sábado, 25 de fevereiro de 2017

Do Outro Lado do Rio

Após todo esse tempo sumido, resolvi postar um conto que escrevi para seleção da Agência Wolfpack, de André Vianco. O tema foi dado pelos organizadores. Eram três temas e deveríamos escolher um. Escolhi o seguinte:

Uma jovem curumin, destemida e inconsequente se perde na mata com os dois irmãos mais novos e começa a ser perseguida por um ser do mal que exige que os irmãos mais novos sejam sacrificados para que ela e sua tribo sejam poupados. Recebe ajuda inesperada de um animal.

Observação.:  Fiz adaptações no enredo após texto ter sido recusado.

  Do Outro Lado do Rio 
A JOVEM JACI PEGOU AS duas irmãs menores pelas mãos, uma de cada lado, e correu rumo à floresta, passando pelos adultos da tribo.
— Não vá além do limite? — ponderou-lhe a avó, com tom de autoridade. — Você sabe que não é permitido e já está pra anoitecer!
Jaci parou de correr e olhou para a avó.
— Não vou — disse e continuou a se afastar. A avó sempre lhe dizia a mesma coisa quando a via afastar-se da aldeia com as irmãs.
Metros adiante, adentrou a floresta com as pequenas e parou ao chegar a uma clareira.
— Do que vamos brincar? — perguntou a menor, de sete anos, sem esconder na voz a euforia.
— De cacique! — respondeu Jaci.
— Mas… — a irmã maior, de oito anos, quis falar, mas o olhar penetrante que Jaci lhe lançou fê-la calar.
A jovem Jaci sentou-se numa pedra, e as pequenas no chão diante dela.
— Você não pode ser cacique — disse por fim a maior assim que se sentou. — A avó já brigou com a gente por causa disso. Isso sempre atrai coisa ruim. Fomos feitas pra procriar e não pra… pra…
— Ser líder? — completou Jaci. — Ser cacique?
A irmã meneou a cabeça em afirmativa e encarou Jaci, que mantinha no rosto um ar teatral de seriedade. O vento soprou com força, e as pequenas olharam amedrontadas para além das árvores.
— Ele está bravo, Jaci — alertou a maior. — Ele está bravo! Não devemos brincar disso. Ele não quer. Ele pode mandar nos castigar. Sua ira pode ganhar forma e vir nos castigar.
Houve um silêncio. Jaci reconhecia nas palavras da irmã o que os mais velhos proferiam desde sempre. Olhou para as árvores, que balançavam com o vento, pegou uma pedra no chão e se levantou.
— Olhem isso — disse no mesmo instante em que atirou a pedra no meio da floresta.
— O que você está fazendo? — questionou a maior, assustada.
Jaci a encarou com ar tranquilo e disse:
— Estou lhe mostrando que eu tive vontade de atirar a pedra, e Ele não pode me impedir de fazer isso. Somos feitas de vontades. É isso que quero que entendam.
— Mas e as vontades d’Ele? Não podemos desobedecer, não podemos! — questionou a irmã maior, enfática, abrindo as mãos diante de si.
A menor apenas observava, confusa.
Um par de pássaros voou diante delas e pousou no galho de uma árvore pequena logo adiante.
Começava a escurecer.
— E as nossas vontades? — retrucou Jaci. — O que fazemos com elas?
— De onde você tira isso?
— Das coisas — respondeu, correndo em direção aos pássaros e fazendo-os voar. — Veja! Eles não ficam, pois têm vontade própria.
As pequenas ficaram quietas, estavam assustadas com o barulho do vento que parecia aumentar conforme a irmã falava.
— Eu apenas observo — completou e, pegando-as pelas mãos, correu mais para dentro da floresta até o rio.
As primeiras estrelas começavam a surgir no céu, que estava com algumas nuvens densas e plúmbeas. O frio caía aos poucos das alturas, e o barulho da água correndo, misturando-se ao canto dos pássaros e ao som do vento na copa das árvores deixava as pequenas inquietas, e elas lançavam seus olhares em torno de si à procura do perigo.
— Vejam! — Jaci abaixou-se e tocou a água. — A água segue o curso para o caminho mais fácil. É isso que observo: a natureza — lançou um olhar para a outra margem e continuou: — Ainda irei para o outro lado.
