segunda-feira, 17 de abril de 2017

Capítulo 2 - O Mistério do Viúvo Maldonha


A Valsa


Era costume de alguns jovens — começou a falar Maldonha, ao expelir, pelas narinas, a fumaça tragada — ficar conversando em volta de uma fogueira que improvisavam de frente a um terreno baldio próximo de suas casas. Faziam isso quase todas as noites e ficavam conversando sobre diversos assuntos, como religião. Discutir religião não é uma das melhores coisas que uma pessoa deve fazer, chega a ser tolice, mas nunca ninguém para pra reparar nisso.
Quando Maldonha disse que religião não se discutia, podia-se notar no semblante de todos, com exceção de Pedro, que não gostava de debater o assunto, que eles se sentiram censurados, pois várias vezes se pegaram falando sobre isso.
— Numa dessas noites — prosseguiu Maldonha —, um dos jovens comentou que ouviu dizer que quem não fosse um religioso devoto, temente a Deus, não teria salvação depois da morte. Outro retrucou, dizendo que era uma tremenda besteira, que uma coisa não tinha nada a ver com a outra. Alegou que era coisa que o homem havia inventado… O assunto prosseguia, mudando constantemente com o passar das horas. Da salvação perante as leis de Deus, eles começaram a conversar sobre quem realmente era o Diabo.
— Ah, essa eu quero ouvir! — exclamou Afonso, curioso.
Após outra tragada, Maldonha continuou:
— Quando um rapaz… — o velho hesitou por um instante —, chamado Paulo, disse que o Diabo não age sem a permissão de Deus, o restante dos jovens ficou em silêncio, não concordou e nem discordou dele. Os outros garotos, ao contrário de Paulo, estavam certos. Sabem por que eles estavam certos? Porque ficaram quietos, e essa foi a melhor coisa que fizeram, pois não devemos falar sobre o que não conhecemos. É inútil.
— E depois, o que aconteceu? — perguntou Marsílio.
— Aqueles jovens continuaram conversando — prosseguiu Maldonha, olhando para Marsílio —, mas eles se sentiram incomodados com a presença de um homem que estava parado do outro lado da rua havia alguns minutos, encostado a um poste. Os rapazes ficaram intrigados, pois era difícil falar sobre o assunto com alguém olhando pra eles daquela forma, mas pra Paulo a presença daquele homem não era problema. Então ele prosseguiu, dizendo que todos têm medo do Diabo, embora nem sequer saibam que Lúcifer, pelo menos assim ele havia escutado alguém dizer, significava luz e fé. Naquele momento, o homem que estava do outro lado da rua caminhou na direção deles, com uma Bíblia na mão, gritando que eles não sabiam nada sobre o que estavam falando.
Maldonha ergueu uma das mãos e, como se quisesse imitar o gesto do homem, disse em voz alta:
— Vocês estão brincando com os poderes de Deus! — fez uma pausa enquanto olhava seus interlocutores e, logo em seguida, em voz baixa, prosseguiu: — O homem gritou essas palavras e continuou a caminhar na direção dos rapazes. Ele vociferava com tanto fervor que as veias do pescoço faziam um volume assustador. Quando estava próximo dos garotos, continuou falando, mas por não receber nenhuma atenção, deu as costas e começou a ir embora. Pra afrontar o homem, Paulo gritou que tinha medo dos castigos de Deus, e que não tinha medo do Diabo. E ele não parou por aí. Continuou gritando… gritando… — em um instante de reflexão, Maldonha balançou a cabeça para os lados. — Até que ele disse o que não devia.
— O que ele disse? — perguntou Álvaro, interessado na história.
— Disse que dançaria uma valsa com o Diabo — respondeu o velho, hesitante.
— Minha Nossa Senhora! — exclamou Marsílio, após engolir o chope para não cuspi-lo com sua exclamação.
— Paulo disse isso pra chamar a atenção dos colegas e também a do homem — continuou Maldonha. — Todos os rapazes que estavam lá olharam pra ele abismados, mas nada disseram. O homem parou onde estava. Era como se o que tinha acabado de ouvir tivesse paralisado suas pernas. Olhou para Paulo e, aos gritos, disse: “Blasfêmia! Isso é uma blasfêmia!”. E continuou gritando enquanto se aproximava. Quando estava bem diante de Paulo, ficou quieto por um instante e depois exclamou: “Diga, pelo amor de Deus, que você não disse isso sério! Vamos! Diga que já está arrependido de ter dito isso!”.
Houve um breve silêncio na narrativa de Maldonha, interrompido por Marsílio, que perguntou:
— E daí, o que Paulo disse?
Maldonha fez um ruído quase inaudível com a boca e depois respondeu:
— Paulo riu e disse que não estava arrependido de nada. Disse também que aquela não era a primeira e nem seria a última vez que diria aquelas palavras. Realmente aquela não foi a primeira vez que Paulo disse a tal frase. Sempre que ficava nervoso ao discutir com sua mãe, que era uma mulher muito religiosa, gritava aquelas palavras pra ofendê-la, parecendo sentir muito orgulho daquilo. O homem fez um gesto de reprovação com a cabeça, mas Paulo não parava de falar. Disse que dançaria uma valsa sim, e sorria com desdém.
