domingo, 13 de agosto de 2017

Capítulo 13 - O Mistério do Viúvo Maldonha


Minutos depois de a filha ter ido para o quarto, Pedro desligou a tevê e também subiu. Deitou-se e deixou, como de costume, o abajur ligado. Pôs atrás da cabeça as mãos entrelaçadas pelos dedos e ficou olhando para o teto, pensativo. Sentia que algo lhe faltava, mas não sabia bem o quê. Lembrou-se da Bíblia, porém não queria admitir o fato de que era algo relacionado a ela que o deixava com essa forte impressão de impotência. Tentou ser duro consigo mesmo, repetindo pela centésima vez que não havia nada na Bíblia que pudesse ajudá-lo de alguma forma.
Encontrei conforto, pensou.
Virou o corpo na cama e ficou de lado, contemplando a fraca luz do abajur. Estava com sono, mas não conseguia ao menos ficar de olhos fechados. Virou para o outro lado e continuou tentando fugir dos pensamentos, mas eles eram implacáveis e não lhe saíam da cabeça. Fechou os olhos e assim se manteve por longo tempo, até que a realidade e a inconsciência começaram a fundir-se, tornando-se um complicado mundo de desejos ocultos.
João, capítulo três.
Foi em meio a esse pensamento que se levantou da cama, desceu a escada e dirigiu-se ao rack. Sem hesitar, abriu uma das portas e pegou a Bíblia. Olhou-a por alguns segundos e voltou para o quarto, segurando-a com uma das mãos. Sentou-se na beira da cama, de frente para o abajur, abriu-a e procurou o livro de João.
Jesus instrui Nicodemos acerca do novo nascimento, Pedro leu mentalmente. Pensou em parar por aí, mas algo o fez ler adiante, e leu do primeiro versículo até o vigésimo primeiro e achou que bastava. A cada versículo lido sentia o coração acelerar inexplicavelmente, misturado a uma intensa vontade de chorar. Fechou a Bíblia, reflexivo, os olhos úmidos, a boca seca. Estava impressionado como aquela passagem parecia ser direcionada a ele, mas achava ser uma mera coincidência; entretanto, algo lhe dizia que as coisas iam muito além de um simples fato coincidente. À tarde, ao abrir a Bíblia nesse capítulo, não deu muita importância, mas ao lê-lo nesse momento pôde perceber que o texto continha uma mensagem tão análoga à vida dele nos últimos dias que isso não poderia ter acontecido por acaso, sem uma explicação por trás dos fatos, mesmo que essa explicação fosse muito além de suas convicções alimentadas por sua incredulidade de anos.
Ao deduzir isso, largou a Bíblia sobre a cama, levantou-se e caminhou em direção à janela fechada. Ficou por alguns instantes ali, diante dela; depois, abriu-a e pôs a cabeça para fora. Ventava um pouco, e o vento parecia assobiar uma melodia suave de poucas notas. Por sobre o telhado de sua garagem podia ver apenas a copa da árvore, que ficava de frente ao portão pequeno de sua casa, balançar os seus galhos freneticamente. Fechou os olhos e ergueu a cabeça, sentindo uma imensa vontade de chorar, sentindo faltar-lhe o chão sob os pés descalços.
Anima-te, Pedro, tu renascerás.
Essa frase soou feito um trovão para Pedro, mesmo assim pareceu-lhe suave aos ouvidos. Era como se viesse de todos os lados, e foi ao ouvi-la que se sentou na cama. Passou as mãos no rosto e percebeu que ele estava molhado: havia chorado enquanto dormia. Olhou para a janela, e ela estava fechada. Moveu o corpo como quem vai se levantar e sentiu uma forte dor de cabeça. Gemeu calado e levantou-se. Acendeu a luz, e a claridade ofuscou-lhe os olhos, fazendo a cabeça latejar impiedosa e insuportavelmente. Franziu a testa e protegeu os olhos até que suas pupilas se acostumassem à claridade. Procurou a Bíblia. Ela não estava no quarto. Olhou em volta da cama, no chão, mas não adiantava procurar, ela não estava ali; tudo não passou de um sonho. Tudo havia sumido e o que lhe restou foi uma dor de cabeça forte, como se os miolos tivessem sido lavados, torcidos e postos para secar.
Mas foi tão real
Foi um sonho.
Eu podia sentir o vento.
Mas foi apenas um sonho.
Tu renascerás.
A memória de Pedro reproduzia-lhe a voz de um tom forte vezes sem conta na cabeça, que latejava no ritmo de sua respiração.
A Bíblia.
A Bíblia! Pedro precisa ver a Bíblia, mas ela não estava no quarto. Estava no rack, junto aos álbuns de fotografia.
Preciso verificar… Eu preciso
Com a cabeça jorrando-lhe pergunta sobre pergunta, saiu do quarto, desceu a escada e foi até a cozinha. Acendeu a luz e puxou uma gaveta do gabinete da pia à procura de uma aspirina. Encontrou uma cartela, pegou os dois comprimidos que restavam e jogou um deles na boca. Encheu um copo com água e virou-a em grandes goles garganta abaixo. Enxugou a boca e o queixo com a mão e, em seguida, pôs o outro comprimido na boca; triturou-o entre os dentes caninos e sentiu o seu horrível gosto amargo. Achava que, ao fazer isso, o efeito seria mais rápido. Se isso era verdade, não sabia, mas era o que costumava fazer com qualquer tipo de remédio que tomava, exceto os que eram revestidos com uma cápsula. Estes, ele abria, despejava o conteúdo na água e jogava as cápsulas fora.
