, por sobre o ombro, antes de abrir o portão.
Ao abrir a porta de casa
e entrar, viu Lívia sentada no sofá, lendo. Ela usava uma calça de moletom
cinza-claro e uma camiseta azul. Gostava de usar essa camiseta quando estava em
casa porque a achava confortável, mas nem sequer sairia ao quintal usando-a.
Ela já havia passado da metade do livro que lia. Estava ansiosa para saber o
desfecho, mas, mesmo estando envolvida pela leitura, marcou a página e fechou o
livro.
Pedro trancou a porta,
olhou para a filha e piscou-lhe um olho, e ela percebeu que ele estava um pouco
ébrio.
— E a sua amiga?
Lívia largou o livro
sobre o sofá e levantou-se.
— Faz tempo que foi
embora.
— Eu demorei?
— Eu estava tão entretida
na leitura que nem percebi a hora.
Pedro se aproximou da
filha e beijou-lhe o rosto, orgulhoso.
— Teve alguma ideia pra
começar a escrever seu livro?
— Não, não tive, mas por
que a pergunta?
— Por nada —
desconversou. Achou melhor não dizer que havia comentado com Maldonha que ela
pretendia escrever um livro. — Eu vi você lendo e lembrei. Só isso.
Lívia sorriu e o abraçou.
— Adivinha quem me ligou
— disse ela, exultante.
— Quem?
— O Roberto!
— Roberto… Roberto… —
Pedro tentava se recordar.
— O Roberto foi quem me
deu aquele celular.
— Ah, sim! — exclamou ele,
enquanto caminhava em direção ao sofá, no qual se sentou. — Pelo seu rostinho
de felicidade, ele chamou você pra sair, não foi?
Lívia pegou o livro do
sofá e sentou ao lado esquerdo do pai.
— Ele já havia me
convidado algumas vezes. Na última, eu fiquei de ligar pra dar a resposta e acabei
esquecendo. Foi no dia em que fomos ao cinema.
— Claro, claro! — disse
Pedro, mudando a voz para fazer graça —, o Pedrão aqui é irresistível.
Lívia sorriu e bateu com
o livro no braço do pai.
— Para de brincadeira,
pai! — fez um instante de silêncio. — Tudo bem, eu confesso que fiquei tão
feliz de sair com você que acabei esquecendo. O Roberto passou o dia ligando
aqui pra casa…
— Coitado!
—… e não havia ninguém
pra atender.
— Ele deve ter ficado
muito chateado. Eu ficaria.
— Ficou mesmo — Lívia se
mexeu no sofá e sentou-se sobre a perna direita para ficar quase de frente para
o pai —, mas depois me deu um celular; assim ficará mais fácil pra ele falar
comigo.
— Como é esse rapaz? —
Pedro estava preocupado com a filha. Lembrava-se muito bem do último rapaz que
ela namorou.
— Ele é um colega de
turma na faculdade. É legal. É bonito!
Pedro pôs a mão direita
no rosto da filha. Os olhos dela brilhavam ao falar do rapaz.
— Cuidado pra não se
machucar, meu bem — disse ele, em tom carinhoso. Estava realmente preocupado,
mas reconhecia que a filha sabia se cuidar.
Lívia beijou o rosto do
pai e ficou olhando-o por alguns segundos. Depois, dizendo que o amava muito,
abraçou-o com muita força.
— Eu também amo você —
secundou ele, sentindo uma inexplicável
sensação de perda no peito.
Após o abraço, Pedro levantou-se
e subiu para tomar banho. Lívia voltou à leitura, louca para terminar logo de
ler o livro.
