Quando chegou a casa, Pedro ainda pensava
Depois da tortura sob o
chuveiro, com a cabeça girando com menos velocidade, foi à cozinha fazer um
café bem forte. Desde que se divorciara, havia três anos e meio, passou a se
virar sozinho, mas a filha dizia que não precisava, pois ela tomaria conta dos
afazeres domésticos, porém ele sempre dividia com ela boa parte das tarefas.
Lívia optou por ficar com o pai, apesar de ser muito apegada à Ângela, sua mãe.
Ângela se envolvera com um homem na empresa de tecelagem em que trabalhava, e,
antes mesmo que o marido descobrisse, ela contou-lhe o que estava acontecendo.
Tentou ser honesta, mesmo assim Pedro ficou arrasado. Ele não fez escândalo ou
coisa do gênero, apenas quebrou um vaso de louça que ficava sobre a mesinha de
centro na sala, arremessando-o colérico contra a parede, finalizando a conversa
ainda no início. Em seguida, transtornado, saiu de casa e bateu a porta com
excessiva força, abafando a voz de Ângela que o chamava. Naquela noite, quando
voltou para casa, passava da meia-noite. Não havia bebido, pois beber, na
opinião dele, era coisa para os momentos de distração, não para resolver
problemas e tampouco situações como as que estava vivendo. Nos dias seguintes,
não disse uma única palavra; escondia-se pelos cantos, e a filha o presenciou
várias vezes chorando, enquanto ele trabalhava na marcenaria. Ela sabia o que
havia acontecido, a mãe lhe contara, mas, para não constranger o pai, fingiu
não saber por um bom tempo.
Uma semana depois de ter
confessado ao marido estar se envolvendo com outro homem, Ângela saiu de casa,
e, quando o divórcio estava prestes a ser concluído, Pedro disse que venderia a
casa, mas ela achou não ser necessário. Portanto, entraram em um acordo e
decidiram que a casa ficaria para Lívia, que preferiu ficar com o pai a morar
com a mãe e o atual companheiro dela. Ângela casou-se novamente dois anos após
o divórcio, e Lívia passou a visitá-la quase todas as semanas, salvo raríssimas
exceções.
Feito o café, Pedro tomou
uma boa quantia sem adoçar. Era horrível, mas sempre que bebia além da conta,
fazia o sacrifício. Depois encheu outro copo e dirigiu-se para a sala onde se
atirou no sofá, ligou a tevê e ficou à espera da filha, trocando exaustivamente
de canal com o auxílio do controle remoto.
Lívia chegou a casa pouco
mais de uma hora depois; a primeira coisa que fez foi dar um beijo estalado no
rosto do pai.
— Você bebeu, não é,
senhor Pedro? — perguntou ela, num tom de censura, no entanto sutil. Lívia
respeitava muito o pai, e o fato de ele beber era encarado com indulgência de
filha. Supunha, entretanto, que essa indulgência contivesse um desejo oculto de
discutir com ele a respeito do assunto. Sabia que o pai não era alcoólatra, mas
ela carregava um sentimento de preocupação consigo, pois ultimamente ele ia
quase todos os fins de semana ao Texas, o que não costumava fazer, e isso a
deixava um tanto inquieta.
Pedro pôs-se de pé diante
da filha.
— Um pouco… — respondeu
ele, enquanto pegava o copo que estava sobre a mesinha de centro —… quero
dizer, o suficiente pra ter que tomar este café horrível — mostrou o copo à
filha.
Lívia colocou os cadernos
sobre o sofá e abraçou o pai, dando-lhe mais um beijo. Pedro tomou cuidado para
não entornar o café sobre eles.
— Você está com fome? —
perguntou ela, logo após o abraço.
— Eu não sei.
Lívia sorriu e passou o
braço esquerdo sobre o ombro do pai e, juntos, seguiram para a cozinha. Ela se
esticando um pouco, pois era uns dez centímetros mais baixa que ele, que tinha
cerca de um metro e setenta e cinco de altura e boa forma física.
— Como não sabe? Ou está
ou não está, ué!
Pedro sorriu.
— Eu acho que… não. Mas o
que vai fazer pra nós?
— Um lanche — respondeu
ela, apressando os passos até a porta que comunicava a sala com a cozinha.
Parou sob a soleira e voltou-se para o pai. — Presunto e queijo, assim está bom
pra você?
— Duas fatias de queijo
bem derretidas, mas acho que você vai ter que fazer outra coisa pra beber,
porque o café não está bom não.
Ambos riram alegremente.
O presunto e o queijo
chiavam na frigideira. Pedro estava sentado à mesa, observando a filha fazer os
lanches. Admirava-a calado, com o cotovelo esquerdo apoiado na mesa, e o queixo,
sobre a mão aberta. Lívia era muito bonita; dezenove anos e uma beleza digna de
prêmio, pensava ele, deixando a ideia vaguear na cabeça vezes sem conta,
enquanto a filha estava ao pé do fogão aguardando o momento certo para desligar
o fogo. Tanto no jeito quanto na aparência, ela lembrava muito a mãe, tinha a pele
morena clara, a boca bem desenhada, de lábios finos, um rosto oval, de uma
beleza singular e natural, os olhos eram puxados como os do pai e verdes como
os da mãe, pois os de Pedro eram castanho-claros; mas, embora fosse tão bonita
quanto a mãe, não namorava sério alguém desde o último ano do colegial, havia
pouco mais de dois anos; no momento, preferia estudar a se envolver em um novo relacionamento.
