sexta-feira, 16 de junho de 2017

Capítulo 10 - O Mistério do Viúvo Maldonha


Durante toda a semana, Pedro ficou trabalhando em seu novo rack. Lívia, quando não estava arrumando a casa, estava lendo ou estudando. À noite, ia à faculdade e, todos os dias quando chegava, encontrava o pai vendo tevê.
Na sexta-feira pela manhã, Pedro foi à casa de sua mãe, que ficava a cerca de meia hora de carro. Chamou a filha, mas Lívia não quis ir. Disse que precisava fazer uma pesquisa na Internet para um trabalho da faculdade, por isso ficaria em casa.
No sábado, bem cedo, foi a vez de Lívia visitar a mãe. Esperava que Roberto fizesse outro convite para saírem juntos, mas isso não aconteceu. Achou até bom, não porque não quisesse sair com ele, mas porque estava devendo uma visita à mãe e ter de dar outra desculpa ao rapaz não seria nada gentil e, dessa vez, Roberto teria certeza de que ela estava fugindo dele.
Ela e a mãe conversaram bastante. Rodrigo, o padrasto de Lívia, não estava em casa, pois tinha ido jogar futebol. Quando chegou, por volta das três horas da tarde, Lívia estava de saída, mas ele insistiu que ela ficasse, dizendo que a levaria de carro depois. A insistência foi tanta que ela resolveu ficar um pouco mais. Dava-se bem com ele, pelo menos o tratava com transparência, e não queria fazer-lhe nenhuma desfeita. Achava-o um cara legal, embora ainda tivesse dificuldade de assumir isso para si mesma por achar que Rodrigo ocupava um lugar que era do pai dela. Ficou conversando com ele e a mãe até o relógio anunciar cinco horas. Na hora de ir embora, Lívia resolveu voltar de ônibus, recusando a insistente carona que Rodrigo lhe havia oferecido. Para chegar a casa, precisava tomar dois ônibus; sua mãe não morava muito longe, mas o local era contramão em relação ao bairro em que ela e o pai moravam.
Quando chegou a casa, era pouco mais de sete horas da noite. Ana Paula estava à sua espera.
— Eu fiquei presa no trânsito — lamentou-se Lívia, após cumprimentar a amiga com um beijo no rosto. — Se eu soubesse que você viria, teria voltado mais cedo.
— Eu acabei de chegar — informou Ana Paula. — Seu pai quis ligar, mas eu disse que não precisava, que voltava outra hora, mas ele insistiu pra eu esperar.
Pedro levantou-se do sofá.
— Eu sabia que você estava pra chegar — disse ele —, agora que chegou, vou subir pra tomar um banho. Larguei agora o trabalho na marcenaria…
— Como anda o rack? — perguntou Lívia, interrompendo o pai.
— Quase pronto — respondeu Pedro e seguiu em direção à escada. — Dá licença. Fiquem à vontade!
Lívia assentiu com a cabeça. Em seguida, retirou do bolso o celular que ganhou de Roberto.
— Olha o que eu ganhei do Roberto.
— Nossa! — exclamou Ana Paula, pegando o celular da mão de Lívia. — Ele tá a fim de você mesmo, hein? Está fazendo de tudo pra agradar você.
— Vamos lá para o meu quarto — Lívia convidou a amiga.
As duas subiram para o quarto de Lívia, onde poderiam ficar mais à vontade.
Enquanto elas conversavam, Pedro terminava o banho. Após sair do banheiro, vestiu um agasalho, pois havia esfriado um pouco, e ele pretendia ir ao Texas tomar um chope. Antes de sair, dirigiu-se ao quarto de Lívia e bateu à porta, que estava entreaberta.
— Entra, pai — disse Lívia.
Pedro apenas colocou a cabeça para dentro
— Eu vou ao Texas, não demoro — avisou ele. Em seguida, olhou para a amiga da filha e acenou com a mão. — Até mais Ana Paula.
— Até — secundou Ana. — E obrigada.
— Por nada!
Pedro desceu a escada de modo rápido e saiu de casa.
