Lívia caminhava pelo corredor da universidade indo em direção à sala de aula quando encontrou Roberto, que vinha em direção a ela. Ele deu-lhe um beijo no rosto e entregou-lhe um pequeno embrulho. Ela o recebeu.
— O que é isto? —
perguntou.
— O meu pedido de
desculpas — respondeu ele, em meio a um sorriso.
Duas colegas que estavam
com Lívia se afastaram, cochichando algo uma para a outra. Lívia nem sequer
reparou, entretida que estava abrindo o pacote.
— Obrigada! — agradeceu,
segurando uma caixinha de um aparelho celular. — Não precisava!
— Precisava, sim — disse
ele. — Na verdade, esse presente foi mais pra mim do que pra você. Agora quando
eu quiser falar com você vai ser bem mais fácil. E vê se não o deixa se afogar
na privada também.
— Sem graça! — disse ela,
dando-lhe uma leve tapa no braço.
— Sou mesmo? — ironizou.
— É sim! — ela sorriu
feliz. Aproximou-se dele e deu-lhe um beijo no rosto, sequenciado de um abraço.
— Agora vamos pra sala, a aula já vai começar. E vê se para de graça, ouviu?
Roberto sorriu.
— Tá bom, parei — disse
ele, rindo.
Em seguida, foram para a
sala um ao lado do outro. Lívia olhava o aparelho, admirada.
— Obrigada! — agradeceu outra
vez. — Obrigada mesmo!
Mais tarde, quando chegou
a casa, Lívia estava louca para mostrar ao pai o presente que havia ganhado,
mas Pedro foi deitar-se antes que ela chegasse, pensando ainda nos fragmentos
do sonho que tivera. Pensava também nas coisas que Maldonha lhe disse sobre
Deus. Antes, quando uma pessoa queria fazê-lo acreditar em Deus, era diferente;
queriam que acreditasse porque era assim que havia de ser: um Ser que impõe aos
Homens o que é certo e o que é errado para depois julgá-los. “Você tem que
acreditar”, sua mãe sempre lhe dizia, e era semelhante quando algum religioso
parava-o na rua para explicar-lhe contextos bíblicos; isso o fazia quase sempre
perder a paciência. Não queria crer em um Deus por ter medo de ser castigado por Ele,
pois não via fundamento nisso. Com Maldonha era diferente, pois parecia que o
velho sabia expor sua opinião sem impô-la, o que era mais importante.
Você deveria acreditar, pensou e comparava essa frase à que sempre estava
acostumado a ouvir: “Você tem que acreditar”. E deixava essa ideia vaguear na
mente, ao mesmo tempo que tentava, sem êxito, lembrar-se de mais alguma cena do
sonho. Chegou a se achar ridículo, mas era mais forte que ele, era quase
incontrolável, e isso o deixava com raiva de si mesmo.
Tentou manter-se acordado
até a filha voltar, mas não conseguiu. Quando começou a adormecer, os
pensamentos pareciam assobiar-lhe na mente uma melodia monótona, cheia de
trechos desafinados. Foi um sono ininterrupto e sem sonhos.
Na manhã seguinte, após o
café, ainda na cozinha, Lívia mostrou ao pai o celular que ganhou de Roberto.
— O que esse rapaz está
pretendendo? — perguntou Pedro, em tom de brincadeira. — Quais as intenções
dele com a minha princesa?
Lívia ficou encabulada.
— Ai, pai! Ele é só meu
amigo!
— Sei, só amigo? —
ironizou Pedro, fingindo seriedade, mas mantendo um tom de brincadeira na voz.
Lívia abraçou o pai e
deu-lhe um beijo estalado no rosto.
— Está com ciúme?
— Eu, ciúme?
Ambos riram e seguiram
para a sala. Pedro ligou a tevê e sentou-se; Lívia sentou-se ao lado dele enquanto
ligava para desbloquear o aparelho celular.