O último rapaz que namorou foi uma baita decepção, uma vez que namorar duas
moças ao mesmo tempo não era nenhum feito extraordinário. Marcelo namorava
Lívia havia quatro meses e saía com outra garota, e ambas não sabiam da façanha
do rapaz, mas tal ato virtuoso veio à tona quando um dia Lívia o encontrou no shopping com a outra moça. A situação a
deixou arrasada, embora naquele momento tenha feito pose de superior. Segurou o
choro, aproximou-se e, sem que Marcelo percebesse, parou atrás dele. Ele estava
com a mão direita em volta da cintura da moça, olhando sapatos em uma vitrine,
quando viu o reflexo de Lívia no vidro à sua frente. Por um instante, incrédulo,
ele se manteve de costas, olhos fixos na imagem refletida no vidro, para então se
virar, na esperança de não se deparar com Lívia, mas com uma moça muito
parecida com ela.
— Não vai apresentar a
minha sócia, Marcelo? — perguntou ela, voz embargada.
A moça que estava com
Marcelo ficou sem entender o que estava acontecendo.
— Eu posso explicar… —
tentou argumentar Marcelo.
— Explicar o quê?! — interrompeu
Lívia, eufórica.
— O que está acontecendo
aqui?! — a outra jovem se manifestou.
Lívia olhou para a moça e
percebeu que ela também não sabia da característica dual que Marcelo escondia.
— Pergunte ao meu namo…
ex-namorado — disse, enquanto voltava os olhos para Marcelo. — Ele pode
explicar!
Lívia deu as costas e já
estava indo embora quando Marcelo a segurou pelo braço.
— Como assim,
ex-namorado?! O que você quer dizer com isso?
— Quer fazer o favor de
largar o meu braço, antes que eu faça um escândalo — os olhos estavam úmidos;
não faltava mais nada para ela começar a chorar. — Você está me machucando!
Marcelo soltou o braço de
Lívia.
— Acabou! — gritou ela. —
É isso o que quero dizer. Acabou!
Houve um silêncio, e eles
se olharam por um breve instante. Depois, Lívia ajeitou no ombro a alça da
pequena bolsa, deu as costas e saiu chorando. Marcelo ficou observando-a afastar-se
a passos rápidos, quase correndo. A seguir, quando ele resolveu falar com a
outra moça, não a encontrou mais; ela também havia ido embora sem que ele
percebesse.
Naquele dia, quando
chegou a casa, Lívia trancou-se no quarto. Não foi à escola durante uma semana;
mal saía do quarto e se recusava a atender aos telefonemas de Marcelo, que
desistiu de continuar ligando depois que Pedro deu-lhe um sermão.
Na época, Lívia teve de
contar com o apoio do pai, pois a mãe já não morava com eles. Os dias
subsequentes não foram fáceis. Foi penoso para ela acostumar-se ao término do
namoro, ainda mais porque Marcelo insistia em querer reatá-lo, pedindo perdão,
dizendo que a amava, que não conseguiria viver sem ela e outras coisas do
gênero, mas a decisão dela era irrefutável. Ela dizia que não o perdoava e era
bom que ele aceitasse isso; não adiantava insistir porque, de modo algum,
queria mais namorá-lo, pois não aguentava nem sequer olhar para a cara dele.
Foi assim por semanas seguidas, até que o candidato a galã desistiu e, dias
depois, já estava saindo com outra moça.
— Prontinho, senhor Pedro
— disse Lívia, ao pôr o prato com o lanche sobre a mesa. — Espere um pouco, que
vou fazer um suco.
Lívia foi até o armário,
pegou uma embalagem de suco instantâneo sabor manga e uma jarra. Preparou-o e
levou-o para a mesa. Comeram sem muita conversa. Pedro parecia feliz.
Definitivamente, o divórcio era coisa do passado, e isso alegrava a filha, pois
ela detestava ver o pai triste, sobretudo da maneira que o vira na época da
separação.
— Hoje, quando eu estava
indo pra faculdade — disse Lívia, balançando lentamente o copo em movimentos
giratórios —, vi o Leandro.
— Que Leandro? —
perguntou Pedro, assim que engoliu o último pedaço de pão. — O Maldonha?
— É. Esse que todos
chamam de Viúvo.
— O que é que tem?
Lívia franziu a testa,
pensativa, como se analisasse algo mentalmente.
— Nossa, pai, nem parece
que ele tem uns noventa anos! — exclamou ela, admirada.
— A gente não tem certeza
que o velho Maldonha tem mesmo uns noventa anos.
— Mas é o que todos
dizem. Nossa vizinha, a dona Carla, deve ter uns setenta…
— Setenta e seis — completou
Pedro.