Elas continuaram conversando. A certa altura, durante o diálogo com a amiga, Lívia comentou que pretendia escrever um livro. A conversa fluiu em meio a esse assunto.

*  *  *

Enquanto Lívia falava de seus projetos, Pedro estava a caminho do Texas e tentava não pensar na última conversa que tivera com Maldonha. Aquele assunto havia mexido com ele, deixando-o de tal modo que, por várias vezes, viu-se questionando a si próprio, como se fosse um louco que passa grande parte do tempo em um solilóquio maluco, um louco de frente a um espelho.
Quando estava passando próximo à rua em que Maldonha morava, parou e ficou olhando na direção da casa dele. Estava tão distraído, pensando em qualquer coisa relacionada ao velho que, quando sentiu no ombro a mão de alguém, assustou-se. Nesse momento, sentiu uma sensação estranha, como se alguém o tivesse flagrado fazendo algo que tentava esconder. Olhou para trás e se deparou com Maldonha. Entreolharam-se, e Pedro sorriu. Não era bem felicidade o que sentiu ao olhar para o velho. Era um sentimento estranho, inexplicável, como se estivesse ao lado de seu pai, que falecera quando ele tinha apenas dezenove anos. Só que Maldonha não o forçava a crer em Deus, como o pai tentava fazer, a ponto de transformar uma conversa numa calorosa discussão. Talvez essas discussões com o pai fossem um dos motivos para fazê-lo detestar qualquer tipo de conversa relacionada à religião. Era seu trauma pessoal, embora não tivesse consciência alguma a respeito disso.
— O que está fazendo aí, parado? — perguntou Maldonha.
Pedro hesitou por um instante, buscava em algum lugar do cérebro uma resposta que não fosse tão óbvia quanto a sua presença ali, olhando para a estreita rua sem saída, na qual apenas o velho e solitário Leandro Maldonha morava.
— Estava esperando por um instante… — respondeu, dizendo ao menos uma parte da verdade. — Pensei que… talvez… pudesse encontrar você e irmos juntos ao Texas.
Maldonha franziu a testa, e Pedro teve a impressão de que o velho não acreditou em uma só palavra que ouviu.
— Pois então — disse Maldonha —, eu estou aqui. Vamos?!
— Claro… claro. Vamos!
Começaram a andar. Maldonha sempre um passo atrás de Pedro. O Texas ficava a cerca de dois minutos dali, mas com o passo trôpego de Maldonha, gastariam muito mais do que isso.
Quando chegaram ao Texas, o bar estava fechado. Pedro se aproximou e subiu os três degraus que davam para a única porta para ver se havia algum aviso colado, mas não havia nada. Olhou para Maldonha e balançou a cabeça, contrariado. Por que será que está fechado?!, pensou, enquanto descia os degraus. Fechou a jaqueta, imitação de couro, e, ainda olhando para o velho, deu de ombros.
— Vamos a outro local — propôs Maldonha, colocando a mão direita no ombro de Pedro. — Há um barzinho logo ali na outra rua… Lá a gente pode conversar um pouco… só você e eu. O que acha?
Pedro meneou a cabeça e deu de ombros.
— É — disse, pondo a mão sobre o braço de Maldonha, que ainda estava sobre seu ombro —, mudar um pouco de ambiente de vez em quando é bom.
Maldonha consentiu com a cabeça, em meio a um sorriso torto. Em seguida, retirou do bolso da camisa o maço de cigarros, pegou um e, enquanto seguiam rumo ao barzinho, acendeu-o.
Caminharam em silêncio. O estabelecimento era bem próximo dali. Bastava seguir adiante até o fim da rua e dobrar a esquina. Pedro teve de andar um pouco mais devagar do que de costume. Detestava isso, mas não havia opção, Maldonha não era mais nenhum jovem atleta.
