A Valsa
— Era costume de alguns jovens — começou a falar Maldonha, ao expelir, pelas
narinas, a fumaça tragada — ficar conversando em volta de uma fogueira que
improvisavam de frente a um terreno baldio próximo de suas casas. Faziam isso
quase todas as noites e ficavam conversando sobre diversos assuntos, como
religião. Discutir religião não é uma das melhores coisas que uma pessoa deve
fazer, chega a ser tolice, mas nunca ninguém para pra reparar nisso.
Quando Maldonha disse que religião não se discutia,
podia-se notar no semblante de todos, com exceção de Pedro, que não gostava de
debater o assunto, que eles se sentiram censurados, pois várias vezes se
pegaram falando sobre isso.
— Numa dessas noites — prosseguiu Maldonha —, um
dos jovens comentou que ouviu dizer que quem não fosse um religioso devoto,
temente a Deus, não teria salvação depois da morte. Outro retrucou, dizendo que
era uma tremenda besteira, que uma coisa não tinha nada a ver com a outra.
Alegou que era coisa que o homem havia inventado… O assunto prosseguia, mudando
constantemente com o passar das horas. Da salvação perante as leis de Deus,
eles começaram a conversar sobre quem realmente era o Diabo.
— Ah, essa eu quero ouvir! — exclamou Afonso,
curioso.
Após outra tragada, Maldonha continuou:
— Quando um rapaz… — o velho hesitou por um
instante —, chamado Paulo, disse que o Diabo não age sem a permissão de Deus, o
restante dos jovens ficou em silêncio, não concordou e nem discordou dele. Os
outros garotos, ao contrário de Paulo, estavam certos. Sabem por que eles
estavam certos? Porque ficaram quietos, e essa foi a melhor coisa que fizeram,
pois não devemos falar sobre o que não conhecemos. É inútil.
— E depois, o que aconteceu? — perguntou Marsílio.
— Aqueles jovens continuaram conversando — prosseguiu
Maldonha, olhando para Marsílio —, mas eles se sentiram incomodados com a
presença de um homem que estava parado do outro lado da rua havia alguns
minutos, encostado a um poste. Os rapazes ficaram intrigados, pois era difícil falar
sobre o assunto com alguém olhando pra eles daquela forma, mas pra Paulo a
presença daquele homem não era problema. Então ele prosseguiu, dizendo que
todos têm medo do Diabo, embora nem sequer saibam que Lúcifer, pelo menos assim
ele havia escutado alguém dizer, significava luz e fé. Naquele momento, o homem
que estava do outro lado da rua caminhou na direção deles, com uma Bíblia na
mão, gritando que eles não sabiam nada sobre o que estavam falando.
Maldonha ergueu uma das mãos e, como se quisesse
imitar o gesto do homem, disse em voz alta:
— Vocês estão brincando com os poderes de Deus! — fez
uma pausa enquanto olhava seus interlocutores e, logo em seguida, em voz baixa,
prosseguiu: — O homem gritou essas palavras e continuou a caminhar na direção
dos rapazes. Ele vociferava com tanto fervor que as veias do pescoço faziam um
volume assustador. Quando estava próximo dos garotos, continuou falando, mas
por não receber nenhuma atenção, deu as costas e começou a ir embora. Pra
afrontar o homem, Paulo gritou que tinha medo dos castigos de Deus, e que não
tinha medo do Diabo. E ele não parou por aí. Continuou gritando… gritando… — em
um instante de reflexão, Maldonha balançou a cabeça para os lados. — Até que ele
disse o que não devia.
— O que ele disse? — perguntou Álvaro, interessado
na história.
— Disse que dançaria uma valsa com o Diabo — respondeu
o velho, hesitante.
— Minha Nossa Senhora! — exclamou Marsílio, após
engolir o chope para não cuspi-lo com sua exclamação.
— Paulo disse isso pra chamar a atenção dos colegas
e também a do homem — continuou Maldonha. — Todos os rapazes que estavam lá
olharam pra ele abismados, mas nada disseram. O homem parou onde estava. Era
como se o que tinha acabado de ouvir tivesse paralisado suas pernas. Olhou para
Paulo e, aos gritos, disse: “Blasfêmia! Isso é uma blasfêmia!”. E continuou
gritando enquanto se aproximava. Quando estava bem diante de Paulo, ficou
quieto por um instante e depois exclamou: “Diga, pelo amor de Deus, que você
não disse isso sério! Vamos! Diga que já está arrependido de ter dito isso!”.
Houve um breve silêncio na narrativa de Maldonha,
interrompido por Marsílio, que perguntou:
— E daí, o que Paulo disse?
Maldonha fez um ruído quase inaudível com a boca e depois
respondeu:
— Paulo riu e disse que não estava arrependido de
nada. Disse também que aquela não era a primeira e nem seria a última vez que
diria aquelas palavras. Realmente aquela não foi a primeira vez que Paulo disse
a tal frase. Sempre que ficava nervoso ao discutir com sua mãe, que era uma
mulher muito religiosa, gritava aquelas palavras pra ofendê-la, parecendo sentir
muito orgulho daquilo. O homem fez um gesto de reprovação com a cabeça, mas
Paulo não parava de falar. Disse que dançaria uma valsa sim, e sorria com
desdém.
Maldonha acendeu outro cigarro na guimba do
anterior e bebeu mais um gole de vinho. Pedro e os outros continuaram em silêncio. Cada um
tinha uma expressão diferente no rosto, mas a de John era a mais distinta de
todas. Os outros pareciam estar ansiosos para o término da narrativa, mas ele,
à medida que Maldonha adiantava a sua história, percebia que tudo, de alguma
forma, era direcionado a ele e não estava gostando nada daquela situação.