Apagou a luz da cozinha e foi para a sala. Estava escuro, mas não acendeu a luz. Abriu o rack e, sem dificuldade alguma, achou a Bíblia, que estava lá onde a havia colocado antes de a filha voltar do encontro com Roberto. Pegou-a e seguiu em direção à escada, andando com cuidado para não tropeçar em algo. Era forte a sensação de déjà vu que sentia, pois o sonho fora tão real, que ele parecia estar repetindo os mesmos movimentos que fizera havia alguns instantes; mas não havia feito nada, afinal de contas, fora um sonho.
Um sonho absurdamente real.
Subiu a escada e andou até o fim do corredor, onde ficava o seu quarto. Lívia dormia profundamente no quarto em frente ao dele.
No quarto, lembrou-se de olhar a hora. O rádio-relógio mostrava em grandes números vermelhos três e vinte e seis da madrugada. Ele havia dormido e por um bom tempo.
Sentou-se na beira da cama com a Bíblia no colo.
— João, capítulo três. João, capítulo… três.
Repetia essas palavras vezes seguidas, enquanto procurava a passagem. Não sabia bem ao certo por que estava fazendo isso, mas era mais forte do que ele; era como se essa força o fizesse agir contra a vontade, contra os próprios desejos.
Quando conseguiu achar o trecho que procurava, ficou durante alguns segundos apenas olhando as letras. O coração batia fora de ritmo, em um diminuir e acelerar constante. Sentia uma sensação estranha como se estivesse prestes a cometer algo ilícito, um crime inafiançável. Era como se existissem dois Pedros, e um deles era feito um censor que inspecionava o outro para que não mudasse de opinião ou fizesse algo que fosse contra o modelo anterior do padrão Pedro de viver. Porém, no fundo, sabia que não havia mal algum no que estava fazendo, então suspirou e mergulhou de vez nas letras. À medida que a leitura avançava, sentia novamente a forte sensação de déjà vu. Em poucos minutos, leu toda a passagem e nenhuma vírgula estava diferente do que havia acontecido em seu…
(… sonho?)       
Sonho. Por que a dúvida? Havia sonhado, mas sentia que fora tão real, tão real que…
Não importava. O que importava era o fato de a passagem bíblica ser tão análoga à do sonho dele que o fazia sentir um arrepio no corpo inteiro. Fechou a Bíblia, jogou-a sobre a cama e levantou-se, pondo as mãos na nuca, ainda incrédulo, querendo uma explicação realista e menos fantasiosa, mas, apesar de tentar, não conseguia.
— É claro! — exclamou, olhando para as mãos espalmadas.
Pedro achava ter conseguido uma resposta para tudo o que estava acontecendo. Ocorreu-lhe que na época em que lia a Bíblia com frequência, interessado apenas na parte histórica (na verdade, tentava alimentar a fé, mas em vão), certamente lera essa passagem, portanto estava gravada em seu inconsciente e reapareceu em forma de sonho.
Mas por que as lágrimas, a sensação de leveza e esse arrependimento que eu não sei bem do quê?, pensou, confuso.
Sua razão queria uma explicação, mas o coração tentava quebrar a barreira de pedra que ele pusera em sua volta, e isso o deixava confuso, perdido. Ele queria saber o que era certo e o que era errado, mas oscilava em meio a tantas dúvidas. Afinal de contas, o que é certo ou errado num caso como esse? Sem saber direito o que achar de tudo, foi ao banheiro, abriu a torneira do lavatório e jogou água no rosto. Depois, encarando a própria imagem no espelho, tomou uma decisão: tirou a roupa, largou-a no chão, próximo ao lavatório, foi para o boxe, colocou o chuveiro na água fria, ligou-o e entrou debaixo. Por um instante, achou que foi a pior atitude que tomara na vida; não era nada agradável sentir, àquela hora da madrugada, a água fria cair-lhe sobre as costas em jatos que pareciam cortar-lhe a pele. No entanto, aliviou-lhe a cabeça, pois não conseguia pensar em nada além do banho, que de forma alguma fora o mais agradável de sua vida.
Menos de três minutos foi quanto aguentou debaixo da água, mas foi tempo mais do que suficiente para os dentes começarem a bater freneticamente. A dor de cabeça começava a ceder aos poucos e não passava de uma leve pontada distante. Enxugou o corpo e vestiu-se. Os dentes não batiam mais, apenas os lábios tremiam um pouco. A língua, por causa da aspirina que mastigara, ainda estava levemente adormecida. Cuspiu no lavatório na tentativa de se livrar daquele sabor amargo e, em seguida, encarou novamente a própria imagem no espelho.
— O que está acontecendo com você, Pedro? O quê?! — questionou-se em voz baixa, mas o seu reflexo não respondeu e nunca responderia. Era só um reflexo, e Pedro sabia muito bem disso, mas tornou a perguntar mais algumas vezes, mesmo sabendo que não obteria resposta. Pelo menos não de seu reflexo, que parecia devolver-lhe a pergunta, como se também precisasse de algumas respostas.
Saiu do banheiro e apagou a luz. Deitou-se com o rosto voltado para o abajur, que mantivera aceso. Enquanto esperava o sono aparecer, tentava esvaziar a mente, observando os minutos do rádio-relógio pularem um após o outro. A sensação que tinha era de que cada minuto durava como se fossem dois. Rolou várias vezes na cama, torcendo os lençóis, lutando contra um sentimento muito maior do que ele, sentindo-se como se fosse a única sentinela na guarita.
Dormiu olhando para o relógio, sem ao menos se dar conta de que passava das cinco da manhã.

