A claridade do dia entrava pelas frestas da janela do quarto de Pedro
profetizava um belo e ensolarado domingo. Eram dez horas quando ele abriu os
olhos parcialmente, pois a claridade o incomodava. Havia tempos, não dormia
tanto. Sentou-se na cama e levantou-se.
Minutos depois, já na
dependência inferior da casa, procurou por Lívia e a encontrou na cozinha,
lavando louça.
— Bom-dia, filha.
— Oi, pai — secundou ela,
olhando para trás, com um copo todo ensaboado nas mãos.
— Eu vou pra marcenaria
terminar de uma vez aquele rack —
avisou ele, parado sob a soleira da porta, entre a sala e a cozinha.
— Toma café primeiro.
— É, vou tomar.
Pedro sentou-se à mesa
para se servir.
— Você consegue terminar
hoje?
— Só falta montar. Talvez
eu o monte aqui dentro pra não ter que carregar depois.
— Eu nem vou estar aqui
pra poder ajudar você — lamentou-se ela.
Pedro nem lembrava que a
filha iria sair. Por um instante, ficou pensativo, mas logo lembrou. Não estava
tão bêbado na noite anterior a ponto de esquecer o que a filha lhe disse.
— Que horas você…?
— Às quatro horas —
respondeu ela, antes que o pai terminasse a pergunta. — A gente combinou às
quatro.
— Eu posso fazer uma
pergunta?
Lívia fechou a torneira e
pegou um pano sobre a mesa para secar as mãos.
— Pode, ué?!
— Em que esse rapaz
trabalha?
Lívia sorriu, pois
percebeu que o pai estava preocupado com ela. Soltou o pano na mesa e
aproximou-se dele.
— Ele trabalha com o pai,
vendendo planos de saúde. Não precisa ficar preocupado, pai, eu já estou
vacinada. Ao menor sinal de perigo, o meu radar irá me avisar — disse, em tom
de brincadeira, enquanto fazia sobre a cabeça duas antenas com os dedos
indicadores. — Os meus movimentos são friamente calculados.
Pedro sorriu e consentiu,
enquanto observava a filha caminhar para a sala, balançando os dedos sobre a
cabeça.
— Eu vou lá pra
marcenaria — disse ele, levantando-se. — Lá está uma bagunça. Vou dar uma geral
lá e trazer as peças do rack aqui pra
sala.
— Quer que eu ajude?
— Pode deixar, filha, eu
me viro.
Pedro desceu para a
marcenaria. Demorou quase duas horas para organizar tudo. Depois começou a
levar as peças do móvel para a sala. Quando pôs no chão a última peça do rack, o almoço já estava quase pronto.
Mais tarde, após o
almoço, enquanto o pai descansava atirado no sofá, Lívia foi se arrumar para o
encontro com Roberto. Ficaram de se encontrar de frente à universidade, de onde
iriam de carro para o shopping. Ainda
nem havia nem escolhido a roupa que usaria. Passou tanto tempo escolhendo e
outro tanto no banho que começou a se julgar atrasada. Realmente estava, mas
não havia importância, pois um pouco de atraso seria bom. Quando estava pronta,
pegou a bolsa e desceu. Ao chegar à sala, Pedro, que acabara de voltar a montar
o rack, pôde sentir o cheiro da
colônia que ela usava. Ele estava abaixado e, ao erguer a cabeça, deparou-se
com uma bela moça diante de seus olhos. A filha estava estonteante. Por um
instante, ele lembrou-se de quando conheceu Ângela, mas procurou afastar o
pensamento e a comparação.
— Rapaz de sorte! —
exclamou, encantado com a beleza da filha.
Lívia aproximou-se dele,
desviando-se das madeiras e ferramentas que estavam no caminho; abaixou e
beijou-lhe o rosto.
— Eu vou indo, tá?
— Divirta-se! E juízo!
— Pode deixar!
— Você precisa de
dinheiro? — perguntou, quando Lívia já abria a porta da sala.