Chegaram ao fim da rua e continuaram a andar. Ao chegarem ao local, entraram e sentaram-se lado a lado; Maldonha ficou em direção à porta. O bar era pequeno, dispunha de poucas mesas ao fundo e um balcão extenso, semelhante a um balcão de padaria. Esperaram por um instante até que fossem atendidos. Pedro pediu uma lata de cerveja; Maldonha, um copo de vinho como de costume, enquanto apagava a guimba do cigarro, espremendo-o dentro de um velho cinzeiro que o dono do bar colocou diante dele.
— Deveria parar com o cigarro — comentou Pedro, rompendo o silêncio que os acompanhou por todo o trajeto.
— É, você tem toda razão. Eu parei por um longo tempo, mas depois que a Kátia desapareceu, eu voltei a fumar.
— Kátia era sua esposa, não era? — perguntou, para confirmar, enquanto erguia o anel da lata de cerveja que o dono do bar lhe trouxe.
— Sim, era. E continuará sendo para o resto da minha vida — respondeu o velho, com tristeza na voz. — Ela era o meu ponto forte contra muita coisa. Sabe, Pedro, quando namorávamos, a Kátia era uma pessoa bem de saúde, mas depois que casamos… — fez uma pausa como se estivesse relembrando algo muito triste. — Eu sou o culpado…
— Culpado?! — Pedro não entendeu o que Maldonha quis dizer com isso. — Como assim?
— Eu sei que sou.
— Não foi culpa sua — Pedro tentava fazê-lo não se sentir culpado, mas não sabia bem do quê. Não sabia direito o que havia acontecido com a esposa de Maldonha. A única coisa de que tinha conhecimento era que ela havia desaparecido e só.
Maldonha pegou o copo de vinho e bebeu um gole, olhando para Pedro; os olhos raiados de sangue estavam úmidos.
— A história é muito mais complicada do que você imagina.
— Bem… — Pedro sentiu-se confuso. — Eu tenho a noite inteira.
— Depois que casamos, a Kátia ficou diferente. Havia dias em que ela não dizia coisa com coisa, e nós brigávamos, mas não por minha vontade. Sei que também não era por vontade dela. Era uma força maior. Ela me agredia, jogava objetos em mim — Maldonha abaixou um pouco a gola da camisa do lado direito, para mostrar a Pedro a horrível cicatriz que pegava do começo da clavícula e se estendia até quase a extremidade do ombro. — Está vendo isto?
Pedro fez que sim com a cabeça, olhando a cicatriz na pele enrugada de Maldonha.
— Sim, estou — respondeu, com uma expressão de espanto no rosto. — O que foi isso?
— Isto foi uma garrafa que ela quebrou em meu ombro — respondeu, arrumando a camisa. — Foram dezessete pontos! Eu tive que inventar uma desculpa esfarrapada no posto de saúde. “Um acidente doméstico”, foi o que eu disse, mas acho que não acreditaram muito nisso, não. Eu só queria protegê-la…
— Eu entendo.   
—… para que não a levassem de casa. Eu não queria que a tirassem de mim.
Maldonha pegou o maço de cigarros e acendeu um deles com um fósforo. Pedro observou em silêncio a ponta do cigarro cintilar e a fumaça se misturar ao ar.
— Naquele dia, quando cheguei em casa — prosseguiu Maldonha, após soprar a fumaça tragada para o lado oposto ao de Pedro —, a minha esposa estava desorientada. Ela estava terminando de arrumar a bagunça que a gente fez por conta da briga. Eu entrei, e ela me perguntou o que havia acontecido. Ela não se lembrava de nada. Nada, Pedro! E isso aconteceu muitas vezes.
Pedro bebeu um gole de cerveja, tocou no braço de Maldonha com a mão direita como se lhe pedisse que esperasse um instante e fez um sinal com a esquerda para o dono do bar.
— Você tem salame? — perguntou.
— Tenho — respondeu o dono do bar. — Vai uma porção?
Pedro fez um sinal positivo com o polegar esquerdo.
— E daí? — perguntou a Maldonha em seguida. — O que aconteceu depois?
— Bem, ela ficou preocupada. Quando viu o meu ombro enfaixado, pude ver nos olhos dela que estava assustada. Eu não deveria ter contado a ela o que aconteceu, mas ela precisava saber… pelo menos disso.