Pedro passou tanto tempo
no banho que Lívia não estava mais na sala quando ele saiu do banheiro. Depois
de tirar o roupão, ele vestiu apenas uma bermuda e ficou sem camiseta. Com os
cabelos ainda molhados e despenteados, foi ao quarto da filha. A porta estava
apenas encostada, e a luz, acesa; Lívia dormia. Adormecera com o livro aberto
sobre o peito. Pedro pegou-o com cuidado, olhou o título, Contágio Criminoso, e com um marcador de páginas com um desenho das
Meninas Superpoderosas, que estava sobre a cabeceira da cama, marcou a
página, fechou o livro e colocou-o sobre o criado-mudo ao lado. Contemplou por
um instante a filha e lembrou-se de quando ela era pequena, e ele contava-lhe
histórias infantis para dormir, que nada se assemelhavam com O Cemitério ou O Iluminado, obras de Stephen King, que ela lera recentemente.
A Valsa. As taças de vidro…, foi o que ocorreu na cabeça de Pedro,
enquanto colocava um lençol sobre a filha. Depois se afastou, apagou a luz,
saiu e encostou a porta devagar para não fazer barulho. Novamente uma sensação de perda apertou-lhe o peito e
um calafrio envolveu-lhe o corpo.
O que está acontecendo com você, Pedro? O quê?
Em meio ao pensamento,
foi para o quarto, caminhou para o banheiro, no qual acabara de tomar banho,
pegou a toalha e secou os cabelos. Enquanto olhava para o espelho, tentava
organizar os pensamentos. Tudo o que ouvira de Maldonha lhe havia tirado o sono;
estava elétrico demais para poder dormir, e, para piorar, o salame lhe havia
dado uma azia tremenda. Sabia que não deveria comer coisas do tipo, pois sempre
sentia essa queimação que estava sentindo.
Antes de se deitar, foi à
cozinha; não estava aguentando aquele gosto de salame que a cada instante
subia-lhe pela garganta em doses amargas. Sobre a geladeira estava guardado um
sachê de antiácido. Pegou-o e despejou-o dentro de meio copo com água. Ficou à
espera da completa dissolução, enquanto observava as bolhas formarem uma fina
espuma que subia até quase a borda do copo. Em seguida, virou o líquido
garganta abaixo em grandes goles. Resmungando, voltou para o quarto.
Maldonha
desistiu de fumar o
restante do cigarro que acabara de acender e apagou-o no cinzeiro, assim que
Pedro voltou do banheiro e lhe cobrou a história.
— Bem, Pedro, vou falar
de um rapaz — começou Maldonha, dando início à sua história, após beber um gole
de vinho. — Ele morava somente com a mãe, pois o pai dele havia falecido fazia
pouco tempo. Ele também tinha uma irmã, mas ela era casada. Era jovem, tinha
vinte e três anos e gostava de farra. Quando a tristeza do luto pela morte do
pai começou a se transformar em saudade, ele não parava um fim de semana sequer
em casa pra fazer companhia à mãe, e ela não dormia por estar sempre pensando
no pior. É estranho, as mães nunca se acostumam… Um filho pode aprontar mil
vezes a mesma coisa, mas elas sempre ficam preocupadas. Compreender o coração
de uma mãe é muito mais difícil do que podemos imaginar, Pedro.
Pedro consentiu com a
cabeça, enquanto abria a lata de cerveja que acabara de ser posta sobre o
balcão. A porção de salame, que pedira havia alguns instantes, chegou em
seguida.
Maldonha prosseguiu:
— Não sei como podem
existir histórias, como vemos por aí, de mães que abandonam seus filhos dias depois
de eles terem nascido. Deve haver alguma força maligna que faça essas mulheres
cometerem tais atrocidades…
Safadeza, pensou Pedro, essa é a força:
safadeza! Trepam como cadelas no cio com seus machos, depois querem alegar
insanidade mental.
—… como essas, mas isso
não importa agora. Vamos falar do rapaz de quem eu estava falando. Numa dessas
vezes, quando ele chegou em casa, teve uma discussão com a mãe. Ela só queria
que ele não fizesse mais aquilo, mas por ser maior de idade, esse rapaz, que se
chamava Henrique, achava que não devia satisfação; não dava a mínima pra
aflição que a mãe sentia.