— Pelo menos vou
economizar um pouco — brincou Pedro. — E cuidado pra não deixar esse também cair
na privada — continuou ele, em tom de gozação, e riu da cara de reprovação que
a filha fez com o gracejo dele.
— Cheio de graça, né? —
retrucou ela, fazendo uma careta sutil. — Até você vai me zoar agora?
Balançando a cabeça, Pedro
sorriu e levantou-se.
— Vou dar um pulinho na
minha marcenaria — disse ele, desligando a tevê.
— Você tem encomenda pra
fazer?
— Não — respondeu ele, já
próximo à porta de saída. — Há tanto tempo que não faço nada lá, então vou
aproveitar as férias pra não perder a prática.
— E vai fazer o quê? Já
sabe? — perguntou ela, com o aparelho celular ao ouvido, esperando ser
atendida.
— Um rack novo pra sala, o que acha?
— Legal! Mas esse ainda
está novo.
— Eu sei, mas vou tentar
fazer um que vi numa revista. Vou lá, ouviu?
— Tá bom, pai. Qualquer
coisa me chama.
Pedro saiu. A marcenaria
ficava no quintal de sua casa, num quartinho ao lado da garagem. Durante o
trabalho, tentava concentrar-se ao máximo, mas estava inquieto; precisava
conversar com alguém sobre Maldonha e o que ele lhe havia contado.
Na hora do almoço, Lívia
reparou que o pai estava estranho, como se quisesse dizer algo, mas não sabia
como. Também falar sobre algo que a filha sabia que ele não gostava era um
tanto paradoxal. Portanto, Pedro não sabia se deveria dar início à conversa.
— Lívia — ele resolveu
manifestar-se, enquanto arrumava os talheres no canto do prato —, eu nunca lhe
perguntei o que você acha de Deus… Nunca conversamos sobre isso e…
— Por que está falando
disso? — interrompeu Lívia, admirada. — Ontem você falou de um sonho; hoje… de
Deus. O que está acontecendo com você?
Lívia agiu exatamente
como Pedro imaginou que ela agiria. Isso o fez ficar em silêncio por alguns
instantes, pensando se deveria insistir na conversa. Lívia aguardava uma
resposta. O interesse súbito do pai por assuntos que não lhe agradavam deixou-a
curiosa. Por um instante, lembrou-se de quando era pequena, e a mãe a matriculou
no catecismo. No começo, o pai foi contra, alegava que a filha é quem deveria
escolher no que deveria acreditar e não ser induzida a crer. Lívia lembrou-se
vagamente de que naquele dia os pais haviam discutido por sua causa e, de certa
forma, achou que a culpa era de Deus. Era por causa de Deus que eles estavam
discutindo, ela pensava. A partir daí, recusou-se a ir ao catecismo, mas a mãe
obrigou-a a ir, mesmo contra a vontade de Pedro. Demorou um bom tempo até Lívia
aceitar o fato de estar todos os sábados pela manhã na igreja, mas o tempo a
fez gostar disso, principalmente quando começou a ter conhecimento da vida de
Jesus Cristo. Na época, ela estava com oito anos e, talvez, por uma
coincidência irônica, quando tinha dúvida sobre algo que a catequista ensinava,
não era a mãe que procurava, era o pai, e Pedro explicava tudo com indulgência
de pai, mas apenas sobre o que sabia. Quando não sabia a resposta para as
perguntas da filha, pedia a ela que anotasse a dúvida e perguntasse à catequista,
e era isso que ela fazia.
— Hein, pai? — insistiu
Lívia, ao perceber que o pai parecia não querer continuar o assunto. — Por que você
está com esses papos agora? A última vez que vi você falar sobre Deus, eu ainda
era criança, e só falava d’Ele quando eu lhe perguntava alguma coisa das aulas
de catecismo.
Pedro engoliu em seco.
— Eu não sei o que está
acontecendo. É estranho… Eu… eu sinto que tenho que falar sobre isso com
alguém, mas não sei por quê. Tudo começou quando o Maldonha contou uma história
esquisita pra nós, lá no Texas.
