sexta-feira, 28 de abril de 2017

Capítulo 3 - O Mistério do Viúvo Maldonha


Quando Maldonha parou de falar, todos continuaram em silêncio. Enquanto contava a história, ele falava como se houvesse presenciado os fatos. Os olhos escuros pareciam dois buracos fundos e inexpressivos, feito os de quem olha para o nada. Era como se ele estivesse em outra dimensão. As mãos tremiam tanto, que quando por alguns instantes tirava o cigarro da boca, dava a impressão de que ele lhe escaparia dos dedos. Era estranho olhá-lo, pois era como olhar para alguém que estava prestes a ter um ataque qualquer e cair morto de forma súbita. Até a respiração era diferente, de tal modo ofegante, que se podia notar sob a camisa preta puída o peito movimentar-se para a frente e para trás, como se o velho houvesse participado de uma maratona.
De certo modo, todos pareciam impressionados com a história. Pedro estava fascinado, mas tentava não demonstrar isso. Somente depois de Maldonha parar de falar é que ele tomou um gole de chope. Engoliu a bebida à força e por pouco não a cuspiu, pois ela havia esquentado no copo e perdido a fermentação.
— Ei, Gringo, me dá outro chope! — pediu ele, ao derramar a bebida na pia com a mão por sobre o balcão.
— Vai ser uma honra dançar uma…
— Não zombe! Isso não é brincadeira! — Maldonha interrompeu o que Marsílio diria.
— Mas não estou zombando. Apenas ia repetir o que disse o… o Diabo… ou sei lá quem disse isso!
— Ele próprio — disse Maldonha, soltando em seguida uma nuvem de fumaça pelas narinas. — O Diabo, ou um Demônio enviado por ele.
— Fascinante! — exclamou Álvaro, enquanto erguia a caneca de chope como se fosse fazer um brinde. — Realmente é fascinante — olhou para Maldonha. — Mas… diga aí, Maldonha, o que aconteceu depois com Paulo?
— Isso é outra história — respondeu Maldonha.
— Mas você não quer que a gente acredite nessa história, quer?
Maldonha pigarreou, pegou o copo e bebeu o resto de vinho em um único gole.
— Não — disse, segurando o copo vazio sobre o balcão. — Eu não quero que acreditem em nada.
— Eu pensei que você quisesse que a gente acreditasse — resmungou John, ao colocar sobre o balcão a caneca com o chope que Pedro pediu. — Eu não acredito!
— Não estou pedindo que acreditem — enfatizou Maldonha. — Não vou dizer que essa história é verdadeira ou falsa, mas se eu tivesse que esconder algo… seria a respeito dos nomes; apenas os nomes nessa história seriam outros, como de fato são.
Todos riram, menos Pedro. Algo naquilo tudo lhe causou uma sensação estranha. Não que acreditasse piamente na história, não era isso; era algo inexplicável, algo que o fazia suar como se a temperatura tivesse subido uns cinco graus, ou mais. Olhou para os amigos, que riam, e depois bebeu todo o chope de uma única vez, sem tirar a caneca da boca.
— Você pensa que assusta alguém com essa conversa de dançar uma valsa com… — esbravejou John, tentando achar o termo adequado para concluir a frase. — Com essa… essa coisa… o Diabo, a noiva que era o Diabo… sei lá o quê? Você pensa, Viúvo?!
Maldonha ficou em silêncio.
— Hein, Viúvo?! — insistiu John, com uma austeridade quase incontrolável; ele sabia que Maldonha havia contado a história direcionada ao que ele havia dito a Afonso sobre mandar lembranças ao Diabo e, de alguma forma, sentiu-se ofendido, incomodado. — Se eu tivesse um único filho, contaria essa história pra ele dormir e, com certeza, depois de rir muito, ele dormiria tranquilo.
Maldonha fixou os olhos em John à espera de que ele continuasse a esbravejar, mas John ficou quieto, devolvendo o olhar. Ficaram assim por alguns instantes, como se tentassem descobrir através dos olhos o que um estava pensando do outro. Já os demais não sabiam o que dizer, mas Pedro aproximou-se de Maldonha e com indulgência disse:
— Vamos parar com isso, pessoal — em meio a um sorriso amarelo, ele pôs a mão sobre o ombro de Maldonha. — Estamos aqui pra nos divertir.