Maldonha parou de falar
por um instante e, apesar de ter dito que não queria mais salame, pegou um
palito e perguntou a Pedro se podia.
— Claro! — respondeu
Pedro.
Maldonha espetou três
fatias de uma só vez.
Pedro ficou em silêncio,
enquanto esperava o velho mastigar e engolir as fatias de salame. Depois que as
engoliu, Maldonha continuou:
— Apesar de tudo,
Henrique era bom filho, Pedro. Agia daquela forma, mas não era uma má pessoa.
— Sei… — concordou Pedro,
com ironia.
— Ao contrário de você,
ele acreditava em Deus, mas a fé sem obra é morta; tão morta quanto uma fatia
desse salame — apontou com o palito para a bandeja. — E não era bem fé o que
ele sentia, sabe? Ele simplesmente acreditava e ponto. No seu caso, você não
acredita, mas pelo que percebi, não gosta de falar sobre esse assunto.
— Não é questão de não
gostar…
— Eu sei — interferiu
Maldonha —, querer discutir religião gera brigas e nunca ninguém chega a um
acordo. Religião não é pra ser discutida. Também não é uma coisa que tem que
ser posta à força na cabeça de uma pessoa, ainda mais quando essa pessoa já é
adulta.
— É, eu concordo.
— Conheça a verdade, e ela vos libertará — tornou a dizer o velho.
Nesse momento, Pedro
lembrou-se de seu pai. Na verdade, o que lhe veio à cabeça foram imagens de uma
discussão que tivera com ele por causa de religião semanas antes da morte dele.
— Bem, Pedro — continuou
Maldonha, interrompendo os pensamentos de Pedro —, esse rapaz blasfemava, e a
mãe dele lhe pedia que parasse, mas ele não lhe dava ouvidos. É por isso que eu
digo: você, que não acredita em Deus, não se julga melhor do que as pessoas que
acreditam e também não fica dizendo pra todo o mundo o que acha ou deixa de
achar a respeito d’Ele. Não fica defendendo o fato de não acreditar, entendeu? Já
algumas pessoas que dizem acreditar e amar a Deus acima de todas as coisas, não
param de culpá-Lo por tudo que acontece de errado em suas vidas — fez uma pausa
e sorriu com ironia. — Essas pessoas não passam de hipócritas, pois dizem que
amam, mas amam apenas com os lábios, pois o coração delas está longe de Deus.
Maldonha pegou o maço de
cigarros no bolso da camisa. Enquanto observava-o acender mais um, Pedro
percebeu que ele não fumava apenas por vício, era também um hábito, pois acabara
de vê-lo apagar um cigarro ainda inteiro havia poucos instantes.
— O que vou contar agora
aconteceu mais ou menos onze horas da manhã — prosseguiu Maldonha —, quando
Henrique e outros amigos saíram de carro, mas não chegaram ao destino; sofreram
um acidente horrível e fatal. Nem um deles sobreviveu. O carro capotou várias
vezes e só parou de se arrastar pelo asfalto depois que entrou debaixo de um
caminhão.
Pedro admirou-se com
tamanha proporção do acidente, mas estava confuso, não conseguia entender o que
Maldonha queria dizer-lhe com tudo aquilo.
— O que isso tem a ver
com blasfêmia?
Maldonha tragou, soprou a
fumaça para o alto e respondeu:
— Você vai entender.
Então, antes de sair com os amigos, Henrique havia ido ao mercado com a mãe.
Quando Marta estava levando as últimas sacolas pra dentro…
— Marta era a mãe dele? —
perguntou Pedro.
— Exatamente — esclareceu
o velho. — Quando ela levava as sacolas com as compras pra dentro de casa, os
amigos dele chegaram e entraram no carro. Quando Henrique ia dar a partida, a
mãe voltou e ficou furiosa ao ver aqueles rapazes no carro, mas Henrique não
quis saber. Ela ficou furiosa, pois o filho ia sair sem avisar; mesmo assim
disse a seguinte frase: “Que o Espírito Santo os acompanhe!”.