* * *

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domingo, 6 de agosto de 2017

Capítulo 12 - O Mistério do Viúvo Maldonha


A claridade do dia entrava pelas frestas da janela do quarto de Pedro profetizava um belo e ensolarado domingo. Eram dez horas quando ele abriu os olhos parcialmente, pois a claridade o incomodava. Havia tempos, não dormia tanto. Sentou-se na cama e levantou-se.
Minutos depois, já na dependência inferior da casa, procurou por Lívia e a encontrou na cozinha, lavando louça.
— Bom-dia, filha.
— Oi, pai — secundou ela, olhando para trás, com um copo todo ensaboado nas mãos.
— Eu vou pra marcenaria terminar de uma vez aquele rack — avisou ele, parado sob a soleira da porta, entre a sala e a cozinha.
— Toma café primeiro.
— É, vou tomar.
Pedro sentou-se à mesa para se servir.
— Você consegue terminar hoje?
— Só falta montar. Talvez eu o monte aqui dentro pra não ter que carregar depois.
— Eu nem vou estar aqui pra poder ajudar você — lamentou-se ela.
Pedro nem lembrava que a filha iria sair. Por um instante, ficou pensativo, mas logo lembrou. Não estava tão bêbado na noite anterior a ponto de esquecer o que a filha lhe disse.
— Que horas você…?
— Às quatro horas — respondeu ela, antes que o pai terminasse a pergunta. — A gente combinou às quatro.
— Eu posso fazer uma pergunta?
Lívia fechou a torneira e pegou um pano sobre a mesa para secar as mãos.
— Pode, ué?!
— Em que esse rapaz trabalha?
Lívia sorriu, pois percebeu que o pai estava preocupado com ela. Soltou o pano na mesa e aproximou-se dele.
— Ele trabalha com o pai, vendendo planos de saúde. Não precisa ficar preocupado, pai, eu já estou vacinada. Ao menor sinal de perigo, o meu radar irá me avisar — disse, em tom de brincadeira, enquanto fazia sobre a cabeça duas antenas com os dedos indicadores. — Os meus movimentos são friamente calculados.
Pedro sorriu e consentiu, enquanto observava a filha caminhar para a sala, balançando os dedos sobre a cabeça.
— Eu vou lá pra marcenaria — disse ele, levantando-se. — Lá está uma bagunça. Vou dar uma geral lá e trazer as peças do rack aqui pra sala.
— Quer que eu ajude?
— Pode deixar, filha, eu me viro.
Pedro desceu para a marcenaria. Demorou quase duas horas para organizar tudo. Depois começou a levar as peças do móvel para a sala. Quando pôs no chão a última peça do rack, o almoço já estava quase pronto.
Mais tarde, após o almoço, enquanto o pai descansava atirado no sofá, Lívia foi se arrumar para o encontro com Roberto. Ficaram de se encontrar de frente à universidade, de onde iriam de carro para o shopping. Ainda nem havia nem escolhido a roupa que usaria. Passou tanto tempo escolhendo e outro tanto no banho que começou a se julgar atrasada. Realmente estava, mas não havia importância, pois um pouco de atraso seria bom. Quando estava pronta, pegou a bolsa e desceu. Ao chegar à sala, Pedro, que acabara de voltar a montar o rack, pôde sentir o cheiro da colônia que ela usava. Ele estava abaixado e, ao erguer a cabeça, deparou-se com uma bela moça diante de seus olhos. A filha estava estonteante. Por um instante, ele lembrou-se de quando conheceu Ângela, mas procurou afastar o pensamento e a comparação.
— Rapaz de sorte! — exclamou, encantado com a beleza da filha.
Lívia aproximou-se dele, desviando-se das madeiras e ferramentas que estavam no caminho; abaixou e beijou-lhe o rosto.
— Eu vou indo, tá?
— Divirta-se! E juízo!
— Pode deixar!
— Você precisa de dinheiro? — perguntou, quando Lívia já abria a porta da sala.
— Não, não — respondeu ela, depois beijou a ponta dos próprios dedos e acenou, dizendo: — Beijo.
— Beijo, filha. Se cuida — finalizou ele, olhando para ela.
Lívia andou rápido até o ponto de ônibus e, assim que chegou, passou uma van. Minutos depois, chegou ao local que havia combinado com um pouco de atraso. Roberto já havia dado duas voltas no quarteirão enquanto a esperava.
— Demorei? — perguntou ela, ao abaixar-se para olhar para dentro do carro.
— Não — respondeu ele, mas, na verdade, achou que ela havia demorado, sim. — Entre!
Lívia deu a volta, e Roberto se esticou para abrir a porta do outro lado. Ela entrou.
— Você está bonita… Quero dizer… está mais bonita ainda.
— Obrigada — agradeceu ela, em meio a um sorriso tímido, sentindo o sangue corar-lhe a face.
Roberto percebeu que ela ficou envergonhada e retribuiu o sorriso, enquanto dava partida no carro. Quando a convidou para sair, não havia imaginado um lugar legal para o qual pudesse levá-la. Já ela, depois de ter aceitado o convite, quis ser prática e optou pelo programa mais tradicional possível: assistir a um filme no cinema. Não era o que poderiam chamar de encontro inesquecível, futuramente, mas um cinema foi uma boa escolha para o primeiro encontro.