— Mas aqui é o limite pra nós — alertou a maior, puxando pelo braço a irmã menor para que ela se afastasse do rio, como se dele fosse sair uma criatura medonha que as destruiria.
— Só por que fomos feitas pra procriar? — contestou Jaci, aproximando-se da irmã. Abaixou-se diante dela e segurou-lhe as mãos. A menor, apenas observava. — Somos mais do que isso. Todos os seres procriam e são livres! Por que nós não?
Um barulho soou do outro lado do rio, mexendo a mata ao fundo. As pequenas se assustaram ainda mais e correrem no sentido contrário. Jaci sentiu um frio na barriga, mas ficou parada, olhando para o outro lado, vendo a folhagem se abrir. Embora contestasse a tradição, o medo que a ensinaram ter desde sempre quase fê-la correr, imaginando que seria o castigo vindo por ela ser desobediente; no entanto, a jovem ficou e pôde ver o mato se abrir e dar passagem a um lobo cinza, que parou à beira do rio encarando-a. A distância entre uma margem e outra era um pouco mais do que dez metros. Após alguns segundos de fascínio, lembrou-se das irmãs e gritou por elas, voltando o rosto para o outro lado. Antes de partir atrás delas, olhou novamente para o lobo, mas ele havia sumido no instante de um virar de cabeça.
A noite trazia consigo um vento forte, que caía da copa das árvores, e isso era sinal de chuva. Correndo por entre as árvores, Jaci gritava pelas irmãs, mas não conseguiu alcançá-las. Quando saiu da mata e pôde ver o céu, deu-se conta da enorme Lua que já se destacava sobre a aldeia.
— Lua Grande — balbuciou, preocupada, olhando para o alto, sentindo um frio na barriga. Lembrou-se da fala da irmã: “Ele pode nos castigar”. Não queria crer nisso, mas sua mente a forçava, e sentiu medo.
No centro da aldeia, só estavam os homens reunidos em meio a um vozerio incompreensível da distância em que ela estava. Jaci correu para a oca de sua mãe, passando pelos homens, que a olhavam, inquietos. Parou à entrada, e sua mãe ergueu o olhar melancólico para ela. Lá estavam também mais algumas mulheres de cabeça baixa. Uma delas, de cócoras, balançava nervosa o corpo para a frente e para trás feito uma gangorra mecânica. Todas choravam por saber da sina imutável que o destino lhes dava naquele momento. Jaci sentiu medo, pois aquela Lua fazia-a, de forma automática, repensar seu desejo de liberdade.
Correu para a mãe, agachou-se junto a ela e a abraçou. As pequenas, que pouco sabiam o que estava acontecendo, estavam entre o abraço delas, quietinhas, assustadas, com uma mistura de medo e curiosidade na cabeça.
— Pode ser a Lua de Sangue, Jaci — disse a mãe, triste, voz embargada. —Temos mulheres que não estão na idade de procriar.
Jaci sabia que ela falava das irmãs menores, pois ela já era prometida a um guerreiro da tribo, desde que a fase de procriar chegou para ela.
— Toda criança que nasce mulher traz consigo um pouco de tristeza à mãe, uma mulher que o destino permitiu já estar na fase de poder gerar quando a Lua Grande sangrou no céu.
— Mas… — Jaci se afastou dos braços da mãe. — Mas é só uma Lua, talvez ela não sangre como as outras não sangraram, mas, se acontecer, podemos esperar pra…
— Não diga isso! — interrompeu-lhe a mãe num gritou, levantando-se de forma abrupta, assustando ainda mais as pequenas. — Se ela escurecer e sangrar no céu, sabemos o que deve ser feito pra salvar nossa tribo.
A jovem sentiu uma lágrima escorrer-lhe pelo rosto, abrindo caminho para seu choro. De tempos em tempos, a Lua Grande surgia, e as mulheres, inclusive ela, passavam por essa aflição. Ficavam apreensivas, resignadas, na esperança de a Lua não sangrar no céu, de ser apenas mais uma Lua Grande.
— Se acontecer, Jaci… Se a Lua escurecer e, por fim, sangrar, será o sinal de que Ele exige seus direitos.
— E se não dermos o que ele quer? E os nossos direitos?!
 A mãe voltou-se para a filha e tocou-lhe o rosto.
