sexta-feira, 28 de abril de 2017

Capítulo 3 - O Mistério do Viúvo Maldonha


Quando Maldonha parou de falar, todos continuaram em silêncio. Enquanto contava a história, ele falava como se houvesse presenciado os fatos. Os olhos escuros pareciam dois buracos fundos e inexpressivos, feito os de quem olha para o nada. Era como se ele estivesse em outra dimensão. As mãos tremiam tanto, que quando por alguns instantes tirava o cigarro da boca, dava a impressão de que ele lhe escaparia dos dedos. Era estranho olhá-lo, pois era como olhar para alguém que estava prestes a ter um ataque qualquer e cair morto de forma súbita. Até a respiração era diferente, de tal modo ofegante, que se podia notar sob a camisa preta puída o peito movimentar-se para a frente e para trás, como se o velho houvesse participado de uma maratona.
De certo modo, todos pareciam impressionados com a história. Pedro estava fascinado, mas tentava não demonstrar isso. Somente depois de Maldonha parar de falar é que ele tomou um gole de chope. Engoliu a bebida à força e por pouco não a cuspiu, pois ela havia esquentado no copo e perdido a fermentação.
— Ei, Gringo, me dá outro chope! — pediu ele, ao derramar a bebida na pia com a mão por sobre o balcão.
— Vai ser uma honra dançar uma…
— Não zombe! Isso não é brincadeira! — Maldonha interrompeu o que Marsílio diria.
— Mas não estou zombando. Apenas ia repetir o que disse o… o Diabo… ou sei lá quem disse isso!
— Ele próprio — disse Maldonha, soltando em seguida uma nuvem de fumaça pelas narinas. — O Diabo, ou um Demônio enviado por ele.
— Fascinante! — exclamou Álvaro, enquanto erguia a caneca de chope como se fosse fazer um brinde. — Realmente é fascinante — olhou para Maldonha. — Mas… diga aí, Maldonha, o que aconteceu depois com Paulo?
— Isso é outra história — respondeu Maldonha.
— Mas você não quer que a gente acredite nessa história, quer?
Maldonha pigarreou, pegou o copo e bebeu o resto de vinho em um único gole.
— Não — disse, segurando o copo vazio sobre o balcão. — Eu não quero que acreditem em nada.
— Eu pensei que você quisesse que a gente acreditasse — resmungou John, ao colocar sobre o balcão a caneca com o chope que Pedro pediu. — Eu não acredito!
— Não estou pedindo que acreditem — enfatizou Maldonha. — Não vou dizer que essa história é verdadeira ou falsa, mas se eu tivesse que esconder algo… seria a respeito dos nomes; apenas os nomes nessa história seriam outros, como de fato são.
Todos riram, menos Pedro. Algo naquilo tudo lhe causou uma sensação estranha. Não que acreditasse piamente na história, não era isso; era algo inexplicável, algo que o fazia suar como se a temperatura tivesse subido uns cinco graus, ou mais. Olhou para os amigos, que riam, e depois bebeu todo o chope de uma única vez, sem tirar a caneca da boca.
— Você pensa que assusta alguém com essa conversa de dançar uma valsa com… — esbravejou John, tentando achar o termo adequado para concluir a frase. — Com essa… essa coisa… o Diabo, a noiva que era o Diabo… sei lá o quê? Você pensa, Viúvo?!
Maldonha ficou em silêncio.
— Hein, Viúvo?! — insistiu John, com uma austeridade quase incontrolável; ele sabia que Maldonha havia contado a história direcionada ao que ele havia dito a Afonso sobre mandar lembranças ao Diabo e, de alguma forma, sentiu-se ofendido, incomodado. — Se eu tivesse um único filho, contaria essa história pra ele dormir e, com certeza, depois de rir muito, ele dormiria tranquilo.
Maldonha fixou os olhos em John à espera de que ele continuasse a esbravejar, mas John ficou quieto, devolvendo o olhar. Ficaram assim por alguns instantes, como se tentassem descobrir através dos olhos o que um estava pensando do outro. Já os demais não sabiam o que dizer, mas Pedro aproximou-se de Maldonha e com indulgência disse:
— Vamos parar com isso, pessoal — em meio a um sorriso amarelo, ele pôs a mão sobre o ombro de Maldonha. — Estamos aqui pra nos divertir.
— Conta outra história, velho! — atacou John, sem dar a mínima para o que Pedro acabara de dizer. — Assim quando eu resolver ter um filho, poderei escolher uma das suas histórias pra contar pra ele dormir. Esse tal de Paulo tinha razão, pra que ter medo do Diabo?! Pra quê?! Se eu não tiver medo dele, o que ele vai fazer? Pôr fogo no meu bar? É isso?! Pôr fogo no meu bar?! Pois que bote, então!
Maldonha soltou o cigarro no chão, apagou-o com o calcanhar da bota mal engraxada e, em tom de advertência, disse:
— Na multidão de palavras não falta transgressão, mas o que modera os lábios é prudente — fez uma pausa enquanto colocava a mão no bolso da frente da calça para retirar algo. — Provérbios dez, versículo dezenove — encarou John por alguns segundos e bateu com a mão esquerda espalmada sobre o balcão, no qual largou uma nota de dinheiro, dizendo: — Pode ficar com o troco… E modere suas palavras, pois elas, meu caro amigo, têm poder. E você não tem mais idade pra ser pai.
— Você é um doente, velho maluco! — esbravejou John. — Um velho demente!
— Lembre-se sempre das coisas que você disse. Elas ganharão forma e vão voltar pra você. Pode esperar que um dia elas voltam — ao dizer isso, Maldonha deu as costas e seguiu caminho.
— E a esposa, vai bem?! — gritou John, e Maldonha olhou para trás, com um misto de tristeza e raiva no olhar.
Todos olharam para John numa espécie de reprovação.
— Isso foi cruel, John — ponderou Pedro. — Não deveria ter dito isso.
John pegou o dinheiro sobre o balcão olhando para o velho, que caminhava de modo trôpego em direção à porta do bar, sem olhar para trás.
Por alguns instantes, o silêncio tomou conta do local. Todos tinham algo a dizer, mas, sem explicação, preferiram guardar para si próprios como se não conseguissem expressar em palavras o que estavam sentindo. Também não havia o que comentar, e se o fizessem seria apenas para dizer que, apesar de muito interessante, aquela história não passava de uma invenção de Maldonha. Já Pedro, embora fizesse o possível para não demonstrar, era o único que parecia ter levado Maldonha a sério. De alguma forma, a história mexeu com ele, deixando-o extasiado, pensativo, como se quisesse relacioná-la a alguma coisa, mas na cabeça apenas surgiam hipóteses à deriva, em um imenso mar de incertezas.
— Vê uma rodada por minha conta… pra quebrar esse clima chato… — disse Álvaro, ao bater no balcão com a palma da mão direita para chamar a atenção de John.
Beberam essa rodada, e outra, e mais outra, até que ficaram bêbados. Nenhum deles fez menção de comentar o ocorrido entre Maldonha e John, mas estavam certos de que tudo ficaria por isso mesmo, sem mais personagens, intrigas ou provocações. Havia sido uma discussão isolada, pelo menos era o que esperavam.
Ao cabo das rodadas de chope, todos foram embora.
— Posso deixar o carro na sua oficina, Afonso? — pediu Álvaro, voz ébria, enquanto saíam do bar.
— Está tão ruim assim pra dirigir? — brincou Afonso, e sua voz também denunciava o estado de embriaguês.
— Pra dirigir por longo tempo… sim.
— Homem prudente — gracejou Pedro, dando-lhe umas tapinhas nas costas.
— Pode sim, sem problemas — consentiu Afonso.
Pedro e Marsílio seguiram a pé. Os outros dois entraram no carro, Álvaro ao volante. Dirigir bêbado por alguns metros até a oficina do amigo, que ficava a uns cem metros do bar, do outro lado da rua, não o faria perder a habilitação, mas dirigir por quase meia hora seria assinar um atestado de burrice, e ele não estava a fim de se aborrecer por causa de uma tolice, ou ainda, na pior das hipóteses — não que fosse descartada —, poderia sofrer um acidente. Tudo foi decidido de maneira sensata e, ao chegar à casa de Afonso, Álvaro deixou o carro na oficina, chamou um táxi e foi embora. 