Maldonha espetou mais uma
fatia de salame.
— E então? — Pedro cobrou
a continuidade.
— Eu não sei direito o
que aconteceu — continuou o velho, de boca cheia. — O que sei é que nos
destroços do carro, ou melhor, no porta-malas, foi encontrado um jogo de taças.
— E daí? — Pedro não via
nenhum sentido.
— Nem uma das seis taças
estava quebrada, Pedro. Nem sequer uma delas estava trincada.
— Como?! — Pedro estava
incrédulo. — Como é possível, se você disse que o carro ficou completamente…
— É verdade, Pedro, as
taças estavam inteiras. Intactas!
— Como tem tanta certeza
disso?
— Eu fui ao velório e ao
enterro de Henrique, e a mãe dele, que era uma velha conhecida minha, me contou
tudo; até me mostrou as taças.
Pedro balançou a cabeça e
riu. Nada fazia sentido e, apesar de achar normal uma pessoa ir ao enterro de
outra, estranhou o fato de Maldonha ter ido ao velório e ao enterro desse
rapaz. Na verdade, achava tudo muito fantasioso para ser verdade e, para causar
mais estranheza ainda aos fatos, havia o detalhe de o jogo de taças estar
intacto no porta-malas de um carro que foi destruído em um acidente de
trânsito.
— E essa mulher, onde ela
está agora? — perguntou Pedro, querendo mais informações.
— Isso aconteceu há muito
tempo. Ela morreu algum tempo depois do filho. Na época, eu tive uma longa
conversa com ela, no dia do velório. Foi ela quem me disse toda essa história.
Disse que dias antes do acidente teve uma visão enquanto orava diante de um
pequeno altar que havia em sua casa. Ela não compreendeu a mensagem de sua
visão; disse que ouviu barulhos como se fosse uma batida de carro; ouviu vozes
zombando às gargalhadas de algo. Ela me disse que teve outras visões, mas eu
não me lembro direito pra poder contar pra você. Eram mensagens muito confusas,
e ela não pôde compreender. No dia do acidente, ela havia feito uma compra com
o filho e me disse que havia esquecido algo no porta-malas.
— Eram as taças? —
perguntou Pedro, em tom de afirmação.
— Sim, eram, mas quando
ela voltou pra pegar, o filho já estava de saída. Como já disse, ela ficou
furiosa com ele, mas pediu que o Espírito Santo o acompanhasse. Henrique não
deu muito ouvido ao que ela disse. Quando ele já estava um pouco distante, ela
se lembrou das taças e gritou que havia esquecido algo no porta-malas. Sabe o
que Henrique disse, Pedro?
— É claro que não! Como é
que vou saber?! — exclamou Pedro num misto de curiosidade e irritação.
Maldonha tragou mais uma
vez, prendeu por um instante a fumaça nos pulmões e soprou-a para o alto em seguida. Olhou sério
para Pedro e continuou:
— Henrique parou o carro
e pôs a cabeça pra fora, olhando pra trás. O carro estava um pouco distante de
sua mãe, mas ela pôde ouvir com perfeição cada palavra que ele disse.
— O que ele disse?! —
perguntou Pedro, olhando para Maldonha, que parou de falar para beber um pouco
de vinho. A curiosidade envolvera-o de tal forma que as palavras de sua
pergunta saíram quase num grito.
— Deve ser o Espírito
Santo que a senhora esqueceu no porta-malas, porque aqui dentro do carro não
cabe mais ninguém — disse Maldonha, voz calma, enquanto colocava o copo sobre o
balcão. — Foi exatamente isso o que ele disse, e os amigos dele riram como se
tivessem ouvido a melhor piada da vida deles. De onde estava, Marta pôde ouvir
as gargalhadas, mas não era uma piada, e se tivesse sido, seria a última.
Um silêncio envolveu-os.
Maldonha pegou mais uma fatia de salame, enquanto Pedro, pensativo,
observava-o. Agora ele sabia o que Maldonha queria dizer com aquilo tudo.