*  *  *

Em casa Pedro apertava os últimos parafusos de seu novo rack. Estava quase pronto e era bem maior do que o outro que seria substituído. Quando os últimos parafusos foram apertados, ele fez um esforço e pôs o móvel de pé; depois se afastou um pouco.
— Pronto! — exclamou, satisfeito, olhando para o rack.
Era um belo rack, com um lugar reservado para cada aparelho eletrônico.
Pedro aprendeu a profissão de marceneiro com o pai. Aos doze anos, já o ajudava em sua marcenaria e foi tomando gosto pela arte. O pai dizia-lhe que ele levava muito jeito, e Pedro se orgulhava de si. Enquanto olhava para o seu mais recente trabalho, o rack, lembrou-se do primeiro objeto que havia feito sem a ajuda do pai. Foi uma cadeira que deu de presente para a mãe. Na época, ele estava com apenas treze anos, mesmo assim a cadeira ficou tão bem feita, que a mãe ainda a guardava. Ele trabalhou com o pai durante alguns anos, mas o trabalho em dupla foi interrompido por um enfarte que o Sr. Antônio sofreu, levando-o ao falecimento. Pedro ficou arrasado, pois semanas antes havia discutido com ele. Lembrava-se vagamente como haviam iniciado a discussão. Recordava-se apenas de que a briga estar relacionada à religião e à morte de seu irmão, que faleceu antes de completar sete anos, quando Pedro ainda estava com cinco. Depois da briga, ele ficou sem falar direito com o pai por vários dias. Falavam apenas o necessário: “Me passa a lixa… a serra… ou a chave de fenda…”. E foi assim durante dias. Quando o assunto entre os dois foi voltando, Pedro comentou algo de Ângela, uma moça que havia conhecido. Na época, ele nem sequer imaginava que ela seria sua esposa, dar-lhe-ia uma linda filha e, que depois disso tudo, ainda haveria um divórcio. O jovem Pedro estava ansioso para apresentá-la ao pai, mas a fatalidade impediu que o Sr. Antônio conhecesse a futura nora; ele faleceu antes, e Pedro se lamentou durante muito tempo por não tê-la apresentado logo.
Quem foi que quis que as coisas fossem dessa forma? Quem? Deus? O maldito destino? Foram essas perguntas que Pedro se fez durante muito tempo, mas ele sabia a resposta para cada uma delas, ou pelo menos julgava saber. O destino não existia, tampouco Deus; contudo, não foi nenhum deles que levou o seu pai. Isso reforçou ainda mais a opinião dele sobre Deus, pois se de fato Deus existisse, não faria isso com ele, a menos que quisesse castigá-lo por não crer em Sua existência… Não! Não! Não podia ser, pensava Pedro, pois se esse Ser Supremo fosse real, seria um Ser bom e não o castigaria de tal forma, ainda mais tirando a vida de outra pessoa que não tinha nada a ver com a sua incredulidade, e que tinha tanta fé n’Ele, como era o caso de seu pai. Dessa forma, dizer como Pedro se sentiu na cerimônia fúnebre, quando começaram a orar o Pai-Nosso, torna-se algo irrelevante: uma conclusão a partir de premissas preestabelecidas.
Com a morte do Sr. Antônio, Pedro ficou um bom tempo sem trabalhar na marcenaria; não era uma desistência da profissão, apenas tentava se afastar do lugar no qual passou boa parte do tempo ao lado do pai. Não conseguia martelar um único prego sem ouvir a voz dele tentando explicar-lhe algo; por esse motivo, evitava ficar muito tempo nesse local. Não conseguia entender por que tentava se esconder daquela forma do sentimento presente de tristeza, por causa da ausência do pai. Era mais forte do que ele; era algo novo e, de forma inconsciente, o seu primeiro impulso foi afastar-se do local no qual havia encontrado o pai caído no chão, entre a vida e a morte, sussurrando algo que Pedro não conseguiu entender e que até o momento se perguntava o que poderia ser. Tal cena atormentou-o por longa data, pois muito tempo depois, ele ainda sonhava com a cena do pai caído no chão, balbuciando-lhe algo ininteligível. Tentar tirar aquela imagem da cabeça, fugindo do local onde tudo aconteceu, deu-lhe por algum tempo o duvidoso privilégio de não encarar a realidade, mas ele não sabia de nada disso e, aos poucos, voltou a trabalhar. Nos primeiros dias de trabalho, não aguentava ficar na marcenaria por duas horas seguidas, abandonava o local e trancava-se no quarto para chorar escondido da mãe, para não entristecê-la.
Tempos depois, quando a tristeza já se havia transformado em saudade, ele voltou a trabalhar normalmente e até arrumou um ajudante. Tempos depois, casou-se com Ângela, que, com a exceção de sua mãe, foi o seu porto-seguro para que não enlouquecesse de vez. Moravam ele, a mulher e a mãe na mesma casa, mas isso foi por pouco tempo, pois na época ele arrumou um emprego de cobrador numa empresa de ônibus no período diurno, e, à tarde, trabalhava na marcenaria com o seu ajudante. Deu duro até conseguir construir uma casa em um terreno que era de seu pai e, aos poucos, trabalhando arduamente, transformou a pequena e singela casa no sobrado no qual ainda morava. Quando se mudou para o novo endereço, Lívia ainda não tinha um ano.
Continuou a trabalhar como cobrador por muito tempo, mas não largou a marcenaria de lado. Dispensou o ajudante e passou a pegar pequenos serviços, por mero prazer, pois achava que o pai não lhe havia ensinado apenas uma profissão, era mais do que isso, era um hobby. Quando a filha estava maior e já frequentava a escola, Ângela começou a trabalhar. Foi na mesma época em que a situação financeira de Pedro estava estabilizada e, em virtude disso, ele resolveu sair da empresa de ônibus e voltar a trabalhar somente como marceneiro. Três anos antes do divórcio, arrumou um emprego de agente funerário, e a marcenaria voltou a ser apenas um hobby.