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segunda-feira, 17 de abril de 2017

Capítulo 2 - O Mistério do Viúvo Maldonha


A Valsa


Era costume de alguns jovens — começou a falar Maldonha, ao expelir, pelas narinas, a fumaça tragada — ficar conversando em volta de uma fogueira que improvisavam de frente a um terreno baldio próximo de suas casas. Faziam isso quase todas as noites e ficavam conversando sobre diversos assuntos, como religião. Discutir religião não é uma das melhores coisas que uma pessoa deve fazer, chega a ser tolice, mas nunca ninguém para pra reparar nisso.
Quando Maldonha disse que religião não se discutia, podia-se notar no semblante de todos, com exceção de Pedro, que não gostava de debater o assunto, que eles se sentiram censurados, pois várias vezes se pegaram falando sobre isso.
— Numa dessas noites — prosseguiu Maldonha —, um dos jovens comentou que ouviu dizer que quem não fosse um religioso devoto, temente a Deus, não teria salvação depois da morte. Outro retrucou, dizendo que era uma tremenda besteira, que uma coisa não tinha nada a ver com a outra. Alegou que era coisa que o homem havia inventado… O assunto prosseguia, mudando constantemente com o passar das horas. Da salvação perante as leis de Deus, eles começaram a conversar sobre quem realmente era o Diabo.
— Ah, essa eu quero ouvir! — exclamou Afonso, curioso.
Após outra tragada, Maldonha continuou:
— Quando um rapaz… — o velho hesitou por um instante —, chamado Paulo, disse que o Diabo não age sem a permissão de Deus, o restante dos jovens ficou em silêncio, não concordou e nem discordou dele. Os outros garotos, ao contrário de Paulo, estavam certos. Sabem por que eles estavam certos? Porque ficaram quietos, e essa foi a melhor coisa que fizeram, pois não devemos falar sobre o que não conhecemos. É inútil.
— E depois, o que aconteceu? — perguntou Marsílio.
— Aqueles jovens continuaram conversando — prosseguiu Maldonha, olhando para Marsílio —, mas eles se sentiram incomodados com a presença de um homem que estava parado do outro lado da rua havia alguns minutos, encostado a um poste. Os rapazes ficaram intrigados, pois era difícil falar sobre o assunto com alguém olhando pra eles daquela forma, mas pra Paulo a presença daquele homem não era problema. Então ele prosseguiu, dizendo que todos têm medo do Diabo, embora nem sequer saibam que Lúcifer, pelo menos assim ele havia escutado alguém dizer, significava luz e fé. Naquele momento, o homem que estava do outro lado da rua caminhou na direção deles, com uma Bíblia na mão, gritando que eles não sabiam nada sobre o que estavam falando.
Maldonha ergueu uma das mãos e, como se quisesse imitar o gesto do homem, disse em voz alta:
— Vocês estão brincando com os poderes de Deus! — fez uma pausa enquanto olhava seus interlocutores e, logo em seguida, em voz baixa, prosseguiu: — O homem gritou essas palavras e continuou a caminhar na direção dos rapazes. Ele vociferava com tanto fervor que as veias do pescoço faziam um volume assustador. Quando estava próximo dos garotos, continuou falando, mas por não receber nenhuma atenção, deu as costas e começou a ir embora. Pra afrontar o homem, Paulo gritou que tinha medo dos castigos de Deus, e que não tinha medo do Diabo. E ele não parou por aí. Continuou gritando… gritando… — em um instante de reflexão, Maldonha balançou a cabeça para os lados. — Até que ele disse o que não devia.
— O que ele disse? — perguntou Álvaro, interessado na história.
— Disse que dançaria uma valsa com o Diabo — respondeu o velho, hesitante.
— Minha Nossa Senhora! — exclamou Marsílio, após engolir o chope para não cuspi-lo com sua exclamação.
— Paulo disse isso pra chamar a atenção dos colegas e também a do homem — continuou Maldonha. — Todos os rapazes que estavam lá olharam pra ele abismados, mas nada disseram. O homem parou onde estava. Era como se o que tinha acabado de ouvir tivesse paralisado suas pernas. Olhou para Paulo e, aos gritos, disse: “Blasfêmia! Isso é uma blasfêmia!”. E continuou gritando enquanto se aproximava. Quando estava bem diante de Paulo, ficou quieto por um instante e depois exclamou: “Diga, pelo amor de Deus, que você não disse isso sério! Vamos! Diga que já está arrependido de ter dito isso!”.
Houve um breve silêncio na narrativa de Maldonha, interrompido por Marsílio, que perguntou:
— E daí, o que Paulo disse?
Maldonha fez um ruído quase inaudível com a boca e depois respondeu:
— Paulo riu e disse que não estava arrependido de nada. Disse também que aquela não era a primeira e nem seria a última vez que diria aquelas palavras. Realmente aquela não foi a primeira vez que Paulo disse a tal frase. Sempre que ficava nervoso ao discutir com sua mãe, que era uma mulher muito religiosa, gritava aquelas palavras pra ofendê-la, parecendo sentir muito orgulho daquilo. O homem fez um gesto de reprovação com a cabeça, mas Paulo não parava de falar. Disse que dançaria uma valsa sim, e sorria com desdém.