— Não, não — respondeu
ela, depois beijou a ponta dos próprios dedos e acenou, dizendo: — Beijo.
— Beijo, filha. Se cuida
— finalizou ele, olhando para ela.
Lívia andou rápido até o
ponto de ônibus e, assim que chegou, passou uma van. Minutos depois, chegou ao local que havia combinado com um
pouco de atraso. Roberto já havia dado duas voltas no quarteirão enquanto a
esperava.
— Demorei? — perguntou
ela, ao abaixar-se para olhar para dentro do carro.
— Não — respondeu ele,
mas, na verdade, achou que ela havia demorado, sim. — Entre!
Lívia deu a volta, e
Roberto se esticou para abrir a porta do outro lado. Ela entrou.
— Você está bonita… Quero
dizer… está mais bonita ainda.
— Obrigada — agradeceu
ela, em meio a um sorriso tímido, sentindo o sangue corar-lhe a face.
Roberto percebeu que ela
ficou envergonhada e retribuiu o sorriso, enquanto dava partida no carro. Quando
a convidou para sair, não havia imaginado um lugar legal para o qual pudesse
levá-la. Já ela, depois de ter aceitado o convite, quis ser prática e optou
pelo programa mais tradicional possível: assistir a um filme no cinema. Não era
o que poderiam chamar de encontro inesquecível, futuramente, mas um cinema foi
uma boa escolha para o primeiro encontro.
* * *
Em casa Pedro apertava os
últimos parafusos de seu novo rack.
Estava quase pronto e era bem maior do que o outro que seria substituído.
Quando os últimos parafusos foram apertados, ele fez um esforço e pôs o móvel
de pé; depois se afastou um pouco.
— Pronto! — exclamou,
satisfeito, olhando para o rack.
Era um belo rack, com um lugar reservado para cada
aparelho eletrônico.
Pedro aprendeu a
profissão de marceneiro com o pai. Aos doze anos, já o ajudava em sua
marcenaria e foi tomando gosto pela arte. O pai dizia-lhe que ele levava muito
jeito, e Pedro se orgulhava de si. Enquanto olhava para o seu mais recente
trabalho, o rack, lembrou-se do
primeiro objeto que havia feito sem a ajuda do pai. Foi uma cadeira que deu de
presente para a mãe. Na época, ele estava com apenas treze anos, mesmo assim a
cadeira ficou tão bem feita, que a mãe ainda a guardava. Ele trabalhou com o
pai durante alguns anos, mas o trabalho em dupla foi interrompido por um
enfarte que o Sr. Antônio sofreu, levando-o ao falecimento. Pedro ficou
arrasado, pois semanas antes havia discutido com ele. Lembrava-se vagamente
como haviam iniciado a discussão. Recordava-se apenas de que a briga estar
relacionada à religião e à morte de seu irmão, que faleceu antes de completar
sete anos, quando Pedro ainda estava com cinco. Depois da briga, ele ficou sem
falar direito com o pai por vários dias. Falavam apenas o necessário: “Me passa
a lixa… a serra… ou a chave de fenda…”. E foi assim durante dias. Quando o assunto
entre os dois foi voltando, Pedro comentou algo de Ângela, uma moça que havia
conhecido. Na época, ele nem sequer imaginava que ela seria sua esposa,
dar-lhe-ia uma linda filha e, que depois disso tudo, ainda haveria um divórcio.
O jovem Pedro estava ansioso para apresentá-la ao pai, mas a fatalidade impediu
que o Sr. Antônio conhecesse a futura nora; ele faleceu antes, e Pedro se
lamentou durante muito tempo por não tê-la apresentado logo.