— Que história? — Lívia
mostrou-se interessada.
— Você quer mesmo saber?
— Claro que quero! E por
que não…?
— É uma história sem pé
nem cabeça. É a história de um rapaz que vivia dizendo que não tinha medo do
Diabo, que com o Diabo dançaria uma valsa…
— Ai credo! Que coisa
mórbida!
—… e disse tanto isso,
que no dia do casamento dele, sua noiva disse que seria uma honra dançar uma
valsa com ele, pois durante muito tempo ele lhe havia oferecido essa dança.
— Como assim?! — Lívia
estava chocada. — A noiva dele era… era o Diabo?
Pedro hesitou por um
instante, mexendo a comida com os talheres.
— Eu não sei, mas pelo
que Maldonha disse, deu a entender que sim. Eu não sei por que, mas essa
história ficou na minha cabeça.
— Quando ele contou?
— Sexta-feira passada.
— É só uma história, pai.
— O mais engraçado é que
ele contou como se tivesse acontecido, ou até mesmo presenciado tudo… Se todos
acham que ele é esquisito, estranho, é porque não o viram contar essa história.
Ele parecia… parecia um… — Pedro tentava achar um termo para classificar
Maldonha. — Eu não sei explicar. Você precisava ver.
Lívia bebeu um gole de
refrigerante. A comida estava no prato, intocada. O interesse pelo que o pai
dizia parecia ter muito mais sabor que o arroz feito no forno que ela havia
preparado.
— Eu imagino — disse ela
—, se já é estranho olhar pra ele quando ele está quieto, imagine contando essa
história!
— Você sabe, não é,
Lívia, que eu não acredito nessas coisas…
— Sim, sei.
—… e que Deus e o Diabo,
pra mim, não existem, mas eu estou sentindo algo estranho em relação a isso. Eu
não sei se foi por causa da história que o Maldonha contou ou… Olhe, eu sempre
gostei das histórias bíblicas, mas, em minha opinião, a maioria delas não passa
de história. Jesus, o filho de Deus, concebido por uma virgem — disse a última
frase em tom sarcástico, olhos arregalados e testa franzida. — Eu não sei, mas
essa virgem pode ter cometido adultério e como adultério era um pecado mortal,
ela inventou essa história, e Jesus cresceu com isso na cabeça e já viu…
— Ai, pai — Lívia estava
incrédula —, como você distorce as Escrituras Sagradas!
— Lívia, eu já li muita
coisa da Bíblia. Há muita coisa interessante, mas foi escrita por homens e
traduzida por outros homens… e outros, e quem é que sabe quantas vírgulas não
foram esquecidas ou acrescentadas sem querer ou… ou o que é pior: de propósito?
— Mas foram escritas por
homens escolhidos por Deus — alertou Lívia, tentando impor sua fé.
— E foram encontradas muitos
anos depois por homens que não eram escolhidos por esse tal Deus, e traduzidas
por outros que, talvez, nem acreditassem nesse Deus, e muitas passagens dela
devem ter sido mudadas por interesse político dos homens… — à medida que
falava, Pedro aumentava o tom de voz. — E quanto à canonização dessas
escrituras?… E as cópias das cópias das cópias? E os apócrifos?! Será que não
foram escritos por esses homens de Deus?!
— Pai, o que deu em você?
— Lívia estava assustada.
Pedro passou as mãos no
rosto; depois as uniu com os dedos cruzados, apoiou os cotovelos sobre a mesa e
descansou a cabeça nos punhos. Parou de falar por um instante e passou a
refletir; percebeu que estava discutindo com a filha, e por causa de um assunto
de que não gostava.
Isso é um absurdo, pensou ele ao levantar-se.
— Lívia, desculpe —
disse, voz embargada. — Me desculpe!
— Você não vai comer?
Pedro encostou a cadeira
contra a mesa.
— Estou sem fome — disse,
sem olhar para a filha. — Desculpe!
Lívia nada mais disse.