Maldonha acendeu outro cigarro na guimba do anterior e bebeu mais um gole de vinho. Pedro e os outros continuaram em silêncio. Cada um tinha uma expressão diferente no rosto, mas a de John era a mais distinta de todas. Os outros pareciam estar ansiosos para o término da narrativa, mas ele, à medida que Maldonha adiantava a sua história, percebia que tudo, de alguma forma, era direcionado a ele e não estava gostando nada daquela situação.
— E então, o que aconteceu depois? — perguntou Afonso, interessado pela história.
De forma intensa, Maldonha tragou mais uma vez, o que fez a ponta do cigarro cintilar. Depois ergueu a cabeça para o alto e expeliu a fumaça.
— Aconteceu o que deveria acontecer — continuou. — O homem foi embora, mas antes exclamou: “Que Deus tenha compaixão de sua alma!”. Foi isso o que ele disse antes de ir embora. Parecia saber o que estava por vir na vida de Paulo. Naquela noite, logo depois do acontecido, alguns garotos também foram embora; os outros ficaram lá por mais um bom tempo. Discutiram sobre outros assuntos, menos sobre o ocorrido. Paulo se sentia arrependido, mas era algo que tentava esconder de si próprio, no lúgubre porão dos próprios pensamentos, aprisionado com grossas correntes pelos pés e pelas mãos. Não era um arrependimento sincero, pois no fundo quis se sentir superior, como sempre tentava ser a respeito de assuntos que não tinha o menor conhecimento. Era como se tentasse se esconder das coisas que não lhe agradavam tentando se passar por sábio e, às vezes, era grosso com as pessoas que o contestavam. Fazia pose de superior… Vocês estão entendendo?
Afonso e Marsílio fizeram um sinal afirmativo com a cabeça.
Num tom de voz que, aos poucos, transformava-se em algo assombroso, Maldonha continuou:
— Paulo queria ser conhecedor de tudo, mas não tinha conhecimento de muitas coisas das quais se achava dono da verdade. Mal sabia ele que um dia, não muito distante, viveria tamanha situação de pavor que o faria refletir sobre toda a sua vida em um único instante, e que essa situação seria apenas a primeira de muitas outras.
Maldonha bebeu mais um gole de vinho. Algo de estranho marcava de modo assustador sua fisionomia. Embora não aparentasse ter seus oitenta e três anos, em alguns momentos suas expressões faciais vincavam-lhe a pele queimada do sol de tal modo que ele parecia ser muito velho.                              
— Alguns anos se passaram depois daquela noite — prosseguiu o velho, e o tom sinistro da voz deu lugar a um ar de suspense. — Na ocasião, Paulo comemorava sua festa de casamento com os parentes e os poucos colegas de adolescência. Era uma bela noite, muito diferente daquelas em que ele e outros jovens conversavam, quase sempre à beira de uma fogueira, sobre assuntos regados por muito vinho e cerveja. Tudo parecia normal, como era esperado. A valsa principal foi anunciada, e os noivos caminharam para o centro do salão. Paulo estendeu a mão direita pra sua noiva, e ela a segurou com carinho. Houve uma salva de palmas. Paulo estava muito feliz. Ela permanecia quieta, mas… mas ao chegarem no centro do salão, ela deixou escapar um sorriso sinistro, abaixou a cabeça e, ao erguê-la, disse com voz suave, pausada e assustadora: “Vai ser uma honra dançar uma valsa com aquele que por anos me ofereceu essa dança”.
— Santo Deus! — exclamou Afonso, estupefato.
— Vocês não imaginam como Paulo se sentiu — continuou Maldonha. — Em um instante, ele estava todo sorridente, mas depois não havia alegria em seu rosto. O medo era tamanho que ele não conseguiu dizer uma única palavra. Apenas olhava pra noiva de modo repugnante, com um grito preso na garganta. Se alguém tivesse percebido o pânico, o pavor que ele estava sentindo, diria que ele estava num lugar horrendo, cercado por criaturas medonhas, e não diante de uma bela moça, como era sua esposa. Mas ninguém percebeu. Ninguém. Quando ele olhou para os convidados, todos aplaudiram, mas era como se tudo estivesse no mais profundo silêncio. Foi horrível! Horrível!
Por alguns instantes, houve um silêncio. Pedro abaixou a cabeça, pensativo. Algo o incomodava na história contada por Maldonha, mas ele não saberia definir o quê. Os outros aguardavam Maldonha prosseguir.
— Continue! — pediu Marsílio.
— Não há muito mais o que dizer — disse Maldonha. — Naquele instante, era como se Paulo estivesse sozinho em uma sala escura, vendo seu mundo desmoronar em meio ao som de suas palavras malditas, que por anos… — hesitou por um instante, passando a mão no rosto —… que por anos ditaram o ritmo de sua vida.
— Nesse caso, o ritmo da dança — acrescentou Afonso, num misto estranho de graça e incômodo.
— Sim — concordou o velho. Olhou para todos de forma breve, detendo o olhar por mais tempo em Pedro, e suspirou. Era como se tivesse algo mais a dizer, mas não era o momento. 