Foi em meio a essas lembranças saudosas do pai e o começo de sua vida conjugal com Ângela que Pedro começou a retirar os objetos e os aparelhos eletrônicos do antigo rack. Da parte interna do móvel, retirou revistas velhas, algumas sobre marcenaria, outras nem sabia por que ainda as guardava. Dentre elas muito material sobre tanatopraxia. Havia também muitos álbuns de fotografia, mas não quis perder tempo, por enquanto, olhando fotos. Colocou tudo sobre o sofá. Ao lado da pilha de revistas, havia uma Bíblia de tamanho grande. Pegou-a. Segurou-a diante do rosto, na altura da boca, e soprou a fina camada de poeira que estava na capa, transformando-a em nuvem. Em seguida, abriu-a, passou rapidamente os olhos e viu que estava no Novo Testamento, em João, capítulo três, mas não foi algo intencional; abriu-a por abrir, sem visar a nenhum capítulo específico. Em seguida, fechou-a, batendo as duas partes uma contra a outra, em um barulho abafado, sem se dar ao menos o trabalho de ler aquela passagem.
Após desocupar o rack, arrastou-o para o lado para poder substituí-lo pelo novo. Foi à área de serviço e pegou material para poder limpar o chão onde estava o móvel. Em instantes, limpou o local, esfregava com força o pano sob o rodo no piso bege-claro.
Enquanto esperava o chão secar, foi à cozinha e pegou uma lata de cerveja na geladeira. Bebeu dois grandes goles e, no caminho de volta para a sala, sentiu a fermentação subir pela garganta, na forma de um arroto. Soltou-o sem hesitar, pensando na bronca que Lívia lhe daria se estivesse ali para ouvi-lo fazer aquilo, mas ela não estava, então aproveitou e soltou outro, tão grande e nojento quanto o primeiro. Bebeu mais um gole e colocou a lata sobre o rack antigo.
Colocou o móvel novo na posição e, antes de arrumar tudo no lugar, lustrou-o. Enquanto fazia aqueles movimentos giratórios para lustrar, o filme Karatê Kid veio-lhe à memória. Pensou de forma satírica que, ao cabo daquele serviço, seria o melhor lutador de artes marciais do bairro.
Estou fazendo direito, senhor Miyagi?
E ria em meio ao pensamento.
Minutos depois, tudo estava no lugar. Atrapalhou-se um pouco com os cabos dos parelhos eletrônicos e ligou-os sem ter certeza de que estavam no lugar certo.
— Pronto! Espero que funcione! — disse a si mesmo, mas não se atreveu a ligar para saber.
Em seguida, tirou o pó das revistas com o mesmo pano que lustrou o rack. Separou as que jogaria fora e levou-as para a área de serviço junto com o material de limpeza que havia usado. Limpou também todos os álbuns de fotografia e deixou-os sobre o sofá para poder olhar mais tarde. Havia perdido a noção do tempo. Nem sequer reparou que mais de três horas se haviam passado. Cansado, foi tomar banho. Pensava na filha quando ligou o chuveiro.
Lívia estava se divertindo. Assistira a um filme cômico, rira bastante e agora estava na praça de alimentação. Não havia nada com que Pedro pudesse se preocupar. Quando terminou o banho, ele lembrou-se do jogo que passaria à tarde na tevê, mas esquecera, e àquela hora já havia acabado. Lamentando esse fato, foi à geladeira e pegou outra lata de cerveja.
Acabou de tomar banho e vai abrir a geladeira, não é, Sr. Pedro?, pensou ele, e era o que sua filha diria se estivesse ali para vê-lo fazer isso.
Faltavam poucos minutos para as sete da noite, começava a escurecer quando ele desceu os três degraus, que separavam a porta de entrada da casa do quintal, e ficou na calçada de frente ao portão, tomando cerveja.
De gole em gole, esvaziou a lata da bebida. Estava pensando em ir ao Texas, mas achou melhor não, pois poderia estar novamente fechado como na noite anterior. Ainda se perguntava por que John não abrira o bar, pois isso nunca havia acontecido, mas achou melhor, por enquanto, deixar essa curiosidade de lado e voltou para dentro de casa. Quando passou pela sala, lembrou-se dos álbuns de fotografia que estavam sobre o sofá. Foi à cozinha, pegou outra cerveja e voltou. Empurrou com uma das mãos os álbuns para o canto do sofá, incluindo a Bíblia, que se esquecera de guardar, e sentou-se. Colocou a cerveja no chão, junto ao pé, e pegou qualquer um dos álbuns e começou a olhá-lo. Era o álbum da primeira comunhão de Lívia, que estava com onze anos na época. As fotos estavam bem conservadas, embora tivessem sido tiradas havia alguns anos. Pedro lembrava-se muito bem do esforço que fizera para não decepcionar a filha. Na época, chegou a pensar em não ir à cerimônia, mas não disse isso a ninguém. Fez o possível para agradar à Lívia: vestiu uma bela roupa, fez cara de paisagem, sorria com o canto da boca, sempre que possível, ou quando alguém lhe dizia que Deus era grande…
Do tamanho do meu saco, pra aturar essa babaquice
… e poderoso…
e blábláblá e blábláblá, Amém.
O tempo que passou na igreja foi o suficiente para achá-lo semelhante a uma vida inteira, mas acabou, e a pequena Lívia ficou feliz por ter a presença do pai. O que ele não fazia para deixá-la feliz?
Continuou a olhar as fotografias. Estava olhando a que Lívia recebia a hóstia. Ela estava com um vestido branco e um arco na cabeça, que a mãe colocou, e era tão grande, que mais parecia uma coroa em vez de um simples enfeite para os cabelos. Ela era a única menina que estava usando um adorno daquele tipo, mas isso não a incomodou; estava muito feliz para se prender a mero detalhe.
Pedro bebeu outro gole de cerveja e arrotou em seguida; depois colocou a lata no chão, pegou outro álbum e começou a olhá-lo. Era o da festa de quinze anos de Lívia. Olhou esse e todos os outros de modo saudoso, o que foi suficiente para beber outra cerveja. Certa hora, em vez de um álbum, pegou a Bíblia, mas não a abriu, colocou-a de lado, junto dos álbuns que já havia olhado.
Depois da excursão em meio às fotografias, guardou todos os álbuns, incluindo a Bíblia que ele fazia questão de fingir não ver, mas o fato é que ela estava ali, como se implorasse para ser aberta e lida. Guardou-a junto dos álbuns, dentro do rack, e foi para a cozinha esquentar a macarronada que sobrou do almoço, pois estava com fome.

