No Meio de Tudo, o Amor
Através do vidro,
ele pôde ver sua secretária atender ao telefone e, em seguida, apertar algum
ramal no teclado do aparelho. O homem olhou de forma automática para o aparelho
sobre sua mesa e, um instante depois, ouviu-o tocar. Não atendeu. Tocou mais
duas vezes. Por fim, retirou-o do gancho e disse um alô num fio de voz que
contrastava com seu timbre usual, forte e grave. Ficou em silêncio apenas
concordando com muxoxos enquanto ouvia quem falava do outro lado. Segundos se
arrastaram em meio ao seu silêncio, até que, como saído de um transe, respondeu
ao chamado do outro lado.
— Sim, ainda estou aqui. — Pausa
para ouvir o outro lado. — Estou a caminho. Sim, vou sair agora.
Desligou e ficou parado, somente
os ombros erguiam-se por causa de sua respiração mal cadenciada. Saiu dizendo
apenas à secretaria que não voltaria mais nesse dia. Era pouco mais de nove
horas da manhã. Talvez pudesse dizer que o que ouviu não foi uma notícia, mas
apenas um aviso, como se fosse algo já esperado há muito tempo, mas ainda assim
o abalou, soou-lhe triste, causando-lhe uma sensação de estar num espaço sem
paredes, sem chão abaixo dos pés ou céu sobre sua cabeça. Era um vazio, um
estado de quase letargia. Não dirigiu para o local combinado com a pessoa que
ligou para ele. Foi para a casa da tia, que o criou, mas não buscava um
encontro com ela; buscava um encontro com suas lembranças.
Enquanto dirigia, pensava naquela
mulher e no que ela significava para ele. No sofrimento que encararam nos
últimos dois anos. Uma luta sem fim. Eram dias hospitalizada até que recebia
alta e voltava para casa. Ficavam bem por um mês, dois com sorte e, às vezes, não
durava uma semana, e toda a agonia retornava sem aviso. Ele costumava dizer no
plural que adoeciam e ficavam. Era assim que ele se sentia. Ele sofria junto sem
ela saber. Ela não precisava saber, ele pensava. Aquela mulher era como se
fosse sua mãe. Por ela farai tudo. Cuidou dele desde os sete anos quando os
pais dele se separaram e foram cada um para um estado. Ela era, na verdade, sua
tia-avó, irmã de seu avó materno.
Estacionou o carro junto ao meio-fio
e desceu. Passou pelo estreito portão e seguiu para a porta da casa. Tinhas as
chaves. Entrou e um cheiro de casa de interior, embora fosse uma casa do
subúrbio de cidade grande, invadiu-lhe as narinas. Encostou a porta atrás de
si, caminhou alguns passos e parou junto à mesa, na qual jogou as chaves.
Suspirou pensativo. Seguiu para o armário, pegou a chaleira e encheu-a
totalmente. Colocou no fogo mais baixo que o fogão permitia. Voltou para a mesa
e sentou-se na cadeira em que sentava quando criança, mesmo quando já adulto e
ainda morava na casa com a tia.
Na
cabeça, fervilhavam lembranças. Momentos de desentendimentos com a tia se
revezavam com lembranças boas. Seria isso o princípio desse momento tão triste
pelo qual todo ser que vive o suficiente passa algumas vezes. Lera, não se recordava
bem onde, sobre as fases do luto. Eram quatro? Cinco? Não se lembrava ao certo,
mas sabia que a primeira era a negação. No entanto, não se sentia bem assim.
Sentia-se como que anestesiado, mas não fisicamente. A dormência era na alma.
Mexia
de forma compulsiva nas falanges dos dedos, como se quisesse tirar algo deles.
Cutucava as unhas, e a mente viajava num labirinto sem fim por tempos e
momentos que viraram recortes na mente, que não se encaixavam de forma lógica.
Um barulho fê-lo erguer a cabeça e
viu um menino de uns sete anos vir da sala. Reconheceu-se nele. O cabelo
bagunçado, uma camisa xadrez com tons de cinza, preta e branco. Usava uma bermuda
jeans. Adora aquela bermuda! O menino aproximou-se e sentou-se ao lado direito
dele.
— Eu sei como deve estar se
sentido — disse o menino, e o homem reconheceu seu timbre infantil, mas a forma
de o pequeno falar era semelhante à da tia. — Mas tudo que é vivo um dia
precisa partir. É o natural.
O homem contraiu os lábios, sem
saber o que dizer. Suspirou.
— A gente acha que está preparado,
mas nunca está — disse, por fim. — Eu… eu ainda tinha tanto ao dizer… — Ergueu
o olhar por um instante e abaixou-os novamente enquanto continuava: — Queria
dizer que ela era importante pra mim.
— Mas disse. Muitas vezes, sem ter
precisado usar palavras. Você precisa aceitar o fim.
— Ela era muito importante pra
mim, e quantas vezes a chateei…
— Ah — interrompeu o menino —, mas
ela também te chateou algumas vezes.
— E eu agora queria poder dizer que sinto muito
por isso.
O menino apontou para o centro da
mesa.
— Olha aquela balança — disse.
O homem ergueu o olhar e,
surpreso, viu no centro da mesa, uma balança pequena estilo Deusa da Justiça.