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sexta-feira, 14 de abril de 2017

Capítulo 1 - O Mistério do Viúvo Maldonha


— Daí ela me disse: “Eu não aguento mais!” — disse Álvaro, em tom teatral.
O riso foi inevitável.
— O que você estava fazendo? — indagou Marsílio. — Um canal sem anestesia?
Então o riso se tornou uma gargalhada uníssona.
— Vocês não acreditam? — insistiu o primeiro, depois de tomar um gole de chope. — Perguntem a ela. Ela dirá que teve orgasmos múltiplos.
— Se essa mulher existe — disse John, dono do bar, com seu sotaque norte-americano e com uma ponta de arrogância, natural de sua personalidade —, a única coisa que nos dirá é que você mais parece um açougueiro do que um dentista.
— Vou levar isso em consideração — retrucou Álvaro, encarando John com seus olhos azuis muito vivos —, afinal de contas fui eu quem tratou da maioria desses trambolhos tortos que você tem na boca e insiste em dizer que são dentes.
— Então deve ser por causa disso que eles são tão bonitos assim — ironizou John, abrindo a boca em seguida para mostrar os dentes. — Olha só o dentista que fui arrumar: um incompetente! E ainda por cima metido a conquistador.
— Eu só tenho trinta e cinco anos, tenho que curtir a vida, não acha?
— Sim, mas não precisa mentir tanto — contestou John. — Você fala demais!
Álvaro meneou a cabeça, erguendo uma das mãos num gesto descontraído, de quem não está nem aí para a opinião dos outros.
— Bem, o papo está bom, mas a patroa me espera em casa — disse Afonso. — Lá vou eu descer a ladeira. O inferno me espera.
— Dê lembranças ao Diabo — disse John, em tom de gozação, pois sabia que Afonso e a esposa não estavam se entendendo muito bem. Quem sofria com a situação era o filho do casal, o pequeno Caio, de seis anos.
Afonso, que seguia rumo à saída, mesmo de costas, deu com a mão em repúdio ao que ouviu de John.
— Modere suas palavras, meu caro amigo. Elas podem se voltar contra você — disse Leandro Maldonha, aproximando-se do balcão. A voz era rouca e excessivamente grave, do tipo que pode ser percebida nos beberrões perdidos. Era um senhor de oitenta e três anos, mais conhecido como Viúvo. Quando estava no bar, costumava ficar sentado a uma velha mesa isolada no fundo do salão, bebendo vinho e fumando um cigarro atrás do outro, suas únicas diversões. Ninguém sabia muito sobre ele. Além do mais, quase todas as pessoas mais velhas da região, que o conheciam de longa data, haviam morrido ou estavam em suas casas, sem saber discernir o dia da noite. E as que na época eram adolescentes ou crianças e que ainda moravam na região, simplesmente o ignoravam, como se ele fosse apenas um velho qualquer à espera da morte. Com os anos, todos se acostumaram a seus hábitos estranhos, mas ainda havia os que atravessavam a rua só para não passar do mesmo lado em que ele passava. Seria por medo, receio, algo do gênero, coisa que talvez as pessoas fizessem por força do hábito ou apenas por mera e medíocre superstição.
— Desde que venha na forma sinuosa de uma bela mulher, pra mim, está ótimo, Viúvo — retrucou John, em resposta ao que Maldonha lhe dissera, e abriu um horrível sorriso, deixando à mostra os dentes tortos, sob um espesso bigode malfeito, que quase lhe cobria a boca.
