Na Contramão da Gentileza
Se a gentileza tivesse idade, seria a de uma bela moça. E se pudesse
ser medida, teria o mesmo comprimento de uma minissaia; dessas bem curtas e tão
justas que parecem ter sido postas a vácuo para poderem passar por quadris,
quase sempre, tão avantajados.
Todos
têm medo de perder o emprego, não é mesmo?, ainda mais quando o cidadão está
cheio de dívidas para pagar, mas arriscá-lo quando se pode fazer uma gentileza
é algo inevitável.
Depender
de ônibus para voltar para casa ou para ir a algum lugar é algo irritante,
ainda mais quando o veículo demora a passar e, quando passa, para variar, está
lotado. Para piorar, essas obras de organização urbana, que começam sempre no fim de
um mandato de algum político, acabam com a rotina dos desavisados. Os pontos
mudam de lugar; os ônibus não param mais no mesmo ponto de antes; as avenidas
se tornam contramão, e todos ficam na mão… sempre! É um caos até que todos se
adaptem, ou alguém seja eleito.
Certo
dia, uma senhora, perdida em meio à desorganização das obras, deu sinal para um
ônibus, e o motorista fingiu não ver. Mesmo assim, ela, com seu passo trôpego,
aproveitou que o farol havia fechado e foi até o meio da rua, mas o motorista
não abriu a porta. Desconsolada e envergonhada, talvez com um palavrão preso na
garganta por sua educação cultivada havia anos, ela atravessou a rua para pedir
informação.
—
Eu não abro, não! — disse o motorista, todo cheio de pudor, a outro motorista
que estava de carona. — Imagina se eu abro, e ela é atropelada, vão dizer que
ela só atravessou a rua porque eu abri a porta. Hã, imagina?!
—
É verdade — concordou o outro, sem muita convicção, pois mesmo o amigo de
profissão não tendo aberto a porta, se a senhora fosse atropelada, alguém
poderia dizer que ele abriu.
—
E, além de eu ter que explicar tudo, arrisco perder o meu emprego! Pode uma
coisa dessa?!
—
Tá certo — concordou novamente o outro. — Tá certo!
Isso
que é competência profissional! Quanta observância!!! Nada de desobedecer às
normas impostas pela empresa, não é mesmo? Mas tal ética e pudor desceriam ralo
abaixo poucos pontos depois, pois um belo par de pernas generosamente exposto,
em virtude do palmo de minissaia jeans, atravessou a rua
correndo, acenando com a mão para o motorista, que não pensou duas vezes e
parou o ônibus.
—
Obrigado — agradeceu ela, sem ao menos se preocupar com o gênero da palavra.
Talvez, para alegria dos homens babões de plantão, o cérebro dela tenha
encolhido juntamente com a saia.
—
Aqui não é ponto… — o motorista disse, em meio a um sorriso malicioso, para
tentar argumentar em sua defesa, no intuito de amenizar a sua própria
contradição.
—
Tá bom — disse ela, em meio a um sorriso vermelho cor de sangue. Era tanto
batom que ela nem parecia ter uma boca por detrás da maquiagem. Ainda sorrindo,
ela pegou o cartão da passagem dentro da bolsa, que por ironia, era duas vezes
maior que a saia, e mostrou-o ao motorista, que em vez de olhá-lo, não tirava
os olhos das coxas robustas da jovem, candidata a miss minissaia. Ela passou a catraca, e ele
olhou para trás; nem preciso dizer para quê, não é mesmo?
Enquanto
isso, a senhora, pobre coitada, teve de andar um bom pedaço de chão para chegar
a um ponto no qual pudesse esperar por outro ônibus. Com muita sorte, o próximo
motorista não será tão gentil quanto o anterior, afinal não são todos que
arriscam o emprego tendo de parar o ônibus em local proibido, para exibir, em
público, tal virtuosa gentileza, uma gentileza na contramão.
Mais atual que este texto é impossível.
ResponderExcluirE olha que foi escrito há nove anos. Certas coisas não mudam, só ganham novos nomes.
ExcluirInfelizmente isso é tão comum... muito boa essa crônica, hoje dou até risadas com essas gentilezas espontâneas ... parecem ser instintivas kkkkkk.
ResponderExcluirGentilezas seletivas. Bem seletivas. Infelizmente a gentileza, muitas vezes, escolhe cor, idade, sexo, classe social. Uma pena. Enquanto as coisas não mudam, vamos ironizá-las. Beijão, flor, seu comentário alegrou meu dia.
ExcluirS2
ResponderExcluirS2
ExcluirInfelizmente já presenciei cenas parecidas. O que me incomoda não é o tamanho da saia da moça. Ela pode usar o que quiser. O que realmente me incomoda é o que você bem destacou: a gentileza seletiva.
ResponderExcluirAdorei a parte que fala das "obras de organização urbana que começam no final do mandato" e a parte do Obrigado...kkk
Parabéns pela crônica!
Ler suas crônicas me faz ter vontade de voltar a escrever. BIGbeijo
Que bom que gostou e que inspira você a retomar à escrita. E sim, a roupa da moça não é problema algum. Na verdade é outra crítica: as pessoas são julgadas pela roupa, infelizmente. A Gentileza seletiva é um problema, um vírus social. Devemos tomar cuidado para não nos contaminarmos.
ExcluirObrigad(o) por comentar.
É um mal já bem disseminado e como vc colocou, precisamos estar atentos. Os valores estão trocados. Ótima reflexão. Beijo.
ResponderExcluirObrigado por ler e comentar. Fico feliz com o retorno. Sempre bom ver um comentário aqui. Beijos!!!!!!!!!!
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