— Conta outra história, velho! — atacou John, sem dar a mínima para o que Pedro acabara de dizer. — Assim quando eu resolver ter um filho, poderei escolher uma das suas histórias pra contar pra ele dormir. Esse tal de Paulo tinha razão, pra que ter medo do Diabo?! Pra quê?! Se eu não tiver medo dele, o que ele vai fazer? Pôr fogo no meu bar? É isso?! Pôr fogo no meu bar?! Pois que bote, então!
Maldonha soltou o cigarro no chão, apagou-o com o calcanhar da bota mal engraxada e, em tom de advertência, disse:
— Na multidão de palavras não falta transgressão, mas o que modera os lábios é prudente — fez uma pausa enquanto colocava a mão no bolso da frente da calça para retirar algo. — Provérbios dez, versículo dezenove — encarou John por alguns segundos e bateu com a mão esquerda espalmada sobre o balcão, no qual largou uma nota de dinheiro, dizendo: — Pode ficar com o troco… E modere suas palavras, pois elas, meu caro amigo, têm poder. E você não tem mais idade pra ser pai.
— Você é um doente, velho maluco! — esbravejou John. — Um velho demente!
— Lembre-se sempre das coisas que você disse. Elas ganharão forma e vão voltar pra você. Pode esperar que um dia elas voltam — ao dizer isso, Maldonha deu as costas e seguiu caminho.
— E a esposa, vai bem?! — gritou John, e Maldonha olhou para trás, com um misto de tristeza e raiva no olhar.
Todos olharam para John numa espécie de reprovação.
— Isso foi cruel, John — ponderou Pedro. — Não deveria ter dito isso.
John pegou o dinheiro sobre o balcão olhando para o velho, que caminhava de modo trôpego em direção à porta do bar, sem olhar para trás.
Por alguns instantes, o silêncio tomou conta do local. Todos tinham algo a dizer, mas, sem explicação, preferiram guardar para si próprios como se não conseguissem expressar em palavras o que estavam sentindo. Também não havia o que comentar, e se o fizessem seria apenas para dizer que, apesar de muito interessante, aquela história não passava de uma invenção de Maldonha. Já Pedro, embora fizesse o possível para não demonstrar, era o único que parecia ter levado Maldonha a sério. De alguma forma, a história mexeu com ele, deixando-o extasiado, pensativo, como se quisesse relacioná-la a alguma coisa, mas na cabeça apenas surgiam hipóteses à deriva, em um imenso mar de incertezas.
— Vê uma rodada por minha conta… pra quebrar esse clima chato… — disse Álvaro, ao bater no balcão com a palma da mão direita para chamar a atenção de John.
Beberam essa rodada, e outra, e mais outra, até que ficaram bêbados. Nenhum deles fez menção de comentar o ocorrido entre Maldonha e John, mas estavam certos de que tudo ficaria por isso mesmo, sem mais personagens, intrigas ou provocações. Havia sido uma discussão isolada, pelo menos era o que esperavam.
Ao cabo das rodadas de chope, todos foram embora.
— Posso deixar o carro na sua oficina, Afonso? — pediu Álvaro, voz ébria, enquanto saíam do bar.
— Está tão ruim assim pra dirigir? — brincou Afonso, e sua voz também denunciava o estado de embriaguês.
— Pra dirigir por longo tempo… sim.
— Homem prudente — gracejou Pedro, dando-lhe umas tapinhas nas costas.
— Pode sim, sem problemas — consentiu Afonso.
Pedro e Marsílio seguiram a pé. Os outros dois entraram no carro, Álvaro ao volante. Dirigir bêbado por alguns metros até a oficina do amigo, que ficava a uns cem metros do bar, do outro lado da rua, não o faria perder a habilitação, mas dirigir por quase meia hora seria assinar um atestado de burrice, e ele não estava a fim de se aborrecer por causa de uma tolice, ou ainda, na pior das hipóteses — não que fosse descartada —, poderia sofrer um acidente. Tudo foi decidido de maneira sensata e, ao chegar à casa de Afonso, Álvaro deixou o carro na oficina, chamou um táxi e foi embora. 


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