Ninguém percebeu quando Maldonha se aproximou do balcão. Havia pouca iluminação no ambiente, para imitar os bares dos antigos filmes de faroeste. Era um fetiche do norte-americano John, de cinquenta e sete anos. Radicado no Brasil havia mais de duas décadas, ele montou o bar com características típicas de um saloon havia pouco mais de seis anos e deu ao estabelecimento o mesmo nome de seu estado natal: Texas. Tudo isso na tentativa de fazer algo diferente. E, como esperava, conseguiu agradar a freguesia. Tinha fregueses fiéis, como esse grupo de amigos que sempre estava por lá para beber e jogar conversa fora. Até mesmo o dentista Álvaro, que morava em um bairro mais afastado, mas por ter um consultório na região, sempre passava para tomar um chope.
— O que dizemos, muitas vezes fica no ar, só esperando o momento certo pra nos atacar, e nunca a pancada é leve — prosseguiu Maldonha. — A língua do homem é muito mais venenosa do que se pode imaginar. Não sei como não morremos envenenados com a própria saliva.
Afonso estava prestes a sair do bar, mas, surpreso ao ouvir a voz de Maldonha, parou de andar e olhou para trás. Era a primeira vez que via o velho dirigir a palavra a alguém sem que tivessem falado com ele primeiro. Sem saber bem por que, resolveu voltar. Ao retornar, encostou ao balcão a barriga enorme, que passou a cultivar quando se casou, e pediu outro chope.
— Não morremos envenenados com a própria saliva porque lambemos muitas coisas por aí — brincou John, enquanto enchia uma caneca com chope. — Uma delas pode ser o antídoto. Começo a suspeitar que esse antídoto seja mulher.
— Acho que não, senão você já estaria morto há tempos, e a causa da morte seria envenenamento pela própria saliva — contrariou Afonso, sem saber direito do que eles falavam, embora tivesse uma vaga ideia pelo que havia escutado enquanto saía do bar.
— Aí é que você se engana! — exclamou John, orgulhoso, e, antes de continuar, colocou a caneca de chope sobre o balcão diante de Afonso e deu duas tapas no próprio peito. — É bem provável que o solteirão aqui faça mais sexo do que o amigo barrigudo — olhou de soslaio e de um jeito debochador para a avantajada barriga de Afonso. — Deve fazer muito tempo que você não vê o que tem entre as pernas, estou certo?
Afonso balançou a cabeça negativamente, arrumando a manga do camisão azul que usava. O dono do bar continuou:
— É bem mais fácil que essa cerveja mate você antes que a minha saliva me mate.
Afonso escancarou uma risada irônica e retrucou:
— Você se acha engraçado, não é mesmo?
O tom da conversa era amistoso. Ofendiam-se, era evidente, mas apesar dos insultos, tudo não passava de uma chacota entre amigos.
Encostado ao balcão, Maldonha prestava atenção ao que eles diziam. Todos estranharam o fato de ele ter ido até junto deles daquela forma inesperada, pois não era de seu feitio ficar batendo papo com alguém. Na verdade, mal dizia bom-dia às pessoas.
Não existe nada fora do homem, que nele entrando, possa contaminá-lo — disse Maldonha devagar —, mas sim o que sai da boca do homem é o que o contamina.
— Do que você está falando? — perguntou John, em tom de gozação. — Você deve estar ficando gagá. Nunca fala com ninguém e agora vem dar uma de filósofo, é?
Maldonha aproximou-se de John e só não chegou mais perto porque o balcão estava entre os dois. John tinha cerca de um metro e setenta de altura, corpulento, enquanto Maldonha exibia um corpo magro e estatura mais baixa. Se houvesse um desentendimento a ponto de ocorrer agressão física, o velho sairia em desvantagem, mas, embora John o insultasse muito, jamais seria capaz de agredi-lo.
— São Marcos, capítulo sete, versículo quinze — respondeu Maldonha de forma ríspida, mas sem elevar o tom de voz. — Se é que você conhece um único trecho da Bíblia Sagrada… Creio que não. Acho que estou perdendo meu tempo?