— Tudo isso começou quando vocês se casaram? Quero dizer, antes, quando vocês se conheceram, ela não tinha essas crises?
— Não. A primeira vez foi no dia do nosso casamento. Ela me disse que não estava se sentindo bem. Ela pensou que fosse porque estava ansiosa, e eu também pensei que fosse por isso — fez uma pausa para uma tragada. — Quando ela entrou na igreja, eu percebi que ela realmente estava diferente, até a voz dela, na hora em que disse sim ao padre, estava estranha; o jeito que me olhava, como se quisesse me dizer algo, mas estivesse esperando o momento certo… O pior aconteceu na festa… — fez outra pausa, dessa vez para beber um gole de vinho. — Meu Deus, eu nunca vou esquecer aquele dia! Todos correndo pra ajudar, e eu me sentindo impotente.
— Mas o que aconteceu? — perguntou Pedro, envolvido.
— A Kátia desmaiou. Caiu diante dos meus olhos. Depois daquele dia, ela nunca mais foi a mesma! Passou a ter essas crises de que lhe falei. Eu sei que foi minha culpa.
— Mas pelo que você está dizendo, não há por que achar que foi sua culpa. Às vezes, pode ter sido uma emoção muito grande por estar se casando… — nem mesmo Pedro acreditava no que estava dizendo. Apenas dizia para confortar o velho. — As mulheres têm essas coisas… Isso pode ter afetado a cabeça dela, sei lá!
— Não, eu tenho certeza de que não foi isso. Eu não era e nunca serei tão maravilhoso a ponto de deixar uma mulher à beira da loucura, mas foi minha culpa. Disso eu tenho certeza.
— Você não pode pensar assim… — Pedro não sabia direito o que achar.
Maldonha ficou em silêncio, passou as mãos no rosto e suspirou.
— Quando ela desapareceu, o que você fez?
— Eu quase enlouqueci. Eu fui em hospitais, delegacia, necrotério, mas ninguém tinha informações sobre ela. E eu sabia que não teriam, mas eu ia mesmo assim. Os anos se passaram, e eu ganhei esse apelido maldito. Eu moro nessa droga de bairro há mais de cinquenta anos, e virei piada de todos… O homem do saco para as criancinhas — Maldonha sorriu ao dizer a última frase.
Pedro manteve-se quieto, com um sentimento de pesar dentro de si.
— Eu não queria mais falar sobre isso — pediu o velho, em tom que deixou bem claro para Pedro que algo naquilo tudo o incomodava muito. — Vamos falar de você. Como é, você é casado?
— Sou divorciado — respondeu Pedro de forma seca. Estava curioso para saber mais sobre Maldonha, mas insistir não era o melhor a fazer. Não era do caráter dele insistir em saber da vida de alguém, mesmo que a curiosidade que sentia fosse maior do que a sua ética. Porém, era indiscutível que havia muito a ser dito pelo velho, mas ele parecia não se sentir à vontade em falar sobre a sua esposa e o desaparecimento dela. Era como se houvesse algo por trás disso tudo que ele tentava negar até mesmo para si, apagar da memória de uma vez por todas e passar a acreditar em algo mais fácil de suportar.
O dono do bar trouxe a porção de salame. Pedro aproveitou e pediu outra lata de cerveja.
— O divórcio não é uma coisa que agrada a Deus — comentou Maldonha.
E infidelidade, é?, Pedro pensou em dizer, mas se controlou e engoliu as palavras recém-formadas junto com uma fatia de salame.
— Meu casamento acabou por causa de infidelidade por parte da minha ex-mulher. E pelo que me consta nas Escrituras Sagradas, nesse caso, eu não estou em pecado, e sim ela, mas o que isso me importa?
Não acredito mesmo em Inferno ou Céu, pensou Pedro, e pecado é o nome de um monte de baboseiras que nos impõem o que é certo e o que é errado, pra nos ensinar a ser um cidadão de bem. Eu deveria tê-los matado em um desses motéis baratos em que eles se encontravam.