Quem foi que quis que as
coisas fossem dessa forma? Quem? Deus? O maldito destino? Foram essas perguntas
que Pedro se fez durante muito tempo, mas ele sabia a resposta para cada uma
delas, ou pelo menos julgava saber. O destino não existia, tampouco Deus;
contudo, não foi nenhum deles que levou o seu pai. Isso reforçou ainda mais a
opinião dele sobre Deus, pois se de fato Deus existisse, não faria isso com
ele, a menos que quisesse castigá-lo por não crer em Sua existência… Não! Não! Não podia ser, pensava Pedro,
pois se esse Ser Supremo fosse real, seria um Ser bom e não o castigaria de tal
forma, ainda mais tirando a vida de outra pessoa que não tinha nada a ver com a
sua incredulidade, e que tinha tanta fé n’Ele, como era o caso de seu pai.
Dessa forma, dizer como Pedro se sentiu na cerimônia fúnebre, quando começaram
a orar o Pai-Nosso, torna-se algo irrelevante: uma conclusão a partir de
premissas preestabelecidas.
Com a morte do Sr.
Antônio, Pedro ficou um bom tempo sem trabalhar na marcenaria; não era uma
desistência da profissão, apenas tentava se afastar do lugar no qual passou boa
parte do tempo ao lado do pai. Não conseguia martelar um único prego sem ouvir
a voz dele tentando explicar-lhe algo; por esse motivo, evitava ficar muito
tempo nesse local. Não conseguia entender por que tentava se esconder daquela
forma do sentimento presente de tristeza, por causa da ausência do pai. Era
mais forte do que ele; era algo novo e, de forma inconsciente, o seu primeiro
impulso foi afastar-se do local no qual havia encontrado o pai caído no chão,
entre a vida e a morte, sussurrando algo que Pedro não conseguiu entender e que
até o momento se perguntava o que poderia ser. Tal cena atormentou-o por longa
data, pois muito tempo depois, ele ainda sonhava com a cena do pai caído no
chão, balbuciando-lhe algo ininteligível. Tentar tirar aquela imagem da cabeça,
fugindo do local onde tudo aconteceu, deu-lhe por algum tempo o duvidoso
privilégio de não encarar a realidade, mas ele não sabia de nada disso e, aos
poucos, voltou a trabalhar. Nos primeiros dias de trabalho, não aguentava ficar
na marcenaria por duas horas seguidas, abandonava o local e trancava-se no
quarto para chorar escondido da mãe, para não entristecê-la.
Tempos depois, quando a
tristeza já se havia transformado em saudade, ele voltou a trabalhar
normalmente e até arrumou um ajudante. Tempos depois, casou-se com Ângela, que,
com a exceção de sua mãe, foi o seu porto-seguro para que não enlouquecesse de
vez. Moravam ele, a mulher e a mãe na mesma casa, mas isso foi por pouco tempo,
pois na época ele arrumou um emprego de cobrador numa empresa de ônibus no
período diurno, e, à tarde, trabalhava na marcenaria com o seu ajudante. Deu
duro até conseguir construir uma casa em um terreno que era de seu pai e, aos
poucos, trabalhando arduamente, transformou a pequena e singela casa no sobrado
no qual ainda morava. Quando se mudou para o novo endereço, Lívia ainda não
tinha um ano.
Continuou a trabalhar
como cobrador por muito tempo, mas não largou a marcenaria de lado. Dispensou o
ajudante e passou a pegar pequenos serviços, por mero prazer, pois achava que o
pai não lhe havia ensinado apenas uma profissão, era mais do que isso, era um hobby. Quando a filha estava maior e já
frequentava a escola, Ângela começou a trabalhar. Foi na mesma época em que a
situação financeira de Pedro estava estabilizada e, em virtude disso, ele
resolveu sair da empresa de ônibus e voltar a trabalhar somente como
marceneiro. Três anos antes do divórcio, arrumou um emprego de agente
funerário, e a marcenaria voltou a ser apenas um hobby.