O Espírito Santo estava no porta-malas, pensou Pedro, tentando pôr em ordem
cada imagem que a cabeça desenhava. Era como se tentasse reconstruir nos
pensamentos uma cena que não vira. Era chocante, era impressionante e, em meio
às concepções dele, era um absurdo.
Não, eu não posso estar pensando nisso. Seis taças de vidro,
e nem uma delas se quebrou?!
Seis taças…
As taças estavam
inteiras. Nem uma delas estava ao menos trincada. Pedro queria saber como isso
era possível…
… de vidro…
… e não conseguia achar
uma resposta que não fosse a proposta na história contada por Maldonha.
… e nem uma quebrada…
Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas
do carro.
— Isso é loucura! —
disse, olhos arregalados, enquanto tentava afastar qualquer pensamento que o
deixasse cada vez mais atordoado.
— Não, não é — Maldonha estava
calmo, tragou o cigarro e encarou Pedro por entre a nuvem deslizante de fumaça
acinzentada que expeliu lentamente dos pulmões. E, embora a história fosse
absurda, não havia traços de mentira em seu olhar. Segurava o cigarro entre os
dedos indicador e médio da mão direita que estava sobre o balcão. Pedro olhava
para a fina fumaça que subia do cigarro e serpenteava o ar até sumir em sua
parte mais alta.
— Quem encontrou as
taças? — perguntou Pedro, para retomar a conversa.
— Um dos bombeiros. Ele
deve ter questionado tanto o ocorrido quanto você deve estar questionando
agora, mas com uma única diferença: ele não sabia de toda a história.
— Quer dizer então que
Deus castigou esse rapaz e os amigos dele?!
Maldonha não respondeu,
apenas olhou para Pedro, que continuou:
— Que Deus misericordioso
é esse que castiga…?!
— Pedro…? — interferiu
Maldonha, voz branda, colocando a mão sobre o braço do outro como se quisesse
pedir-lhe que parasse de falar, e Pedro parou. — Não foi Deus quem bateu o
carro daqueles jovens. As pessoas são livres pra fazer o que elas quiserem da
vida. Por que atribuir a Deus as consequências de nossos atos? Deus não é
responsável por nossas irresponsabilidades. Escute e tente entender: nós
fazemos julgo de nós mesmos. De uma forma ou de outra, somos responsáveis pelos
nossos atos. Há um versículo na Bíblia, que não me lembro bem onde está… sei
apenas que está, se não me engano, em Gálatas, que diz que com Deus não se
brinca, que o que uma pessoa planta, ela também colherá. Deus é Vida, e é com
essa Vida que não devemos brincar. Você nunca vai colher peras se plantar uma
macieira, Pedro.
Pedro nada disse. Meneou
a cabeça e bateu a mão no ombro de Maldonha, que percebeu que Pedro havia
compreendido o que ele queria dizer.
Ficaram quietos. O velho
bebeu o resto do vinho, pegou uma fatia de salame e colocou-a na boca, olhando
para Pedro, que bebia a sua cerveja. Ficaram assim por longo tempo, como se
Maldonha tivesse dito tudo o que queria dizer, e Pedro, perdido a fala, embora
tivesse um rio de palavras para elaborar inúmeras perguntas. Sabia, entretanto,
que para cada resposta que obtivesse, uma nova pergunta se formaria em sua
cabeça.
Que o Espírito Santo o acompanhe!
Os minutos foram
passando. Ambos ficaram em silêncio tempo suficiente para Pedro beber mais uma
lata de cerveja, e Maldonha, outro copo de vinho, além de fumar mais um
cigarro, que acendeu na guimba do anterior.
Seis taças… inteiras… Capotou várias vezes…, Pedro pensava
sem parar.
E o silêncio se arrastou
de gole em gole, de tragada em tragada e, por algumas vezes, com sabor de
salame. Quando o último gole de cerveja molhou-lhe a garganta, Pedro pôs a mão
direita no ombro de Maldonha, perguntando:
— Vai querer mais alguma
coisa?