Enquanto Pedro viajava no que pensava dizer, mas não achava necessário, pois era certo que isso nada acrescentaria à conversa, Maldonha bebia o resto de seu vinho. Em seguida, o velho estendeu o copo na direção do dono do bar para que ele o enchesse. Depois, colocou-o sobre o balcão e ficou à espera.
— Muito bem — disse a Pedro, enquanto observava o dono do bar encher o copo com vinho. — Apesar de não crer em Deus, você parece conhecer a Bíblia, não é mesmo?
— Não tanto quanto você, mas li um pouco — pôs uma fatia de salame na boca e empurrou em seguida a bandeja na direção de Maldonha. — Coma aí! Eu peguei pra nós dois. Você não gosta?
Maldonha descansou o cigarro no cinzeiro, pegou um palito, furou uma fatia de salame e levou-a à boca.
— Olhe, você pode não acreditar — disse o velho, de boca cheia —, mas eu li várias vezes a Bíblia. Sem exagero nenhum, já fiz isso mais de vinte vezes.
— Eu não duvido — disse Pedro, mas ficou um tanto surpreso com o número de vezes que Maldonha havia lido a Bíblia. O velho não exagerara, havia lido inúmeras vezes o Livro Sagrado a ponto de perder a conta. Ao longo dos anos, fez isso vinte e sete vezes e já estava na metade da vigésima oitava. — Você é muito religioso…
— Religioso não é bem o termo certo pra mim — interferiu Maldonha. — Quando eu era jovem, eu discutia muito com minha mãe, que Deus a tenha! Era uma briga atrás da outra, tudo por causa de religião…
Malditas sejam as religiões, foi o pensamento que ocorreu na cabeça de Pedro, mas preferiu ficar quieto. Não queria estragar a conversa.
— Religião não se discute — continuou o velho. — Minha mãe era muito religiosa, e ficou mais ainda quando meu pai morreu. Eu não aceitava de forma alguma… Sempre acreditei em Deus, mas não estava nem aí para o que minha mãe me dizia. Depois que casei, passei a estudar a Bíblia em busca de alguma resposta para o que estava acontecendo à minha volta. A minha mãe morreu dormindo, Pedro. Depois foi a vez do meu sogro e, em seguida, o único irmão da minha mulher. Isso deixou Kátia ainda mais perturbada; as crises se tornaram mais frequentes. Pouco tempo depois, minha sogra se entupiu de remédios e morreu.
— Suicídio?! — perguntou Pedro, espantado.
— Exatamente, Pedro. Suicídio! Ela se entupiu de remédio. Foi encontrada por uma vizinha, uma velha amiga dela que sempre ia visitá-la. Morreu a caminho do hospital. O estado mental de Kátia tendeu a piorar depois desse ocorrido. Depois disso, ela começou a ficar o dia todo sentada numa cadeira de balanço, bordando uma toalha que não terminava nunca. Eu saía pra trabalhar preocupado em deixar a minha mulher só. Eu sentia medo de que ela sofresse uma crise de repente, e eu não estivesse em casa pra poder ajudar…
— E na Bíblia, você encontrou alguma resposta pra tudo isso que estava acontecendo? — perguntou Pedro, como se estivesse interessado em saber, mas, na verdade, acabara de fazer uma insinuação maldosa e desdenhosa, que Maldonha fingiu não se dar conta para não se aborrecer com Pedro.
— Encontrei conforto. Conforto foi o que consegui. Conforto e força pra superar tudo. A minha mãe, pobre coitada, morreu enquanto dormia. Dormindo, Pedro! Eu a amava mais do que tudo, mas nunca disse isso a ela, e só hoje vejo como isso me faz falta.
Pedro sentiu vergonha da insinuação que fizera e, se acreditasse em Deus, agradeceria a Ele o fato de Maldonha não ter se importado com tal ato vergonhoso.
— Você tem filhos? — perguntou Maldonha, mudando de assunto.
— Uma filha — respondeu, orgulhoso. — O nome dela é Lívia. No mês que vem, completará vinte anos. Ela é meu maior tesouro e por ela sou capaz de tudo.