Pedro voltou à marcenaria, mas sabia que seria difícil se concentrar no
trabalho. Não havia imaginado que quando abrisse a boca para falar com a filha,
a conversa chegaria a esse ponto. Nem sequer pensou que falaria com ela daquela
forma para defender os seus conceitos ateus. Em momento algum lhe passou pela
cabeça a cena decorrida. Arrependeu-se, portanto, de ter iniciado a conversa.
Voltou ao trabalho
tentando esquecer tudo o que aconteceu no almoço. Pensou que não conseguiria
trabalhar, mas estava enganado; embora a cabeça estivesse repleta do ocorrido e
de qualquer coisa que não sabia bem o que era, seu trabalho evoluiu
satisfatoriamente.
Por volta das três e meia
da tarde, Lívia preparou um lanche, encheu um copo com refrigerante e levou-os
para o pai. Achou que ele pudesse estar com fome, e estava certa. Pedro parou o
serviço para comer o misto quente feito pela filha, que se sentou em um banco
próximo à porta.
Quando terminou de comer,
ele agradeceu a gentileza da filha. Estava ainda envergonhado, mas sabia que
isso era passageiro.
— Você está mais calmo? —
perguntou ela, recebendo a bandeja e o copo de refrigerante vazios.
— É melhor a gente
esquecer isso — pediu ele. — Eu nunca gostei de conversar sobre essas coisas
com outras pessoas porque sempre soube que acabam da maneira que acabou entre
nós…
— Pai, não é sempre
assim…
— Olhe, Lívia —
interrompeu-a —, eu nunca desrespeitei a crença de ninguém, mas hoje acho que
exagerei — fez uma pausa, deu as costas e pegou um lápis sobre um banco. — Eu
queria esquecer isso tudo. Não sei o que me deu de ter inventado aquela
conversa.
Lívia concordou,
balançando a cabeça. Sabia que de nada adiantaria insistir.
— Tudo bem, pai! Se você
prefere assim…
Olhando para a filha,
Pedro meneou a cabeça de modo afirmativo.
Ficaram em silêncio por
um instante. Ela estava de pé, junto à porta; segurava a bandeja com uma mão e
o copo com a outra. Ele riscava uma tábua que estava sobre a mesa. Fazia isso e
ficava um tempo olhando o que fizera.
— Como está indo o novo rack? — perguntou ela.
— Mais ou menos.
— O que há de errado?
— Eu estou esperando
chegar o material que comprei… — disse, referindo-se ao material que havia
encomendado por telefone no dia anterior. — Era pra ter chegado pela manhã e
até agora… nada.
Lívia disse qualquer
coisa concordando com o pai e voltou para dentro de casa.
Minutos depois, o
material de que Pedro falara, chegou. Eram algumas madeiras que ele mesmo ajudou
a descarregar da caminhonete.
À noite, Lívia foi à
faculdade. Pedro se ofereceu para levá-la, mas ela recusou. Ele ainda pensava no
ocorrido na hora do almoço, porém tentava ignorar a lembrança, e o fazia de tal
maneira que ela parecia ter ocorrido havia muito tempo. Nesse momento, estava sentado
no sofá, olhando um álbum de fotografias antigas que pegou de dentro do rack. Sentiu-se triste ao olhar as fotos
de seu casamento. Achou que estava sendo acometido daquilo que chamam
nostalgia. Por um momento, analisou a vida que estava levando depois do
divórcio e a comparou à que levava antes quando chegava a casa e a esposa o
esperava para o jantar. Eram duas vidas distintas, separadas por três anos e
meio e um prato a menos na mesa. Sentiu-se por um instante um estrangeiro em um
país distante, sem saber falar o idioma local, mas, ao lembrar-se de que a
filha era o maior bem que tinha na vida, sentiu-se novamente em casa. E por tê-la ao seu
lado, agradeceria a Deus, se acreditasse n’Ele. Em seguida, depois de olhar a
última fotografia, fechou o álbum sobre o colo e ficou pensativo, reflexivo. A
seguir, levantou-se e guardou-o no local de antes.
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