— Não há essa possibilidade, querida. É o destino. Devemos aceitar, embora doa. Há anos não acontecem sacrifícios. Ele tem sido benevolente. Na última Lua que sangrou, você nem era nascida. Todas as mulheres já estavam na fase de procriar — abraçou a filha e cochichou-lhe algo ao ouvido.
Jaci estremeceu ao som da voz da mãe, calou-se diante da revelação que ouvira, um segredo que a fez, num único instante, pensar em tudo o que vivera até ali. Desprendeu-se do abraço e olhou sério para a mãe e, depois, para as irmãs sentadas no chão, no canto da oca. As outras mulheres haviam saído enquanto elas estavam abraçadas.
A mãe foi para junto das pequenas. Jaci saiu da oca, ainda ouvindo a voz da mãe ecoar-lhe no ouvido; caminhou alguns passos e contemplou aquele brilho no céu. Os homens estavam divididos em vários grupos, cuidando dos preparativos. Apenas a luz da fogueira, acesa por eles, brilhava lá fora, mas luz alguma seria necessária além da do brilho da enorme Lua.
— Eles já estão aprontando as coisas para o ritual, e devemos torcer pra Lua não sangrar — disse-lhe a avó, que se aproximou sem que Jaci a visse.
A jovem nada disse, apenas olhou para o semblante triste da avó paterna, que a encarou por alguns instantes.
— O que está pensando? Você deve se unir às outras — disse a avó.
— Pra quê?
— Você e sua rebeldia, seus questionamentos sobre as coisas que não podemos mudar.
Jaci nada disse em resposta, ams havia em seu olhar coisas que palavras não descreveriam, era como se por eles pudesse vazar diante da avó todos os sentimentos que sentia em relação às tradições.
A avó se afastou, dizendo:
— Tenho medo do que você pode atrair pra nossa tribo com seus pensamentos — parou e olhou para trás. — E com suas atitudes.
Enquanto os homens, mesmo tristes, preparavam tudo para o ritual, assim como sempre fora, e as mulheres tentavam consolar umas às outras, implorando cada qual à sua maneira para que a divindade não permitisse que a Lua sangrasse no céu, Jaci isolou-se para chorar, como sempre fazia em dias assim. Toda Lua Grande era um tormento. Se escurecesse, a afiliação aumentaria e, se sangrasse, o ritual deveria ser concluído.
Ele está me cobrando em dobro, parte do segredo que a mãe cochichou-lhe ao ouvido ecoou-lhe na memória, deixando-a agoniada. Sabia que haveria o momento em que as mulheres iriam para o centro do círculo para serem homenageadas pelos guerreiros da tribo e, por último, um deles levaria as irmãs dela para apresentá-las à Lua. Pensando nisso, percebeu que não havia muito tempo para fazer algo. As palavras da mãe se remexiam em sua cabeça, fazendo-a, de alguma forma, ainda que tênue, renegar toda a tradição de sua tribo. Não podia esperar, não queria esperar; não dessa vez, e arriscar como das outras para ver se a Lua iria sangrar. Quantas Luas mais teria de suportar? Com os pensamentos girando em sua mente feito um redemoinho, correu até a oca e fez sinal de silêncio às irmãs, que estavam sós. Pegou-as pelas mãos e saiu com elas, olhando para onde o grande círculo estava formado, atentando-se para que não as vissem.
— Pra onde vamos? — questionou a maior.
— Psiu — fez Jaci, colocando a mão direita sobre os lábios da irmã. — Confiem em mim. É o que peço.
Estavam prestes a entrar na mata quando o guerreiro incumbido de buscar as pequenas pôs-se diante delas. Era o prometido de Jaci. Ele havia ido à oca e, por não encontrá-las lá, procurou ao redor e avistou-as já próximas à mata.
— Deixe a gente ir — implorou Jaci, colocando as irmãs para trás de si. — Prometo voltar.
— Procuramos por você. Deveria estar com as outras no círculo. Você sabe que se a Lua sangrar, e elas não estivem prontas… — parou a frase no meio. — Vocês não voltarão. Você sabe o que Ele irá fazer com nossa tribo se elas não estiverem prontas se a Lua sangrar? Não coloque nossa tribo em perigo, Jaci.