— Você é tão novo e já com uma filha de vinte anos!
— Pois é! Estou com quarenta e dois, e minha filha já uma mulher.
Maldonha pegou o que restava de seu cigarro no cinzeiro, tragou e, sem soprar a fumaça, disse em tom de lamento:
— Eu não tenho filhos — soprou a nuvem de fumaça para o alto. — Você é um homem de sorte.
— Minha filha faz faculdade de Jornalismo — disse Pedro —, mas o sonho dela é ser escritora.
— E o que falta pra isso?
Pedro sorriu descontraído.
— Uma ideia. Ela lê muito, mas nunca consegue bolar uma trama.
— Um dia, quando ela acordar, Pedro, vai estar com uma história inteira, com começo, meio e fim na cabeça, e ela só terá que colocá-la no papel.
— Tomara! — disse Pedro, esperançoso. — Tomara!
— Como as coisas são estranhas! Veja só, aqui, onde moramos, quase todo mundo se conhece, e eu mal sabia o seu nome e que você tem uma filha que pretende ser escritora. Eu moro aqui há tanto tempo e não sei quase nada da vida dos meus vizinhos.
— Que vizinhos? — perguntou Pedro com ironia. — Na rua em que você mora só há quatro casas e só na sua mora alguém, e pelo que me consta isso há uns dez anos.
— Não falo desses vizinhos, e sim do pessoal que mora aos arredores, como você.
— Mas e os que moravam naquelas casas na rua em que você mora?
— Esses vizinhos tinham medo de mim — respondeu Maldonha, em meio a um sorriso forçado para disfarçar o incômodo que isso lhe causava. — Algumas vezes, enquanto eu estava no quintal da minha casa, fazendo qualquer coisa, eu escutava alguns vizinhos falarem de mim. Eles falavam, e eu ouvia tudo sem que eles percebessem. Uma vez, duas mulheres falavam de mim. Pelo que entendi, eu era o motivo pra todos os problemas que aconteciam na vida delas. Se o marido de uma delas chegava bêbado em casa, a culpa era minha; se o gato da outra havia sumido, também era minha culpa. Era como se eu fosse um agourento pra tudo de ruim que acontecia naquelas casas — o velho fez uma pausa e pegou uma fatia de salame. Ainda de boca cheia, continuou: — Isso aconteceu muitas vezes e… como você deve saber, o portão da minha casa é preto e quase todo fechado. Ao lado dele, há um muro alto… Um dia, eu estava encostado no muro do lado de dentro, e então elas falavam, e eu ouvia tudo, sem que elas percebessem. A vontade que eu tinha era de perguntar se elas não tinham o que fazer.
Pedro nem sequer imaginava como era a frente da casa de Maldonha, pois embora morasse ali havia anos, nunca havia estado lá. O máximo que fazia era passar em frente à rua sem saída e tudo o que sabia sobre o local era o que ouvia dos outros. Pensando nisso, bebeu o último gole de sua cerveja e pediu outra. Maldonha bebia devagar, e seu copo de vinho ainda estava pela metade, mas em relação a fumar, fazia-o sem parar. Pegou o maço no bolso da camisa e acendeu outro cigarro na guimba do anterior. Pedro fez uma expressão de inconformidade.
— Eu já ouvi dizer que você é dono de todas aquelas casas; que comprou todas.
Maldonha riu, e isso o fez engasgar-se com a fumaça que tragou. Começou a tossir até ficar vermelho como se todo o sangue do corpo tivesse subido para o rosto. Levantou-se e encostou-se ao balcão. Preocupado, Pedro também se levantou e se aproximou de Maldonha. Sabia que o cigarro matava, mas não daquela forma. Ao vê-lo tossindo, lembrou-se de que, poucos dias antes de entrar de férias, havia preparado o velório de uma senhora, mais ou menos da mesma idade que Maldonha. Ela havia morrido por ter se engasgado com um pouco de café. Naquele dia, ele ficou incrédulo, parecia algo impossível, inusitado; e se a velha fosse rica, teria pensado que ela pudesse ter sido assassinada por alguém que estivesse de olho no dinheiro dela, mas essa era uma tese ridícula, e achou que nem o pior detetive do mundo suporia tal coisa.