*  *  *

Quando eram pouco mais de dez horas, Roberto encostou o carro na frente da casa de Lívia.
— Agora você sabe onde me escondo — brincou ela.
Roberto sorriu.
— Bem — disse —, está entregue!
Lívia abriu a porta do carro, desceu e deu a volta pela frente até o lado do motorista. Roberto abaixou o vidro.
— Obrigada, eu me diverti bastante — agradeceu ela, apoiando-se sobre a base do vidro, que estava abaixado.
— Eu também — disse o rapaz, em tom recíproco, mas pensava que poderia ter acontecido algo mais, um beijo talvez, mas Lívia manteve-se na retaguarda o tempo todo, e ele não quis avançar o sinal.
— Você quer entrar? — perguntou ela, apenas por gentileza, mas esperava que ele recusasse o convite, pois ainda não queria apresentá-lo ao pai, pelo menos não nessa ocasião.
— Está um pouco tarde — Roberto meneou a cabeça, comportando-se como ela esperava que se comportasse. — Vamos deixar pra outra oportunidade.
Ficaram olhando-se por alguns instantes em silêncio, como se esperassem algo mais um do outro.
— Tá bom — rompeu o silêncio Lívia —, eu vou entrar, então.
Dito isso, ela abaixou-se para dar um beijo nele e, ao imaginar, de acordo com as circunstâncias do programa que fizeram, que seria no rosto, ele virou a cabeça um pouco para o lado, mas com a mão esquerda Lívia virou-lhe a face e, quando estavam um de frente para outro, encostou os lábios suavemente nos dele.
— Tchau — disse ela em seguida e afastou-se um pouco do carro.
Roberto comprimiu os lábios. Lívia o pegara de surpresa. Em seguida, sentindo o coração bater um pouco mais rápido, ele murmurou um tchau e deu à ré, pensando que aquele simples beijo fora melhor do que qualquer outra coisa que pudesse ter acontecido entre os dois nessa noite. Ela ficou observando o carro afastar-se e, quando não pôde mais avistá-lo, entrou.
Pedro estava assistindo à tevê, quando ouviu a filha mexer no trinco da porta. A primeira atitude dela após entrar e acender a luz foi olhar para o rack. O pai havia arrumado tudo.
— Oi, pai.
— Oi, meu bem.
Lívia aproximou-se do rack.
— Deu trabalho? — perguntou depois de toda a inspeção no móvel.
— Um pouco — respondeu ele. — Também, quanto tempo eu não fazia alguma coisa?
— O que você vai fazer com aquele outro rack? — perguntou ela, olhando para o móvel desocupado.
— Eu não sei ainda. Por quê?
Lívia sentou-se ao lado do pai.
— Eu acho que vou trocá-lo pelo que está no meu quarto. O que está lá está mais velho que esse.
— Você é quem sabe. Só que vamos deixar isso pra amanhã. Hoje eu não aguento mais mexer em nada.
— Tudo bem! Eu não estava pensando em fazer isso hoje.
— Ah! Antes que eu me esqueça, amanhã cedo vou ao banco — Pedro lembrou-se de avisar à filha. — Vou tirar dinheiro. Eu deveria ter ido hoje, mas acabou ficando tarde.
— Acabou o dinheiro que você tirou naquele dia?
— Eu precisei comprar madeira e umas peças pra fazer esse rack… Eu ainda tenho dinheiro, mas…
— É, mas o rack está aí — Lívia apontou para o móvel —, todo bonito. Realmente, ficou muito bonito.
— Apesar de ter ficado um bom tempo sem trabalhar na marcenaria, eu acho que não perdi a velha forma — Pedro estava orgulhoso de si e aproveitou o elogio da filha para demonstrar isso.
— É mesmo, de fato não perdeu — concordou ela, olhando para o rack.
Ficaram em silêncio por alguns instantes, olhando para o novo móvel.
— Como foi o seu passeio? — era a pergunta que estava congelada nos lábios de Pedro desde que a filha chegou.
Lívia suspirou, e Pedro sabia bem o que isso significava. Depois contou a ele como havia sido o seu dia. Falou sobre o filme que viu e tudo mais. Pedro ouvia cada detalhe com certo ciúme de pai, mas não dizia nada que demonstrasse isso. O único fato não mencionado por ela foi o beijo de despedida; não se sentia muito confortável para comentar isso com o pai.
Depois de ter contado todo o seu passeio, ela disse que ia tomar banho, mas antes perguntou se o pai estava com fome. Pedro disse que não, que já havia jantado.
Lívia não demorou muito no banho; quando saiu, Pedro ainda estava na sala assistindo à tevê. Ela fez-lhe companhia por algum tempo, mas sem muita conversa, a não ser para comentar alguma coisa que viam no programa jornalístico.