— E então, o que aconteceu depois? — perguntou
Afonso, interessado pela história.
De forma intensa, Maldonha tragou mais uma vez, o
que fez a ponta do cigarro cintilar. Depois ergueu a cabeça para o alto e
expeliu a fumaça.
— Aconteceu o que deveria acontecer — continuou. —
O homem foi embora, mas antes exclamou: “Que Deus tenha compaixão de sua
alma!”. Foi isso o que ele disse antes de ir embora. Parecia saber o que estava
por vir na vida de Paulo. Naquela noite, logo depois do acontecido, alguns
garotos também foram embora; os outros ficaram lá por mais um bom tempo. Discutiram
sobre outros assuntos, menos sobre o ocorrido. Paulo se sentia arrependido, mas
era algo que tentava esconder de si próprio, no lúgubre porão dos próprios
pensamentos, aprisionado com grossas correntes pelos pés e pelas mãos. Não era
um arrependimento sincero, pois no fundo quis se sentir superior, como sempre
tentava ser a respeito de assuntos que não tinha o menor conhecimento. Era como
se tentasse se esconder das coisas que não lhe agradavam tentando se passar por
sábio e, às vezes, era grosso com as pessoas que o contestavam. Fazia pose de
superior… Vocês estão entendendo?
Afonso e Marsílio fizeram um sinal afirmativo com a
cabeça.
Num tom de voz que, aos poucos, transformava-se em
algo assombroso, Maldonha continuou:
— Paulo queria ser conhecedor de tudo, mas não
tinha conhecimento de muitas coisas das quais se achava dono da verdade. Mal
sabia ele que um dia, não muito distante, viveria tamanha situação de pavor que
o faria refletir sobre toda a sua vida em um único instante, e que essa
situação seria apenas a primeira de muitas outras.
Maldonha bebeu mais um
gole de vinho. Algo de estranho marcava de modo assustador sua fisionomia.
Embora não aparentasse ter seus oitenta e três anos, em alguns momentos suas
expressões faciais vincavam-lhe a pele queimada do sol de tal modo que ele parecia
ser muito velho.
— Alguns anos se passaram depois daquela noite — prosseguiu
o velho, e o tom sinistro da voz deu lugar a um ar de suspense. — Na ocasião,
Paulo comemorava sua festa de casamento com os parentes e os poucos colegas de
adolescência. Era uma bela noite, muito diferente daquelas em que ele e outros
jovens conversavam, quase sempre à beira de uma fogueira, sobre assuntos
regados por muito vinho e cerveja. Tudo parecia normal, como era esperado. A
valsa principal foi anunciada, e os noivos caminharam para o centro do salão.
Paulo estendeu a mão direita pra sua noiva, e ela a segurou com carinho. Houve
uma salva de palmas. Paulo estava muito feliz. Ela permanecia quieta, mas… mas
ao chegarem no centro do salão, ela deixou escapar um sorriso sinistro, abaixou
a cabeça e, ao erguê-la, disse com voz suave, pausada e assustadora: “Vai ser
uma honra dançar uma valsa com aquele que por anos me ofereceu essa dança”.
— Santo Deus! — exclamou Afonso, estupefato.
— Vocês não imaginam como Paulo se sentiu —
continuou Maldonha. — Em um instante, ele estava todo sorridente, mas depois não
havia alegria em seu rosto. O medo era tamanho que ele não conseguiu dizer uma
única palavra. Apenas olhava pra noiva de modo repugnante, com um grito preso
na garganta. Se alguém tivesse percebido o pânico, o pavor que ele estava
sentindo, diria que ele estava num lugar horrendo, cercado por criaturas
medonhas, e não diante de uma bela moça, como era sua esposa. Mas ninguém
percebeu. Ninguém. Quando ele olhou para os convidados, todos aplaudiram, mas era
como se tudo estivesse no mais profundo silêncio. Foi horrível! Horrível!
Por alguns instantes, houve um silêncio. Pedro
abaixou a cabeça, pensativo. Algo o incomodava na história contada por
Maldonha, mas ele não saberia definir o quê. Os outros aguardavam Maldonha
prosseguir.
— Continue! — pediu Marsílio.
— Não há muito mais o que dizer — disse Maldonha. —
Naquele instante, era como se Paulo estivesse sozinho em uma sala escura, vendo
seu mundo desmoronar em meio ao som de suas palavras malditas, que por anos… —
hesitou por um instante, passando a mão no rosto —… que por anos ditaram o
ritmo de sua vida.
— Nesse caso, o ritmo da dança — acrescentou
Afonso, num misto estranho de graça e incômodo.
— Sim — concordou o velho. Olhou para todos de
forma breve, detendo o olhar por mais tempo em Pedro, e suspirou. Era como se
tivesse algo mais a dizer, mas não era o momento.
O que achou desse capítulo? Comente, critique logo abaixo.
Um dos melhores capitulos do livro!
ResponderExcluirNão deixe de postar!
Valeu. Sei que sabe disso por já ter lido o livro todo. Muita cosia vem por aí no livro pra quem não leu! valeu!!!!
ExcluirFinal de capítulo com mais um olhar sinistro e profundo de Maldonha, se cuida, Pedro!
ResponderExcluirVixi!!! Nada escapa ao olhar do leitor atento!
ExcluirValeu!