Foi em meio a essas
lembranças saudosas do pai e o começo de sua vida conjugal com Ângela que Pedro
começou a retirar os objetos e os aparelhos eletrônicos do antigo rack. Da parte interna do móvel, retirou
revistas velhas, algumas sobre marcenaria, outras nem sabia por que ainda as
guardava. Dentre elas muito material sobre tanatopraxia. Havia também muitos álbuns de fotografia, mas não quis perder tempo, por enquanto,
olhando fotos. Colocou tudo sobre o sofá. Ao lado da pilha de revistas, havia
uma Bíblia de tamanho grande. Pegou-a. Segurou-a diante do rosto, na altura da
boca, e soprou a fina camada de poeira que estava na capa, transformando-a em nuvem. Em seguida,
abriu-a, passou rapidamente os olhos e viu que estava no Novo Testamento, em
João, capítulo três, mas não foi algo intencional; abriu-a por abrir, sem visar
a nenhum capítulo específico. Em seguida, fechou-a, batendo as duas partes uma
contra a outra, em um barulho abafado, sem se dar ao menos o trabalho de ler
aquela passagem.
Após desocupar o rack, arrastou-o para o lado para poder
substituí-lo pelo novo. Foi à área de serviço e pegou material para poder
limpar o chão onde estava o móvel. Em instantes, limpou o local, esfregava com
força o pano sob o rodo no piso bege-claro.
Enquanto esperava o chão
secar, foi à cozinha e pegou uma lata de cerveja na geladeira. Bebeu dois
grandes goles e, no caminho de volta para a sala, sentiu a fermentação subir
pela garganta, na forma de um arroto. Soltou-o sem hesitar, pensando na bronca
que Lívia lhe daria se estivesse ali para ouvi-lo fazer aquilo, mas ela não
estava, então aproveitou e soltou outro, tão grande e nojento quanto o
primeiro. Bebeu mais um gole e colocou a lata sobre o rack antigo.
Colocou o móvel novo na
posição e, antes de arrumar tudo no lugar, lustrou-o. Enquanto fazia aqueles
movimentos giratórios para lustrar, o filme Karatê
Kid veio-lhe à memória. Pensou de forma satírica que, ao cabo daquele
serviço, seria o melhor lutador de artes marciais do bairro.
Estou fazendo direito, senhor Miyagi?
Estou fazendo direito, senhor Miyagi?
E ria em meio ao
pensamento.
Minutos depois, tudo estava
no lugar. Atrapalhou-se um pouco com os cabos dos parelhos eletrônicos e
ligou-os sem ter certeza de que estavam no lugar certo.
— Pronto! Espero que
funcione! — disse a si mesmo, mas não se atreveu a ligar para saber.
Em seguida, tirou o pó
das revistas com o mesmo pano que lustrou o rack.
Separou as que jogaria fora e levou-as para a área de serviço junto com o
material de limpeza que havia usado. Limpou também todos os álbuns de
fotografia e deixou-os sobre o sofá para poder olhar mais tarde. Havia perdido
a noção do tempo. Nem sequer reparou que mais de três horas se haviam passado. Cansado,
foi tomar banho. Pensava na filha quando ligou o chuveiro.
Lívia estava se
divertindo. Assistira a um filme cômico, rira bastante e agora estava na praça
de alimentação. Não havia nada com que Pedro pudesse se preocupar. Quando
terminou o banho, ele lembrou-se do jogo que passaria à tarde na tevê, mas
esquecera, e àquela hora já havia acabado. Lamentando esse fato, foi à
geladeira e pegou outra lata de cerveja.
Acabou de tomar banho e vai abrir a geladeira, não é, Sr.
Pedro?, pensou ele,
e era o que sua filha diria se estivesse ali para vê-lo fazer isso.
Faltavam poucos minutos
para as sete da noite, começava a escurecer quando ele desceu os três degraus,
que separavam a porta de entrada da casa do quintal, e ficou na calçada de frente
ao portão, tomando cerveja.
De gole em gole, esvaziou
a lata da bebida. Estava pensando em ir ao Texas, mas achou melhor não, pois
poderia estar novamente fechado como na noite anterior. Ainda se perguntava por
que John não abrira o bar, pois isso nunca havia acontecido, mas achou melhor,
por enquanto, deixar essa curiosidade de lado e voltou para dentro de casa.