— Então, ela nem tem a
idade que ele tem e já não fala coisa com coisa. A única diferença é que o
Leandro não fala com ninguém. Mal dá bom-dia quando a gente passa por ele.
Por um instante, Pedro pensou
na história que Maldonha havia contado nessa noite. Já havia escutado de tudo
um pouco, mas nada tão estranho e surpreendente. Não era apenas a história em
si, mas como havia sido contada. Em alguns momentos, enquanto Maldonha falava,
Pedro tivera uma absurda impressão de que aquilo pudesse de fato ter
acontecido, mas afastara a vaga ideia da cabeça; era realmente um absurdo crer
em uma coisa como aquela, ainda mais ele, que sempre fora tão cético em relação
à criação do mundo, Deus, o Diabo, o Céu e o Inferno. Logo ele. Não, Pedro não
podia crer naquela história. De modo algum podia crer.
— Quem
realmente é o Diabo? Quem realmente é o Diabo? — disse Pedro em voz sussurrada
para si; de tão absorto, esqueceu-se da filha.
—… não é mesmo, pai? —
foi a única coisa que ouviu de Lívia.
— O quê…? Desculpe,
Lívia, não foi a minha intenção… me distrair — disse ele, passando a mão no
braço da filha.
— Quem é realmente o quê?
Você está bem, pai?
— Esqueça! Não tem
importância — pediu ele, tentando esconder de si mesmo o fato de estar pensando
outra vez naquela história. — Do que você estava falando?
— A dona Carla, ela não
fala coisa com coisa.
— Ela está senil…
completamente, meu bem. Há uns três meses, ela estava sentada em uma cadeira de
balanço na frente do portão da casa dela, tomando sol. A filha estava ao lado
dela. Então, eu parei pra dizer um oi, e ela me perguntou como estava o meu
bebê, se já estava andando.
— Nossa! — sussurrou
Lívia, espantada. — O bebê era eu?
— Sim. Foi constrangedor.
Eu não sabia o que dizer. Foi então que Marlene disse que eu não precisava me
preocupar, que a mãe dela já se atrapalhava toda quando a questão era data.
Ela já está andando há quase dezenove anos, foi o que Pedro pensou em dizer no
dia, em meio a um riso maldoso e incontrolável, mas foi só um pensamento
cretino e desditoso, que ele queria esquecer, como todos os outros que o
perseguiam no momento, fazendo-o se perder na conversa com a filha.
Lívia olhava atentamente para o pai,
enquanto ele bebia o resto do suco.
— Bem, acho que está
tarde — ao final do suco ele alertou, pondo-se de pé.
— Você vai trabalhar
amanhã?
Pedro sorriu e respondeu
satisfeito:
— Não. Estou de férias.
— Que bom! Mas não ia ser
só em agosto?
— Era, mas resolveram
adiantar e dar agora em março mesmo. Agosto, não sei por que razão, morre muita
gente. Há muito trabalho a ser feito nessa época.
— Credo, pai! Que coisa
mórbida! — exclamou ela, voz baixa. — Estranho, não é? Mês de agosto…
— É. É estranho e também
inexplicável, mas eu trabalho com isso há anos e no mês de agosto sempre foi
assim: muito trabalho a ser feito — Pedro fez uma cara de espanto e resolveu
mudar de assunto. — Hoje eu só trabalhei até as cinco da tarde, mas quando cheguei
em casa, você já havia ido pra faculdade.
— E na marcenaria, você
vai trabalhar?
— Eu acho que não —
respondeu ele, enquanto colocava o prato e o copo sobre a pia. — Neste sábado e
domingo não quero ouvir nenhum barulho de madeira sendo cortada. E você vai à
sua mãe?
— Eu não sei… Talvez eu
apenas telefone. O que você acha?
— Você é quem sabe.
Lívia levantou-se e
também colocou o prato e o copo na pia. Depois guardou a jarra que continha o
restante do suco na geladeira.
— Se você ficar em casa,
a gente pode assistir a uns filmes na tevê — propôs Pedro.
— Eu tenho algo melhor —
disse ela, em meio a um largo sorriso, decidida a passar aquele fim de semana
com o pai.
— O quê? — perguntou ele,
cruzando a porta em direção à sala.
Lívia foi atrás do pai e,
abraçando-o como se quisesse subir em suas costas e ser levada nos ombros dele,
propôs:
— Que tal a gente ir ao
cinema?
— É uma boa — concordou
ele, falando com certa dificuldade por causa do peso da filha nas costas. —
Isso se você não me matar antes.
Pedro fez um esforço e, quando
conseguiu se virar, jogou a filha sobre o sofá. Lívia pegou uma almofada e
atirou no pai, mas ele a agarrou com as mãos.
— Que filme vamos ver?
— Então você vai? —
alegrou-se ela, ajeitando-se no sofá.
Ele fez que sim com a cabeça.
— A gente pode assistir…
— ela ergueu os olhos, enquanto tentava trazer à memória algum filme que
estivesse em cartaz —… não sei. Lá a gente escolhe, pode ser?
A Valsa, estrelando Leandro Maldonha,
pensou Pedro, com um quê de morbidez.
— Pode ser — concordou
ele. — Lá a gente escolhe.
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