Pouco antes de o programa acabar, ela disse boa-noite ao pai, beijou-lhe o rosto e subiu para o quarto. Deitou-se com a luz acesa; queria terminar de ler o restante do livro ainda nessa noite, pois já havia dias que estava lendo e não conseguia terminar, apesar de estar gostando muito.

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sexta-feira, 30 de junho de 2017

Capítulo 11 - O Mistério do Viúvo Maldonha



As Taças de Vidro

Maldonha desistiu de fumar o restante do cigarro que acabara de acender e apagou-o no cinzeiro, assim que Pedro voltou do banheiro e lhe cobrou a história.
— Bem, Pedro, vou falar de um rapaz — começou Maldonha, dando início à sua história, após beber um gole de vinho. — Ele morava somente com a mãe, pois o pai dele havia falecido fazia pouco tempo. Ele também tinha uma irmã, mas ela era casada. Era jovem, tinha vinte e três anos e gostava de farra. Quando a tristeza do luto pela morte do pai começou a se transformar em saudade, ele não parava um fim de semana sequer em casa pra fazer companhia à mãe, e ela não dormia por estar sempre pensando no pior. É estranho, as mães nunca se acostumam… Um filho pode aprontar mil vezes a mesma coisa, mas elas sempre ficam preocupadas. Compreender o coração de uma mãe é muito mais difícil do que podemos imaginar, Pedro.
Pedro consentiu com a cabeça, enquanto abria a lata de cerveja que acabara de ser posta sobre o balcão. A porção de salame, que pedira havia alguns instantes, chegou em seguida.
Maldonha prosseguiu:
— Não sei como podem existir histórias, como vemos por aí, de mães que abandonam seus filhos dias depois de eles terem nascido. Deve haver alguma força maligna que faça essas mulheres cometerem tais atrocidades…
Safadeza, pensou Pedro, essa é a força: safadeza! Trepam como cadelas no cio com seus machos, depois querem alegar insanidade mental.
—… como essas, mas isso não importa agora. Vamos falar do rapaz de quem eu estava falando. Numa dessas vezes, quando ele chegou em casa, teve uma discussão com a mãe. Ela só queria que ele não fizesse mais aquilo, mas por ser maior de idade, esse rapaz, que se chamava Henrique, achava que não devia satisfação; não dava a mínima pra aflição que a mãe sentia.
Maldonha parou de falar por um instante e, apesar de ter dito que não queria mais salame, pegou um palito e perguntou a Pedro se podia.
— Claro! — respondeu Pedro.
Maldonha espetou três fatias de uma só vez.
Pedro ficou em silêncio, enquanto esperava o velho mastigar e engolir as fatias de salame. Depois que as engoliu, Maldonha continuou:
— Apesar de tudo, Henrique era bom filho, Pedro. Agia daquela forma, mas não era uma má pessoa.
— Sei… — concordou Pedro, com ironia.
— Ao contrário de você, ele acreditava em Deus, mas a fé sem obra é morta; tão morta quanto uma fatia desse salame — apontou com o palito para a bandeja. — E não era bem fé o que ele sentia, sabe? Ele simplesmente acreditava e ponto. No seu caso, você não acredita, mas pelo que percebi, não gosta de falar sobre esse assunto.
— Não é questão de não gostar…
— Eu sei — interferiu Maldonha —, querer discutir religião gera brigas e nunca ninguém chega a um acordo. Religião não é pra ser discutida. Também não é uma coisa que tem que ser posta à força na cabeça de uma pessoa, ainda mais quando essa pessoa já é adulta.
— É, eu concordo.
— Conheça a verdade, e ela vos libertará — tornou a dizer o velho.
Nesse momento, Pedro lembrou-se de seu pai. Na verdade, o que lhe veio à cabeça foram imagens de uma discussão que tivera com ele por causa de religião semanas antes da morte dele.
— Bem, Pedro — continuou Maldonha, interrompendo os pensamentos de Pedro —, esse rapaz blasfemava, e a mãe dele lhe pedia que parasse, mas ele não lhe dava ouvidos. É por isso que eu digo: você, que não acredita em Deus, não se julga melhor do que as pessoas que acreditam e também não fica dizendo pra todo o mundo o que acha ou deixa de achar a respeito d’Ele. Não fica defendendo o fato de não acreditar, entendeu? Já algumas pessoas que dizem acreditar e amar a Deus acima de todas as coisas, não param de culpá-Lo por tudo que acontece de errado em suas vidas — fez uma pausa e sorriu com ironia. — Essas pessoas não passam de hipócritas, pois dizem que amam, mas amam apenas com os lábios, pois o coração delas está longe de Deus.
Maldonha pegou o maço de cigarros no bolso da camisa. Enquanto observava-o acender mais um, Pedro percebeu que ele não fumava apenas por vício, era também um hábito, pois acabara de vê-lo apagar um cigarro ainda inteiro havia poucos instantes.
— O que vou contar agora aconteceu mais ou menos onze horas da manhã — prosseguiu Maldonha —, quando Henrique e outros amigos saíram de carro, mas não chegaram ao destino; sofreram um acidente horrível e fatal. Nem um deles sobreviveu. O carro capotou várias vezes e só parou de se arrastar pelo asfalto depois que entrou debaixo de um caminhão.
Pedro admirou-se com tamanha proporção do acidente, mas estava confuso, não conseguia entender o que Maldonha queria dizer-lhe com tudo aquilo.
— O que isso tem a ver com blasfêmia?
Maldonha tragou, soprou a fumaça para o alto e respondeu:
— Você vai entender. Então, antes de sair com os amigos, Henrique havia ido ao mercado com a mãe. Quando Marta estava levando as últimas sacolas pra dentro…
— Marta era a mãe dele? — perguntou Pedro.