Maldonha acendeu outro cigarro na guimba do anterior e bebeu mais um gole de vinho. Pedro e os outros continuaram em silêncio. Cada um tinha uma expressão diferente no rosto, mas a de John era a mais distinta de todas. Os outros pareciam estar ansiosos para o término da narrativa, mas ele, à medida que Maldonha adiantava a sua história, percebia que tudo, de alguma forma, era direcionado a ele e não estava gostando nada daquela situação.
— E então, o que aconteceu depois? — perguntou Afonso, interessado pela história.
De forma intensa, Maldonha tragou mais uma vez, o que fez a ponta do cigarro cintilar. Depois ergueu a cabeça para o alto e expeliu a fumaça.
— Aconteceu o que deveria acontecer — continuou. — O homem foi embora, mas antes exclamou: “Que Deus tenha compaixão de sua alma!”. Foi isso o que ele disse antes de ir embora. Parecia saber o que estava por vir na vida de Paulo. Naquela noite, logo depois do acontecido, alguns garotos também foram embora; os outros ficaram lá por mais um bom tempo. Discutiram sobre outros assuntos, menos sobre o ocorrido. Paulo se sentia arrependido, mas era algo que tentava esconder de si próprio, no lúgubre porão dos próprios pensamentos, aprisionado com grossas correntes pelos pés e pelas mãos. Não era um arrependimento sincero, pois no fundo quis se sentir superior, como sempre tentava ser a respeito de assuntos que não tinha o menor conhecimento. Era como se tentasse se esconder das coisas que não lhe agradavam tentando se passar por sábio e, às vezes, era grosso com as pessoas que o contestavam. Fazia pose de superior… Vocês estão entendendo?
Afonso e Marsílio fizeram um sinal afirmativo com a cabeça.
Num tom de voz que, aos poucos, transformava-se em algo assombroso, Maldonha continuou:
— Paulo queria ser conhecedor de tudo, mas não tinha conhecimento de muitas coisas das quais se achava dono da verdade. Mal sabia ele que um dia, não muito distante, viveria tamanha situação de pavor que o faria refletir sobre toda a sua vida em um único instante, e que essa situação seria apenas a primeira de muitas outras.
Maldonha bebeu mais um gole de vinho. Algo de estranho marcava de modo assustador sua fisionomia. Embora não aparentasse ter seus oitenta e três anos, em alguns momentos suas expressões faciais vincavam-lhe a pele queimada do sol de tal modo que ele parecia ser muito velho.                              
— Alguns anos se passaram depois daquela noite — prosseguiu o velho, e o tom sinistro da voz deu lugar a um ar de suspense. — Na ocasião, Paulo comemorava sua festa de casamento com os parentes e os poucos colegas de adolescência. Era uma bela noite, muito diferente daquelas em que ele e outros jovens conversavam, quase sempre à beira de uma fogueira, sobre assuntos regados por muito vinho e cerveja. Tudo parecia normal, como era esperado. A valsa principal foi anunciada, e os noivos caminharam para o centro do salão. Paulo estendeu a mão direita pra sua noiva, e ela a segurou com carinho. Houve uma salva de palmas. Paulo estava muito feliz. Ela permanecia quieta, mas… mas ao chegarem no centro do salão, ela deixou escapar um sorriso sinistro, abaixou a cabeça e, ao erguê-la, disse com voz suave, pausada e assustadora: “Vai ser uma honra dançar uma valsa com aquele que por anos me ofereceu essa dança”.
— Santo Deus! — exclamou Afonso, estupefato.
— Vocês não imaginam como Paulo se sentiu — continuou Maldonha. — Em um instante, ele estava todo sorridente, mas depois não havia alegria em seu rosto. O medo era tamanho que ele não conseguiu dizer uma única palavra. Apenas olhava pra noiva de modo repugnante, com um grito preso na garganta. Se alguém tivesse percebido o pânico, o pavor que ele estava sentindo, diria que ele estava num lugar horrendo, cercado por criaturas medonhas, e não diante de uma bela moça, como era sua esposa. Mas ninguém percebeu. Ninguém. Quando ele olhou para os convidados, todos aplaudiram, mas era como se tudo estivesse no mais profundo silêncio. Foi horrível! Horrível!
Por alguns instantes, houve um silêncio. Pedro abaixou a cabeça, pensativo. Algo o incomodava na história contada por Maldonha, mas ele não saberia definir o quê. Os outros aguardavam Maldonha prosseguir.
— Continue! — pediu Marsílio.
— Não há muito mais o que dizer — disse Maldonha. — Naquele instante, era como se Paulo estivesse sozinho em uma sala escura, vendo seu mundo desmoronar em meio ao som de suas palavras malditas, que por anos… — hesitou por um instante, passando a mão no rosto —… que por anos ditaram o ritmo de sua vida.
— Nesse caso, o ritmo da dança — acrescentou Afonso, num misto estranho de graça e incômodo.
— Sim — concordou o velho. Olhou para todos de forma breve, detendo o olhar por mais tempo em Pedro, e suspirou. Era como se tivesse algo mais a dizer, mas não era o momento. 

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4 comentários :

  1. Um dos melhores capitulos do livro!
    Não deixe de postar!

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    1. Valeu. Sei que sabe disso por já ter lido o livro todo. Muita cosia vem por aí no livro pra quem não leu! valeu!!!!

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  2. Final de capítulo com mais um olhar sinistro e profundo de Maldonha, se cuida, Pedro!

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