Afonso bebeu um gole de chope e perguntou:
— O que você quer nos dizer, Maldonha? Espero que não seja uma história de bicho-papão, mas, se for, tomara Deus que ele não tenha preferência por crianças barrigudas.
Todos riram, menos Maldonha.
— Não. Pode ficar tranquilo — disse o velho, voltando os olhos para John, enquanto pegava o maço de Pall Mall no bolso da camisa. Encaixou um cigarro no canto da boca, acendeu-o com um fósforo e soprou a espessa fumaça recém-tragada para o alto. — Ele prefere os bigodudos.
Novas risadas encheram o local, seguidas de um breve silêncio, mas apenas onde eles estavam, pois o bar era espaçoso e havia um vasto salão que dispunha de várias mesas. Era sexta-feira, pouco mais de oito horas da noite, e o movimento era bom. Em cerca de umas quatro mesas havia grupos de homens e algumas mulheres. A maioria jovem, com pouco mais de vinte anos. Sempre estavam ali, bebendo, comendo, jogando bilhar, namorando — se é que se pode chamar de namoro a imoralidade na qual viviam. Eram uns depravados — e algumas raras vezes arrumando confusão. Não eram o que se pode chamar de a escória da humanidade, mas também não eram o virtuosismo da juventude moderna.
Ele quem, velho maluco? — esbravejou John, colérico, rompendo o silêncio de modo repentino. — Você se julga engraçado, não é, velho doido?!
— Eu tenho uma história pra contar — prosseguiu Maldonha, sem dar a mínima para as ofensas de John —, que vai fazer vocês entenderem o que quero dizer.
Nesse momento, Pedro, um agente funerário, que também trabalhava como marceneiro, entrou no bar. Passou pela velha porta vaivém, que imitava as portas dos antigos bares de faroeste, mais um fetiche de John, e caminhou para o balcão. As duas partes da porta de madeira, com quase um metro de altura, balançaram para a frente e para trás, provocando um rangido nas dobradiças.
— Olhe quem vem chegando ali! — alertou Álvaro, olhando para Pedro.
— Chegou em ótima hora — ressaltou Marsílio. — Agora o time está completo. Chega mais. Toma um chope com a gente.
— O que está acontecendo? — perguntou Pedro, enquanto cumprimentava os amigos um a um com um aperto de mão. A presença de Maldonha foi algo que ele não achou comum.
— Não sei bem, mas parece que Maldonha quer nos contar algo — informou Marsílio, enquanto apertava a mão de Pedro, e voltando-se para Maldonha, indagou: — Não é mesmo?
— Não é qualquer coisa jogada ao vento — esclareceu Maldonha, passando o cigarro de uma mão para a outra para cumprimentar Pedro. As mãos do velho eram ásperas, e seu aperto de mão era suave mas firme. — É mais do que isso. É um alerta.
— Quer nos contar algo? — perguntou Pedro, sem demonstrar entusiasmo. Em seguida, olhou para John: — Gringo, um chope, por favor!
— A princípio, essa história que vou contar pode parecer sem sentindo — disse Maldonha —, mas é algo que fez um homem padecer por toda a vida. Se eu fosse dar um nome a essa história, seria “A Valsa”.
Ao dizer a palavra valsa, algo diferente ocorreu na voz e na expressão de Maldonha. Era como se os olhos o levassem para muito além da realidade, um mundo de terror vivido outrora, mas isso não foi percebido por nenhum deles, talvez por não o conhecerem muito bem. Todos ficaram quietos, esperando a história ser iniciada. John pediu a uma das duas moças, que trabalhavam para ele, que atendesse a mesa cinco, pois tinha acabado de ouvir um rapaz chamar.
Maldonha olhava sério para os cinco que estavam ali, enquanto fumava o seu cigarro. Eram intensas tragadas, uma atrás da outra.