Vendo que Jaci fez menção de correr com as irmãs para a floresta, ele agiu rápido e segurou a menor pelos braços. Jaci empurrou a maior para o meio das árvores e disputou força com o guerreiro, tentando tirar dos braços dele a irmã. Onde estavam não podiam ser vistos pelos outros. A luta era injusta. O guerreiro era muito forte. Quando a jovem perdia as esperanças, que o pouco de coragem e força lhe davam, sentiu um baque forte sobre eles e foram os três ao chão. Ela conseguiu se afastar, rastejando-se com a irmã. O guerreiro passou a mão na cabeça, e as mãos ficaram manchadas de sangue. A irmã maior, para ajudá-las, jogara-se sobre eles com uma pedra nas mãos e acertou a cabeça do guerreiro. Jaci aproveitou a situação a seu favor, segurou cada uma das irmãs pelas mãos e correu o quanto pôde sem olhar para trás.
Houve tempo suficiente para as três chegarem até o limite permitido: o rio. O barulho da água correndo deixou-as temerosa.
— Vamos atravessar — disse Jaci às irmãs, mas a voz não passava segurança que ela pretendia.
            Elas nadavam bem. Faziam-no em um rio do outro lado da floresta, onde era permitido, mas nunca entraram no rio que era o limite. Ficaram as três em silêncio, olhando para a escuridão por algum tempo.
Após alguns instantes, a jovem foi a primeira a entrar no rio, a água era fria e cortante, e implorou às irmãs que fizessem o mesmo. As pequenas não sabiam ao certo o que estava acontecendo. Sabiam do ritual, mas não o que as aguardava. Isso só era revelado quando chegavam à fase de procriarem. Não era permitido que soubessem antes e, embora discordasse de tudo, Jaci nunca desobedeceu à tradição a tal ponto, portanto nunca contou a elas isso. Algo dentro dela não a permitia ser tão inobediente. As pequenas, apesar de não saberem ao certo o que estava acontecendo, estavam ali por que confiavam na irmã mais velha e, sobretudo, pelo medo que a situação provocava nelas.
— Por favor, entrem. Não podemos perder tempo. Vão nos alcançar.
Alguns instantes mais se passaram, até que ambas se atiram no rio e nadaram para o outro lado. Após se recomporem, tremendo de frio, elas seguiram na fuga. Andaram em meio à escuridão que a copa das árvores deitava sobre a floresta, até que pararam cansadas.
— Estou com fome e frio — disse a menor, com os braços cruzados sobre o peito.
Jaci resignou-se. Tirou as irmãs da tribo para salvá-las, e nem sequer estava conseguindo cuidar delas. E pouco tempo havia se passado. Quanto mais aguentariam? Após pensar por algum tempo, a jovem levantou-se e afastou-se delas, que quiseram ir atrás, mas foram repreendidas.
— Fiquem onde estão! — gritou para elas, assustando-as.
— E se Ele enviar o…? — questionou a menor, amedrontada, sem conseguir completar a pergunta. — A gente não deveria estar aqui.
— A gente está onde deveria estar.
Afastou-se o quanto pôde das irmãs, caiu sobre os joelhos e enterrou o rosto nas mãos aos prantos. Não queria que elas a vissem chorar. Quando ergueu a cabeça, sentiu a presença de algo, e uma voz estrondosa parecia sussurrou-lhe algo ao ouvido, e ela estremeceu, trancando o choro dentro de si para conseguir ouvir aquela voz. Retirou as mãos do rosto e ficou imóvel, alerta, olhando para um imenso vazio à sua volta. Jaci manteve os ouvidos atentos como se prestasse atenção ao som das palavras que invadiam seus ouvidos. Era o segredo que sua mãe lhe revelara gritando dentro dela. Perdeu a noção do tempo que ficou concentrada em seus pensamentos.
Minutos depois, voltou para junto das irmãs e ordenou:
— Fiquem aqui. Não saíam. Não temam. Não fujam. Eu…
— Não deixe a gente… — tentou contestar a menor, mas Jaci não lhe deu tempo.
— Fiquem aqui! Não vou demorar. Vou buscar algo pra comermos. Não saíam daqui pra clareira. Aqui estão protegidas.