— Você reconhece que a chateou,
que algumas vezes a detestou… — continuou o menino, ao que o homem confirmou, envergonhado,
com aceno de cabeça. — Pegue esse ato falho e bote na balança.
— Pegar? — Estranhou o homem. —
Onde?
O
menino bateu o dedo indicador da mão direita no centro do peito do homem,
dizendo: — — Daí de dentro. Faça isso de forma simbólica.
Contrariado, o homem fez um gesto
com se pegasse algo do meio do peito, levou em direção à balança e colocou do
lado direito, no pequeno prato prateado, e isso a fez pender um pouco,
assuntando-o.
— Agora é minha vez — disse o
menino. — Lembra quantas vezes a irritou por ficar jogando videogame até tarde
e não querer ir à escola no dia seguinte por estar sonolento…?
— Mas isso foi um raiva que eu a
fiz passar e não…
— Ela sentiu, muitas vezes, raiva
de você por isso — interrompeu o menino, fez o mesmo gesto feito pelo homem
anteriormente e colou no outro prato da balança algo invisível, mas o peso deu
novo equilíbrio à balança.
Fizeram isso uma sequência de
vezes, levantando nas lembranças momentos de desentendimento e desavenças, até
que pararam, e o menino perguntou:
— Percebeu que a única parte da balança
que não pende é o meio?
O homem riu.
— Mas é claro — exclamou. — O meio
é o meio, o equilíbrio, não vai peso de certa forma ali.
— O meio é o amor, sobretudo o amor
que sentimos por nós mesmos. Ao termos controle desse amor, o resto pode ser
equilibrado. Mas os outros tipos de amor dependem de um jogo.
— Jogo?! — A pergunta saiu
impregnada de ironia.
— Sim, jogo. No amor próprio
sabemos exatamente onde está o limite suportável para algo e nos protegemos,
sacudimos os braços e tiramos o peso que pende de um lado só e seguimos. Isso
acontece quando uma das partes responsável por esse amor que não é o próprio
não deposita o peso de suas falhas deixando o outro lado perder até o limite.
— Limite?
— O amor entre as pessoas pede por
equilíbrio. É se aceitar, mas também aceitar o outro. É se reconhecer em todos
os sentidos e ser capaz de depositar sua falha na balança para manter o
equilíbrio e esperar o mesmo do outro. Se isso ocorre apenas de um alado, ou
mais de um lado, mesmo havendo amor, haverá muito sofrimento. Você e sua tia
souberam se amar. Em outros casos, em sua vida, e você sabe do que estou
falando, é preciso passar por um luto, que, a um só tempo, é semelhante e
distinto desse que você irá passar. É preciso aceitar que o equilíbrio se
perdeu com o tempo.
Houve um instante de silêncio,
como se o menino estivesse esperando o homem absorve o que ele estava dizendo.
— Olha — continuou o menino —, é
difícil, mas, às vezes, é preciso aceitar. Assim como sua tia partiu, deixando
a sensação de algo não avisado, há anos a vida dela deu os sinais de que não ia
se estender por muito. Nesse caso, você… Aliás, todos fizeram o que foi
possível. Você mais! Esse luto não pode ser evitado; outros podem, mas não
sabemos ler os sinais para evitá-los, e a balança tende a pender apenas de uma
lado, se equilibrando em alguns momentos, mas chega a hora que o controle se
perde no tempo e nas atitudes.
O homem nada disse. Mirou com os
olhos a cesta de frutas no centro da mesa. Pegou um mexerica. Cheirou-a. Apesar
de estar havia dias ali, ainda tinha a aparência bonita. Descascou-a em
silêncio, colocando as cascas ao lado esquerdo da mesa. Ao terminar, separou os
gomos da fruta, levou um à boca e mordeu a parte em que ficam as sementes.
Levou a mão esquerda à boca e depositou as sementes retiradas. Em seguida, fez
o mesmo com os demais gomos e, ao terminar em cada um deles, colocava-os um
atrás do outro, enfileirados. Pareciam canoas.
— Ela fazia isso, e você adorava —
disse o menino.
Empurrando um dos gomos na direção
do menino, o homem disse:
— Olha o barquinho! Olha o
barquinho! Vai ser sugado pelo abismo…
Nesse momento, a chaleira apitou
como que para ilustrar o ato do homem. Era feito o apito de um navio e até pôde
vê-lo alaranjado, seguindo e apitando, sulcando o mar de suas lembranças. Deixando
os gomos sobre a mesa, levantou-se para fazer o chá. Com a chaleira e a erva
doce num saquinho que pegou no armário voltou para a mesa, mas o menino não estava
mais lá, nem a balança. Estavam somente os barquinhos enfileirados. Sentou-se e
fez o chá, o cheiro invadindo suas narinas e preenchendo-lhe o corpo inteiro.
Antes de experimentar a bebida,
pegou o pote de biscoitos amanteigados no centro da mesa. Abriu-o, retirou um,
molhou-o no chá. Ao colocá-lo na boca, sentiu o gosto doce da infância, de como
as coisas naquele início de vida eram doces, leves, e nesse momento, enfim,
desabou no choro.