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domingo, 9 de abril de 2017

Prólogo - O Mistério do Viúvo Maldonha


Tudo parecia acontecer mais uma vez, como se sua mente buscasse as minúcias do ocorrido. Cada detalhe era caprichosamente colocado diante de seus olhos feito um ensaio de pré-apresentação. E, sempre ao abrirem as cortinas, tudo era igualmente macabro, repetindo-se vezes sem conta. Algo dentro dele dizia-lhe que poderia evitar passar outra vez pela mesma cena, mas uma força o impulsionava para a frente: o desejo de saber a mensagem contida naqueles sussurros quase inaudíveis. Então ele caminhou pelo corredor que dava para a marcenaria do pai. Não poderia saber o que o aguardava, a menos que já tivesse acontecido outras vezes. A pele transpirava como se todo o líquido existente no corpo quisesse abandoná-lo. Tremia por saber o que veria ao cruzar aquela porta. Tentou controlar as pernas, impedi-las de levá-lo adiante, mas elas pareciam ter vontade própria. O desejo de acordar aumentou ao ver o pai caído no chão. Correu para socorrê-lo, embora soubesse que seria em vão. Abaixou-se e amparou-o nos braços. O pai sussurrava, tentava dizer-lhe algo que a morte levaria consigo.
— O quê…? — a pergunta misturou-se ao choro. O pai apontou para o fundo do salão, mas não havia nada lá. — O quê…? Eu não… Eu não consigo entender, pai! O que tem lá? O que quer me dizer?
Os sussurros continuaram. Eram arrancos incompreensíveis, como se houvesse um nó nas pregas vocais que impediam o som de ser produzido.
— Eu não consigo entender o senhor…
Aproximou-se ainda mais do rosto do pai na tentativa de entender aquela lamúria precedida da morte. Em vão. Tudo em vão. O último sinal de vida apagou-se no mesmo instante em que o pai fechou os olhos. O corpo dele ficou simultaneamente mole e pesado em seus braços. Aflito, olhou para os lados e tudo parecia girar, girar, girar… Girar como numa espiral estranha de desespero, medo e algo que ele não sabia explicar. 
— Pai! Por favor, pai…! Pai! — gritou ele, saltando o corpo para a frente. Estava úmido de suor. Tremia. O ar da realidade entrou-lhe nos pulmões. A cabeça doía intensamente. Olhou para o lado. A esposa nem sequer acordou com o grito dele, dormia tranquila, e ele não podia dividir com ela a dor e a angústia que sentia no peito. E mesmo que ela tivesse acordado com  grito, não o faria, pois os pesadelos e as frustrações eram dele e não queria dividi-los com ninguém, nem mesmo com a companheira. A filha pequena, de poucos meses, mexeu-se no berço. Ele levantou-se e certificou-se de que ela também dormia. Acariciou-lhe o rosto e sorriu com a certeza de que a filha era o seu bem maior. Saiu do quarto e sentou-se no sofá da sala, pensativo; sabia que passaria essa noite em claro, como muitas outras semelhantes em que o passado e as lembranças insistiam em atormentá-lo. Era sempre assim, uma busca angustiante por respostas, e obtê-las parecia algo completamente ilusório.

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A Tradição dos Anciãos - O Mistério do Viúvo Maldonha


Mateus 15, 1-14

1. Então chegaram ao pé de Jesus uns escribas e fariseus de Jerusalém, dizendo:
2. Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? pois não lavam as mãos quando comem pão.
3. Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Por que transgredis vós também o mandamento de Deus pela vossa tradição?
4. Porque Deus ordenou, dizendo: Honra a teu pai e a tua mãe, e: Quem maldisser ao pai ou à mãe, morra de morte.
5. Mas vós dizeis: Qualquer que disser ao pai ou à mãe: É oferta ao Senhor o que poderias aproveitar de mim; esse não precisa honrar nem a seu pai nem a sua mãe.
6. E assim invalidastes pela vossa tradição, o mandamento de Deus.
7. Hipócritas, bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo:
8. Este povo honra-me com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim.
9. Mas em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens.
10. E, chamando a si a multidão, disse-lhes: Ouvi, e entendeis:
11. O que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca isso é o que contamina o homem.
12. Então, acercando-se dele os seus discípulos, disseram-lhe: Sabe que os fariseus, ouvindo essas palavras, se escandalizaram?
13. Ele, porém, respondendo, disse: Toda a planta, que meu Pai celestial não plantou, será arrancada.
14. Deixai-os: são condutores cegos: ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova.

Sinopse - O Mistério do Viúvo Maldonha

Uma vida simples e monótona de um momento para o outro vira de ponta cabeça. Seria isso sonho ou realidade? E a realidade poderia estar atrelada aos sonhos?
Pedro, protagonista dessa história, também quer saber o que é real e o que é um mero sonho. Durante muito tempo, ele se sentiu atormentando pelo desejo de saber o que seu pai tentou dizer-lhe instantes antes de morrer. Foram sons ininteligíveis que precederam a morte, mas que viriam a atormentá-lo em sonhos de forma incansável.
Dúvidas e questionamentos do passado se fazem presentes em sua vida, e tudo o que ele ouve de seu mais recente amigo, o velho e misterioso Leandro Maldonha, parece deixá-lo mais confuso ainda, pois tudo vem imbuído de mistérios metafóricos, repletos de significados emblemáticos. Seus dias se atropelam, levando-o para bem perto da insanidade, como se o único caminho a seguir fosse esse mundo repleto de questões enigmáticas, onde as dúvidas são enlouquecedoras.
E quando ele pensa ter alcançado as respostas para os seus questionamentos a respeito da existência de Deus e para seus constantes sonhos, percebe que suas dúvidas não carecem necessariamente de repostas tão complexas como as que ele tem buscado.