As crianças se abraçaram amedrontadas. Jaci afastou-se e embrenhou-se no meio da mata fechada. Após andar por algum tempo, pôs-se a procurar algo no mato rasteiro. Arrancava folhas de plantas menores, amassava-as e cheirava-as. Era a única forma de reconhecer o que queria em meio àquela escuridão que a copa das árvores lançava sobre ela. A Lua brilhava escondida, opressora. Após algum tempo de busca, sentiu o coração disparar, após o cheiro que tanto buscava inundar suas narinas, fazendo-a tossir. De forma eufórica, abaixou e arrancou quantas folhas pôde da planta. O cheiro impregnava suas mãos de tão forte. Quando pegou a quantia que julgava suficiente, correu para junto das irmãs, tentando não deixar a euforia fazê-la se perder do mapa mental que criara na cabeça enquanto procurava mata adentro pela planta.
Quando chegou para junto das irmãs, essas se inquietaram com medo. O barulho no mato causado por Jaci as assustou.
— Sou eu — alertou a jovem.
Guiadas pelos sons dos passos da irmã, as pequenas aproximaram-se e a abraçaram, e Jaci chorou em silêncio, temendo pela decisão que estava prestes a tomar.
Trouxe algo para comermos — disse ela. — Não é gostoso, mas nos alimentará até o Sol chegar.
E ela soltou as folhas no chão, junto aos pés, ficou com apenas algumas em mãos e fê-las cheirar. As pequenas resmungaram. O odor era horrível.
— Que cheiro ruim — reclamou a maior. — Eu não…
— Vocês precisam comer. Eu também vou comer.
No chão, Jaci sentou-se com as irmãs, e amassou com as mãos um pouco das folhas, friccionando-as umas nas outras, o que intensificava o cheiro. Minutos depois, deu um punhado de folhas amassadas para cada uma das irmãs e ordenou:
— Comam!
As pequenas receberam das mãos da irmã o amassado de folhas, mas não comeram de imediato.
— Comam! Eu como o que vocês deixarem.
E elas comeram, e Jaci chorou ao ouvi-las reclamar da dor que sentiam no corpo instantes depois de terem comido. Fora questão de instantes para a planta fazer efeito. As pequenas entraram em delírio, o corpo de ambas enrijecendo em espasmos e câimbras; na traqueia, uma sensação de que algo estava atravessado impedindo-as de proferir uma palavra que fosse.
Quando elas entraram em estado de sono após muito se retorcerem, Jaci afagou-lhes o cabelo. Puxou-as para si e seu choro se intensificou enquanto as acarinhava.
— Coragem, Jaci — sua voz interior ecoava-lhe nos ouvidos, encorajando-a a fazer o que planejara ao dar as folhas às irmãs, mas ela hesitava confusa entre seguir a tradição de sua tribo e salvar as irmãs.
— Somos todos livres — sussurrou para si, sentindo o som de sua voz misturar-se à tradição de sua tribo. — O que devo fazer?
O que manda seu coração, sua voz interior respondia.
Após alguns instantes de reflexão, tomou a irmã menor no colo e caminhou por longo tempo com ela nos braços. Quando estava próxima de uma região onde a Lua podia ser vista, assustadoramente enorme no céu, parou. Colocou a pequena no chão e voltou para buscar a outra. Refeito o trajeto de volta, colou a irmã maior ao lado da menor. Sem pensar muito, ajeitou a menor sobre a maior e puxou pelos pés desta as duas até a parte em que a copa das árvores não se tocavam, deixando o céu amostra. Sabia que ali não era seguro, pois a Lua estava imponente a observá-las, mas precisava encarar o medo, que sentia sem saber por quê. Queria não estar sentindo, mas foi ensinada a senti-lo e era mais forte do que ela. Era o instinto de sobrevivência trazendo dos cantos mais secretos de sua mente aquilo que aprendera a temer desde pequena.
Sentou-se ao lado das irmãs e olhou para a Lua. O tempo estava nebuloso e, de quando em quando, um clarão cortava o céu, anunciando a tempestade que cairia sobre a floresta.
— Se você é tão poderoso, como dizem que é — começou a falar ela, olhando para o alto, e percebeu que uma ponta da Lua escureceu, dando a impressão de que aquela parte deixara de existir. Sentiu um frio percorrer-lhe o corpo. A voz parecia presa em sua garganta quando continuou: — Se… Se suas vontades valem mais que as minhas e pode destruir minha tribo inteira porque desobedeci Você, prove seu poder de outro jeito… Elas estão aqui! São suas.
Engasgou-se com as palavras assim que o choro transbordou de dentro dela. Abaixou a cabeça, suspirando profundamente para controlar os soluços e continuou:
— Então, as sacrifique Você mesmo!