Elementar, meu caro Watson, ela não foi assassinada. Essa hipótese é ridícula. Elementar, meu caro
— Ele está bem? — perguntou o dono do bar, que acabara de se aproximar pelo lado de dentro do balcão.
— Eu… — Maldonha tentou falar e tossiu novamente —… eu estou… bem — continuou, voz embargada. — Só me engasguei, mas… mas estou… — tossiu outra vez —… estou melhor.
Ao ouvir isso, Pedro tornou a sentar-se. Maldonha também o fez e pegou o seu copo de vinho e bebeu o que restava em dois grandes goles. Depois pigarreou como que para limpar a garganta de algo que o estava incomodando.
— Desse jeito você me mata — disse Maldonha, num tom de voz fraco, embargado. — Onde você ouviu essa besteira?
— Que aquelas casas são suas?
Maldonha balançou a cabeça afirmativamente e olhou para o dono do bar.
— Enche o copo pra mim, por favor!
— O povo comenta por aí — respondeu Pedro.
— O povo deve comentar muita besteira… — Maldonha parou de falar e tossiu outra vez —… muita besteira de mim por aí. Eu já ouvi comentários que eu tenho mais de noventa anos.
— É — concordou Pedro —, isso é verdade, mas qual é afinal a sua idade?
— Eu não tenho mais de noventa. Sequer tenho noventa ainda, mas já estou bem próximo dos noventa. Estou com oitenta e três — o velho suspirou. — Voltando ao assunto, de onde eu iria arrancar dinheiro pra comprar aquelas três casas? Na minha rua a última casa em que morou alguém foi na que fica à direita da minha. Isso faz uns doze anos. Os meus vizinhos se incomodavam com tudo, e eu é que sou o maluco. Eu moro aqui há muitos anos, Pedro. Vi esse bairro crescer. Escolhi morar aqui pra ficar longe de tudo e de todos. Tentar ter paz ao lado da minha esposa.
Pedro ficou pensativo. O que Maldonha acabara de lhe dizer passou-lhe a impressão de que o velho estava querendo fugir de algo ao ir morar ali. Pensou em questioná-lo a respeito, mas preferiu manter a conversa no mesmo rumo.
— Eles se mudavam por que tinham medo de você, é isso?
— Vai saber… — respondeu o velho e, em seguida, pegou o copo de vinho. — Agora as casas estão lá, à espera de algum maluco que se atreva a ser meu vizinho. Aquelas casas estão precisando de uma boa reforma. Não sei se você já viu o estado em que estão. A que fica do outro lado, de frente pra minha, tem uma rachadura tão grande na parede que dá pra pôr a mão.
— E os donos? — perguntou Pedro e, em seguida, pôs na boca o último pedaço de salame.
— Eu é que sei?! De vez em quando aparece um pessoal lá e fica olhando as casas; comentam alguma coisa, que não me interessa, e vão embora. Devem estar esperando que eu morra pra resolverem fazer alguma coisa. Cambada de cretinos!
Por um instante, Pedro pensou que não era só ele que achava Maldonha estranho; outras pessoas também o achavam e, para piorar a situação, associavam acontecimentos ruins a ele. Não sabia se achava isso engraçado ou se sentia pena do velho, que pelo que havia contado, já sofrera bastante na vida.
Não, pensou Pedro e sentiu vergonha de si mesmo. Definitivamente não havia motivo algum para achar graça.
Ficaram ambos em silêncio. Parecia que o assunto já havia chegado ao seu limite. Pedro teve vontade de saber mais a respeito da mulher de Maldonha e o motivo para o velho ter ido morar nesse bairro; um motivo que não se resumisse em procurar paz ao lado da esposa, mas não queria ser inconveniente e guardou sua curiosidade consigo. Maldonha fumava, olhando para o copo de vinho como se estivesse recordando algo. Pedro daria tudo para ler os pensamentos do velho, que se mantinha em silêncio, saboreando cada tragada como se fosse a última. Tragava e olhava para a ponta do cigarro, depois batia o dedo indicador sobre ele para derrubar a cinza no cinzeiro. Pedro observava calado, bebendo longos goles de sua cerveja.