Quando passou pela sala, lembrou-se dos álbuns de fotografia que estavam sobre
o sofá. Foi à cozinha, pegou outra cerveja e voltou. Empurrou com uma das mãos
os álbuns para o canto do sofá, incluindo a Bíblia, que se esquecera de
guardar, e sentou-se. Colocou a cerveja no chão, junto ao pé, e pegou qualquer
um dos álbuns e começou a olhá-lo. Era o álbum da primeira comunhão de Lívia,
que estava com onze anos na época. As fotos estavam bem conservadas, embora
tivessem sido tiradas havia alguns anos. Pedro lembrava-se muito bem do esforço
que fizera para não decepcionar a filha. Na época, chegou a pensar em não ir à
cerimônia, mas não disse isso a ninguém. Fez o possível para agradar à Lívia:
vestiu uma bela roupa, fez cara de paisagem, sorria com o canto da boca, sempre
que possível, ou quando alguém lhe dizia que Deus era grande…
Do tamanho do meu saco, pra aturar essa babaquice…
… e poderoso…
… e blábláblá e blábláblá, Amém.
O tempo que passou na
igreja foi o suficiente para achá-lo semelhante a uma vida inteira, mas acabou,
e a pequena Lívia ficou feliz por ter a presença do pai. O que ele não fazia
para deixá-la feliz?
Continuou a olhar as
fotografias. Estava olhando a que Lívia recebia a hóstia. Ela estava com um
vestido branco e um arco na cabeça, que a mãe colocou, e era tão grande, que
mais parecia uma coroa em vez de um simples enfeite para os cabelos. Ela era a
única menina que estava usando um adorno daquele tipo, mas isso não a
incomodou; estava muito feliz para se prender a mero detalhe.
Pedro bebeu outro gole de
cerveja e arrotou em seguida; depois colocou a lata no chão, pegou outro álbum
e começou a olhá-lo. Era o da festa de quinze anos de Lívia. Olhou esse e todos
os outros de modo saudoso, o que foi suficiente para beber outra cerveja. Certa
hora, em vez de um álbum, pegou a Bíblia, mas não a abriu, colocou-a de lado,
junto dos álbuns que já havia olhado.
Depois da excursão em
meio às fotografias, guardou todos os álbuns, incluindo a Bíblia que ele fazia
questão de fingir não ver, mas o fato é que ela estava ali, como se implorasse
para ser aberta e lida. Guardou-a junto dos álbuns, dentro do rack, e foi para a cozinha esquentar a
macarronada que sobrou do almoço, pois estava com fome.
* * *
Quando eram pouco mais de
dez horas, Roberto encostou o carro na frente da casa de Lívia.
— Agora você sabe onde me
escondo — brincou ela.
Roberto sorriu.
— Bem — disse —, está
entregue!
Lívia
abriu a porta do carro, desceu e deu a volta pela frente até o lado do
motorista. Roberto abaixou o vidro.
— Obrigada, eu me diverti
bastante — agradeceu ela, apoiando-se sobre a base do vidro, que estava
abaixado.
— Eu também — disse o
rapaz, em tom recíproco, mas pensava que poderia ter acontecido algo mais, um
beijo talvez, mas Lívia manteve-se na retaguarda o tempo todo, e ele não quis
avançar o sinal.
— Você quer entrar? —
perguntou ela, apenas por gentileza, mas esperava que ele recusasse o convite,
pois ainda não queria apresentá-lo ao pai, pelo menos não nessa ocasião.
— Está um pouco tarde —
Roberto meneou a cabeça, comportando-se como ela esperava que se comportasse. —
Vamos deixar pra outra oportunidade.
Ficaram olhando-se por
alguns instantes em silêncio, como se esperassem algo mais um do outro.
— Tá bom — rompeu o
silêncio Lívia —, eu vou entrar, então.