Maldonha bebeu o restante
do vinho que estava no copo.
— Só um maço de cigarros
— respondeu.
Pedro levantou-se e pegou
a carteira; Maldonha também se levantou e, quando ia retirar o dinheiro do
bolso, Pedro segurou-lhe a mão, dizendo:
— Pode deixar. Eu pago!
— De forma alguma! —
Maldonha tentou relutar.
— Não insista — Pedro abriu
a carteira e pegou o dinheiro. — Pode pedir o seu cigarro, eu pago!
— Por favor…
— Por favor, digo eu —
depois olhou para o dono do bar. — Quanto deu aqui?
O dono do bar recebeu o
dinheiro da mão de Pedro, que disse:
— Inclua também um maço
de cigarros — olhou para Maldonha. — Que cigarro você fuma mesmo?
— Pall Mall, por favor! —
respondeu o velho.
Pedro recebeu o troco, e
Maldonha, o maço de cigarros. Depois saíram do bar lado a lado.
Caminharam por um tempo em silêncio. Muitas
coisas passavam pela cabeça de Pedro. Mais uma vez, Maldonha o surpreendera, e,
novamente, ele não sabia o que achar; sua cabeça era uma confusão; quando por
alguns momentos pensava em mudar os seus conceitos sobre a existência de Deus,
algo, que cultivava havia anos, rebatia tais pensamentos, dizendo-lhe que
qualquer um poderia ter forjado aquele fato das taças, colocando-as no local do
acidente.
Oh, mas é claro! Um dos bombeiros. Só pode ter sido um dos
bombeiros. Não, é claro que não foi nenhum deles. Pra que a mãe do rapaz
estaria mentindo…? Mentindo! É isso! Maldonha está mentindo,
e fim de papo. Maldonha é um mentiroso, um tremendo de um velho mentiroso.
— Se eu lhe disser algo —
começou a falar Pedro —, você não vai se aborrecer?
— Por que me aborreceria?
Deram mais alguns passos
e pararam em frente à rua que dava para casa de Maldonha.
— Você me contou essa
história só pra me deixar impressionado, não foi? Ela não aconteceu de fato,
não é mesmo?
Decepcionado, Maldonha
balançou a cabeça para os lados. Pedro percebeu o que acabara de fazer e sentiu
vergonha. Sentiu-se também ridículo, pois ninguém o estava obrigando a
acreditar em nada.
Bastava não acreditar e pronto. Por que levar o velho
Maldonha tão a sério? No entanto, algo o confundia, como se necessitasse
acreditar, o que, para ele, era excessivamente estranho.
— Bem, já está tarde —
continuou Pedro, passando a mão direita no rosto, como se tentasse consertar o
que acabara de dizer. — Qualquer dia desses, a gente sai de novo pra beber
junto, certo?
Maldonha comprimiu os
lábios e tornou a balançar a cabeça, dessa vez afirmativamente. Aproximou-se de
Pedro e bateu-lhe a mão no ombro. Depois deu as costas e seguiu seu caminho.
Pedro observou-o entrar na estreita e pouco iluminada rua sem saída; quando não
pôde vê-lo mais, olhou para o relógio. Era tarde da noite, e Lívia deveria
estar preocupada.
Pedro apressou os passos.
Não estava bêbado. Aquelas poucas latas de cerveja não eram suficientes para
tanto. Sentia apenas uma leve tonteira, mas se julgava sóbrio.
Enquanto caminhava,
pensava em tudo o que Maldonha lhe havia dito.
Conheça a verdade, e ela vos libertará.
Logo adiante, a poucos
metros, havia uma árvore. Lembrou-se do exemplo que o velho lhe havia dado
sobre o livre-arbítrio. Quando chegou próximo da árvore, segurou um fino galho
com a mão direita e continuou andando, puxando-o por sobre a cabeça até
arrancá-lo.
Nenhuma folha cai de uma árvore sem que haja o consentimento
de Deus.