— Você quer mais salame? — perguntou a Maldonha, rompendo o silêncio.
— Não, não — respondeu o velho de modo rápido, olhando para Pedro.
Novamente ficaram em silêncio, mas Maldonha o rompeu em poucos segundos.
— Você é um cara legal, sabia?
— Obrigado, mas por que está dizendo isso?
— As outras pessoas me olham como se eu fosse uma aberração, ou sei lá o quê — acendeu outro cigarro, embora ainda nem tivesse fumado o anterior inteiro. — Lá no bar do John… aqueles caras que ficam com você, sabe? — Pedro fez que sim com a cabeça, enquanto Maldonha continuava: — Eles falam comigo, mas acham que eu sou uma piada. Aquele homem que estava com vocês no bar do Gringo e veio falar comigo…
— O Afonso — reforçou Pedro, sobrepondo sua voz à de Maldonha.
—… disse que vocês queriam a minha opinião sobre os sonhos. Na verdade, ele queria que eu fosse a distração de vocês. Eu só fui por motivos que não convêm dizer agora. — Pedro sorriu por achar que Maldonha falava coisas que pareciam não ter sentido. — E o John, ele sempre fica nervoso. Ele é o pior.
— Deve ser só impressão — Pedro tentou amenizar.
— Não, não é — retrucou Maldonha, convicto. — Eu posso ver nos olhos deles o deboche que têm por mim. Entre eles, você deve ser o único que não acredita em Deus…
De novo esse assunto?, pensou Pedro, receoso.
— Mesmo assim é o único que não é tolo. Não fica dizendo besteiras, usando o nome de Deus em vão, como muitos fazem. O pior não é pecar, Pedro. O pior é blasfemar contra o Espírito Santo. Quem o fizer será réu do eterno juízo.
— Eu não uso o nome de Deus em vão porque não creio n’Ele.
— Isso é apenas uma questão de fé. Pelo pouco que conheço você, acho que você não ficaria dizendo o nome de Deus em vão a cada dois segundos se acreditasse n’Ele.
— Não crer em Deus é essa blasfêmia de que você falou? — perguntou Pedro, sem ao menos se dar conta de que ficara preocupado.
Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta espalha. Essas são palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo — olhou para Pedro e pôs a mão esquerda no ombro dele. — Conheça a verdade, e ela vos libertará.
Pedro meneou a cabeça. Não sabia o que dizer; também não queria dizer nada que fosse contra o que acabara de ouvir. O melhor era consentir, mas não o fez para pôr um ponto final na conversa como sempre fazia quando alguém lhe dizia algo semelhante; dessa vez, algo dentro de si o fez consentir, como se essa fosse a atitude mais sensata a se tomar.
— Eu estou pensando em lhe contar algo — prosseguiu Maldonha —, mas não sei se vai querer ouvir.
— Por que acha que não? — ao dizer isso a Maldonha, Pedro fez um sinal com a mão para o dono do bar. — Me vê outra cerveja e mais uma porção de salame. E onde fica o banheiro?
— Logo ali — respondeu o dono do bar, apontando em direção ao fundo do estabelecimento. Em seguida, pegou a bandeja e pediu a Pedro que esperasse um instante, que era só o tempo de atender primeiro a um rapaz que pedira um maço de cigarros.
— O que tem a dizer? — perguntou Pedro a Maldonha. — Eu quero ouvir.
— É uma história trágica que aconteceu com um rapaz.
— Então conte! — Pedro mostrou-se interessado. — É só o tempo de eu ir ao banheiro. Quando eu voltar, você me conta.
Maldonha balançou a cabeça de modo afirmativo, e Pedro seguiu para o banheiro.

* * * 

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