Ele está me cobrando. Somente Ele e eu sabíamos e, agora, pago por isso. Ele está me cobrando em dobro, o segredo revelado por sua mãe sondava-lhe os pensamentos, gritando em seus tímpanos.
— Vamos, venha! Já que tem poder pra destruir meu povo, sacrifique-as Você mesmo! — gritava, olhando para a Lua.
De cabeça baixa, Jaci aguardou longo tempo sem resposta, tanto que quando ergueu a cabeça, faltava pouco para a Lua sumir por completo no céu. Estava quase toda tomada por uma coloração rubra: a Lua de Sangue de que tanto falavam os mais velhos e que quando surgia era para traçar o destinos das mulheres ainda crianças. Quando o ciclo de mudança da Lua estava completo, o vento se intensificou. Esse seria o momento do sacrifício, pensou ela.
— Você quer a mim? É a mim que Você quer? — vociferava ela, desesperada. — Então venha, estou pronta!
Uma chuva forte estava prestes a desabar, e um estrondoso trovão a assustou ferindo-lhe os ouvidos, deixando-lhe dentro da cabeça um zunindo enlouquecedor.
Um barulho na mata deixou-a apavorada. Era Ele.
— Eu as quero — a voz ecoou na noite, distante, e não pode reconhecê-la. Era grave. Sua cabeça parecia estar longe do corpo, flutuando na escuridão, e seus ouvidos eram um zunido só.
Jaci deitou-se junto às irmãs. Morreria por elas. Morreria com elas. O medo se apoderou dela, e tudo que ouvira sobre Ele dos mais velhos da aldeia viera-lhe à mente e a deixava em estado de estupor.
Sentiu uma força descomunal puxando-a de cima das irmãs e jogando-a para trás. Caiu de lado, e sentiu os joelhos rasparem no chão. Gemeu de dor. Quando se recompôs, agindo por instinto de proteção, atirou-se sobre aquilo que a atacou. Não era maior do que um homem, e não tinha a força superior a deste, mas estava atordoada e assustada, e isso a atrapalhava se defender e pensar. Ainda assim, pegou o punhal feito de osso que trazia consigo e gravou no inimigo, que gemeu, chamando-a pelo nome. A luta era injusta, e Jaci foi lançada outra vez ao chão e bateu a cabeça numa pedra com tamanha violência que o som da pancada reverberou na floresta.
Os homens da aldeia chegaram logo atrás, com tochas nas mãos. Viram o guerreiro próximo às pequenas, e Jaci caída ao lado.
Instantes depois, uma mulher surgiu.
— Você não deveria estar aqui! — disse um dos homens. — Você nos seguiu! É desobediente como a filha.
A mulher ficou quieta e caminhou para junto do corpo de Jaci e, após olhar para a Lua, que estava rubra no céu, ajoelhou diante da filha e chorou. Desesperada, ergueu-se e correu para ver as pequenas, mas dois homens a seguraram.
— Elas estão vivas — disse o guerreiro ferido por Jaci, o guerreiro que era seu pretendente. — Estão desacordadas. Precisamos ir, ainda há tempo — olhou para o alto. — A Lua sangrava no céu.
 Voltaram levando Jaci e as pequenas. Ao chegarem à aldeia, a Lua estava quase completa no céu, com seu brilho branco surgindo aos poucos. O corpo de Jaci foi entregue à avó, que chorou de forma convulsa ao lado da filha. Seriam três perdas de uma vez. As pequenas foram levadas para o ritual.
A última faixa escura se afastava da Lua, restando pouco tempo para o sacrifício, a mãe das pequenas, que como as demais mulheres eram obrigadas a assistir ao ritual, gritou:
— Jaci foi o sacrifício — e todos pararam e olharam-na. A Lua clareou por completo. — Eu a esperava dentro de mim na última Lua Grande que sangrou, mas eu não a entreguei quando nasceu como manda nossa tradição.
Houve um silêncio. Olharam para o céu, e a Lua brilhava inteira. O momento do sacrifício havia passado, e todos aguardaram o castigo, imóveis, esperando surgir da floresta a medonha criatura enviada por Ele para destruí-los. Mas do céu veio apenas a chuva, que despencou violentamente sobre a aldeia.
O castigo não veio, mas a crença renascia com a morte da jovem Jaci.