Enquanto seguia rumo a
casa, ia puxando as folhas uma a uma do pequeno galho que arrancara da árvore.
Ao passar ao lado de um portão, um cachorro pulou contra as grades, latindo
ferozmente. Pedro estava tão distraído que tomou um susto daqueles e pulou para
o lado, pensando que o cachorro pudesse pegá-lo.
— Cachorro filho-da-puta!!! — gritou de forma
instintiva. — Vá assustar a cadela da sua mãe!
Depois de gritar essas
palavras, sorriu, sentindo o coração bater na boca.
— Au! Au! — fez ele,
inclinado o corpo na direção do portão, tentando imitar o cachorro, um vira-lata
de porte grande e, por sinal, muito bonito. — Au! Au! Grrr!
Depois continuou a andar,
a passos lentos, enquanto ouvia o cachorro latir de modo enlouquecido.
— A cadela da sua mãe —
repetiu para si mesmo, pensando como isso era sugestivo, já que se tratava de
um cachorro. — A cadela da sua mãe — repetiu, e o sorriso se transformou numa
gargalhada.
Quando estava próximo ao
portão de casa, percebeu que do galho que segurava não restou folha. Arrancara
todas. Jogou-o para trás, por sobre o ombro, antes de abrir o portão.
Ao abrir a porta de casa
e entrar, viu Lívia sentada no sofá, lendo. Ela usava uma calça de moletom
cinza-claro e uma camiseta azul. Gostava de usar essa camiseta quando estava em
casa porque a achava confortável, mas nem sequer sairia ao quintal usando-a.
Ela já havia passado da metade do livro que lia. Estava ansiosa para saber o
desfecho, mas, mesmo estando envolvida pela leitura, marcou a página e fechou o
livro.
Pedro trancou a porta,
olhou para a filha e piscou-lhe um olho, e ela percebeu que ele estava um pouco
ébrio.
— E a sua amiga?
Lívia largou o livro
sobre o sofá e levantou-se.
— Faz tempo que foi
embora.
— Eu demorei?
— Eu estava tão entretida
na leitura que nem percebi a hora.
Pedro se aproximou da
filha e beijou-lhe o rosto, orgulhoso.
— Teve alguma ideia pra
começar a escrever seu livro?
— Não, não tive, mas por
que a pergunta?
— Por nada —
desconversou. Achou melhor não dizer que havia comentado com Maldonha que ela
pretendia escrever um livro. — Eu vi você lendo e lembrei. Só isso.
Lívia sorriu e o abraçou.
— Adivinha quem me ligou
— disse ela, exultante.
— Quem?
— O Roberto!
— Roberto… Roberto… —
Pedro tentava se recordar.
— O Roberto foi quem me
deu aquele celular.
— Ah, sim! — exclamou ele,
enquanto caminhava em direção ao sofá, no qual se sentou. — Pelo seu rostinho
de felicidade, ele chamou você pra sair, não foi?
Lívia pegou o livro do
sofá e sentou ao lado esquerdo do pai.
— Ele já havia me
convidado algumas vezes. Na última, eu fiquei de ligar pra dar a resposta e acabei
esquecendo. Foi no dia em que fomos ao cinema.
— Claro, claro! — disse
Pedro, mudando a voz para fazer graça —, o Pedrão aqui é irresistível.
Lívia sorriu e bateu com
o livro no braço do pai.
— Para de brincadeira,
pai! — fez um instante de silêncio. — Tudo bem, eu confesso que fiquei tão
feliz de sair com você que acabei esquecendo. O Roberto passou o dia ligando
aqui pra casa…
— Coitado!
—… e não havia ninguém
pra atender.
— Ele deve ter ficado
muito chateado. Eu ficaria.
— Ficou mesmo — Lívia se
mexeu no sofá e sentou-se sobre a perna direita para ficar quase de frente para
o pai —, mas depois me deu um celular; assim ficará mais fácil pra ele falar
comigo.