Dito isso, ela abaixou-se
para dar um beijo nele e, ao imaginar, de acordo com as circunstâncias do
programa que fizeram, que seria no rosto, ele virou a cabeça um pouco para o
lado, mas com a mão esquerda Lívia virou-lhe a face e, quando estavam um de
frente para outro, encostou os lábios suavemente nos dele.
— Tchau — disse ela em
seguida e afastou-se um pouco do carro.
Roberto comprimiu os
lábios. Lívia o pegara de surpresa. Em seguida, sentindo o coração bater um
pouco mais rápido, ele murmurou um tchau e deu à ré, pensando que aquele
simples beijo fora melhor do que qualquer outra coisa que pudesse ter
acontecido entre os dois nessa noite. Ela ficou observando o carro afastar-se
e, quando não pôde mais avistá-lo, entrou.
Pedro estava assistindo à
tevê, quando ouviu a filha mexer no trinco da porta. A primeira atitude dela após
entrar e acender a luz foi olhar para o rack.
O pai havia arrumado tudo.
— Oi, pai.
— Oi, meu bem.
Lívia aproximou-se do rack.
— Deu trabalho? —
perguntou depois de toda a inspeção no móvel.
— Um pouco — respondeu
ele. — Também, quanto tempo eu não fazia alguma coisa?
— O que você vai fazer
com aquele outro rack? — perguntou
ela, olhando para o móvel desocupado.
— Eu não sei ainda. Por
quê?
Lívia sentou-se ao lado
do pai.
— Eu acho que vou
trocá-lo pelo que está no meu quarto. O que está lá está mais velho que esse.
— Você é quem sabe. Só
que vamos deixar isso pra amanhã. Hoje eu não aguento mais mexer em nada.
— Tudo bem! Eu não estava
pensando em fazer isso hoje.
— Ah! Antes que eu me
esqueça, amanhã cedo vou ao banco — Pedro lembrou-se de avisar à filha. — Vou
tirar dinheiro. Eu deveria ter ido hoje, mas acabou ficando tarde.
— Acabou o dinheiro que você
tirou naquele dia?
— Eu precisei comprar
madeira e umas peças pra fazer esse rack…
Eu ainda tenho dinheiro, mas…
— É, mas o rack está aí — Lívia apontou para o
móvel —, todo bonito. Realmente, ficou muito bonito.
— Apesar de ter ficado um
bom tempo sem trabalhar na marcenaria, eu acho que não perdi a velha forma —
Pedro estava orgulhoso de si e aproveitou o elogio da filha para demonstrar
isso.
— É mesmo, de fato não
perdeu — concordou ela, olhando para o rack.
Ficaram em silêncio por
alguns instantes, olhando para o novo móvel.
— Como foi o seu passeio?
— era a pergunta que estava congelada nos lábios de Pedro desde que a filha chegou.
Lívia suspirou, e Pedro
sabia bem o que isso significava. Depois contou a ele como havia sido o seu
dia. Falou sobre o filme que viu e tudo mais. Pedro ouvia cada detalhe com
certo ciúme de pai, mas não dizia nada que demonstrasse isso. O único fato não
mencionado por ela foi o beijo de despedida; não se sentia muito confortável
para comentar isso com o pai.
Depois de ter contado
todo o seu passeio, ela disse que ia tomar banho, mas antes perguntou se o pai
estava com fome. Pedro disse que não, que já havia jantado.
Lívia não demorou muito
no banho; quando saiu, Pedro ainda estava na sala assistindo à tevê. Ela
fez-lhe companhia por algum tempo, mas sem muita conversa, a não ser para
comentar alguma coisa que viam no programa jornalístico.
Pouco antes de o programa
acabar, ela disse boa-noite ao pai, beijou-lhe o rosto e subiu para o quarto.
Deitou-se com a luz acesa; queria terminar de ler o restante do livro ainda
nessa noite, pois já havia dias que estava lendo e não conseguia terminar,
apesar de estar gostando muito.
Próximo Capítulo
* * *
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