— Como é esse rapaz? —
Pedro estava preocupado com a filha. Lembrava-se muito bem do último rapaz que
ela namorou.
— Ele é um colega de
turma na faculdade. É legal. É bonito!
Pedro pôs a mão direita
no rosto da filha. Os olhos dela brilhavam ao falar do rapaz.
— Cuidado pra não se
machucar, meu bem — disse ele, em tom carinhoso. Estava realmente preocupado,
mas reconhecia que a filha sabia se cuidar.
Lívia beijou o rosto do
pai e ficou olhando-o por alguns segundos. Depois, dizendo que o amava muito,
abraçou-o com muita força.
— Eu também amo você —
secundou ele, sentindo uma inexplicável
sensação de perda no peito.
Após o abraço, Pedro levantou-se
e subiu para tomar banho. Lívia voltou à leitura, louca para terminar logo de
ler o livro.
Pedro passou tanto tempo
no banho que Lívia não estava mais na sala quando ele saiu do banheiro. Depois
de tirar o roupão, ele vestiu apenas uma bermuda e ficou sem camiseta. Com os
cabelos ainda molhados e despenteados, foi ao quarto da filha. A porta estava
apenas encostada, e a luz, acesa; Lívia dormia. Adormecera com o livro aberto
sobre o peito. Pedro pegou-o com cuidado, olhou o título, Contágio Criminoso, e com um marcador de páginas com um desenho das
Meninas Superpoderosas, que estava sobre a cabeceira da cama, marcou a
página, fechou o livro e colocou-o sobre o criado-mudo ao lado. Contemplou por
um instante a filha e lembrou-se de quando ela era pequena, e ele contava-lhe
histórias infantis para dormir, que nada se assemelhavam com O Cemitério ou O Iluminado, obras de Stephen King, que ela lera recentemente.
A Valsa. As taças de vidro…, foi o que ocorreu na cabeça de Pedro,
enquanto colocava um lençol sobre a filha. Depois se afastou, apagou a luz,
saiu e encostou a porta devagar para não fazer barulho. Novamente uma sensação de perda apertou-lhe o peito e
um calafrio envolveu-lhe o corpo.
O que está acontecendo com você, Pedro? O quê?
Em meio ao pensamento,
foi para o quarto, caminhou para o banheiro, no qual acabara de tomar banho,
pegou a toalha e secou os cabelos. Enquanto olhava para o espelho, tentava
organizar os pensamentos. Tudo o que ouvira de Maldonha lhe havia tirado o sono;
estava elétrico demais para poder dormir, e, para piorar, o salame lhe havia
dado uma azia tremenda. Sabia que não deveria comer coisas do tipo, pois sempre
sentia essa queimação que estava sentindo.
Antes de se deitar, foi à
cozinha; não estava aguentando aquele gosto de salame que a cada instante
subia-lhe pela garganta em doses amargas. Sobre a geladeira estava guardado um
sachê de antiácido. Pegou-o e despejou-o dentro de meio copo com água. Ficou à
espera da completa dissolução, enquanto observava as bolhas formarem uma fina
espuma que subia até quase a borda do copo. Em seguida, virou o líquido
garganta abaixo em grandes goles. Resmungando, voltou para o quarto.
Enquanto subia a escada,
limpou os lábios com a mão.
No quarto, deitou-se e manteve apenas o abajur ligado
à sua esquerda. Talvez, se tivesse bebido um pouco mais, pudesse dormir sem ter
de ficar pensando no que Maldonha lhe dissera. Sua mente remexia nas duas histórias que ouviu dele no Texas e nas
coisas que lhe disse quando estavam sozinhos. Pensava e virava de um lado para
outro, sonolento. Já a caminho do inconsciente, a voz do velho era um ruído em
sua mente. Suposições sem nexo passavam-lhe pela cabeça uma após a outra, já
desbotadas, quase sem foco, em meio ao sono que o fazia cochilar. Dormiu outra
vez com a luz do abajur acesa. Foi um sono ininterrupto e sem sonhos.
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