— Exatamente — esclareceu o velho. — Quando ela levava as sacolas com as compras pra dentro de casa, os amigos dele chegaram e entraram no carro. Quando Henrique ia dar a partida, a mãe voltou e ficou furiosa ao ver aqueles rapazes no carro, mas Henrique não quis saber. Ela ficou furiosa, pois o filho ia sair sem avisar; mesmo assim disse a seguinte frase: “Que o Espírito Santo os acompanhe!”.
Maldonha espetou mais uma fatia de salame.
— E então? — Pedro cobrou a continuidade.
— Eu não sei direito o que aconteceu — continuou o velho, de boca cheia. — O que sei é que nos destroços do carro, ou melhor, no porta-malas, foi encontrado um jogo de taças.
— E daí? — Pedro não via nenhum sentido.
— Nem uma das seis taças estava quebrada, Pedro. Nem sequer uma delas estava trincada.
— Como?! — Pedro estava incrédulo. — Como é possível, se você disse que o carro ficou completamente…
— É verdade, Pedro, as taças estavam inteiras. Intactas!
— Como tem tanta certeza disso?
— Eu fui ao velório e ao enterro de Henrique, e a mãe dele, que era uma velha conhecida minha, me contou tudo; até me mostrou as taças.
Pedro balançou a cabeça e riu. Nada fazia sentido e, apesar de achar normal uma pessoa ir ao enterro de outra, estranhou o fato de Maldonha ter ido ao velório e ao enterro desse rapaz. Na verdade, achava tudo muito fantasioso para ser verdade e, para causar mais estranheza ainda aos fatos, havia o detalhe de o jogo de taças estar intacto no porta-malas de um carro que foi destruído em um acidente de trânsito.
— E essa mulher, onde ela está agora? — perguntou Pedro, querendo mais informações.
— Isso aconteceu há muito tempo. Ela morreu algum tempo depois do filho. Na época, eu tive uma longa conversa com ela, no dia do velório. Foi ela quem me disse toda essa história. Disse que dias antes do acidente teve uma visão enquanto orava diante de um pequeno altar que havia em sua casa. Ela não compreendeu a mensagem de sua visão; disse que ouviu barulhos como se fosse uma batida de carro; ouviu vozes zombando às gargalhadas de algo. Ela me disse que teve outras visões, mas eu não me lembro direito pra poder contar pra você. Eram mensagens muito confusas, e ela não pôde compreender. No dia do acidente, ela havia feito uma compra com o filho e me disse que havia esquecido algo no porta-malas.
— Eram as taças? — perguntou Pedro, em tom de afirmação.
— Sim, eram, mas quando ela voltou pra pegar, o filho já estava de saída. Como já disse, ela ficou furiosa com ele, mas pediu que o Espírito Santo o acompanhasse. Henrique não deu muito ouvido ao que ela disse. Quando ele já estava um pouco distante, ela se lembrou das taças e gritou que havia esquecido algo no porta-malas. Sabe o que Henrique disse, Pedro?
— É claro que não! Como é que vou saber?! — exclamou Pedro num misto de curiosidade e irritação.
Maldonha tragou mais uma vez, prendeu por um instante a fumaça nos pulmões e soprou-a para o alto em seguida. Olhou sério para Pedro e continuou:
— Henrique parou o carro e pôs a cabeça pra fora, olhando pra trás. O carro estava um pouco distante de sua mãe, mas ela pôde ouvir com perfeição cada palavra que ele disse.
— O que ele disse?! — perguntou Pedro, olhando para Maldonha, que parou de falar para beber um pouco de vinho. A curiosidade envolvera-o de tal forma que as palavras de sua pergunta saíram quase num grito.
— Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas, porque aqui dentro do carro não cabe mais ninguém — disse Maldonha, voz calma, enquanto colocava o copo sobre o balcão. — Foi exatamente isso o que ele disse, e os amigos dele riram como se tivessem ouvido a melhor piada da vida deles. De onde estava, Marta pôde ouvir as gargalhadas, mas não era uma piada, e se tivesse sido, seria a última.
Um silêncio envolveu-os. Maldonha pegou mais uma fatia de salame, enquanto Pedro, pensativo, observava-o. Agora ele sabia o que Maldonha queria dizer com aquilo tudo.
O Espírito Santo estava no porta-malas, pensou Pedro, tentando pôr em ordem cada imagem que a cabeça desenhava. Era como se tentasse reconstruir nos pensamentos uma cena que não vira. Era chocante, era impressionante e, em meio às concepções dele, era um absurdo.
Não, eu não posso estar pensando nisso. Seis taças de vidro, e nem uma delas se quebrou?!
Seis taças
As taças estavam inteiras. Nem uma delas estava ao menos trincada. Pedro queria saber como isso era possível…
de vidro
… e não conseguia achar uma resposta que não fosse a proposta na história contada por Maldonha.
e nem uma quebrada
Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas do carro.
— Isso é loucura! — disse, olhos arregalados, enquanto tentava afastar qualquer pensamento que o deixasse cada vez mais atordoado.
— Não, não é — Maldonha estava calmo, tragou o cigarro e encarou Pedro por entre a nuvem deslizante de fumaça acinzentada que expeliu lentamente dos pulmões. E, embora a história fosse absurda, não havia traços de mentira em seu olhar. Segurava o cigarro entre os dedos indicador e médio da mão direita que estava sobre o balcão. Pedro olhava para a fina fumaça que subia do cigarro e serpenteava o ar até sumir em sua parte mais alta.
— Quem encontrou as taças? — perguntou Pedro, para retomar a conversa.
— Um dos bombeiros. Ele deve ter questionado tanto o ocorrido quanto você deve estar questionando agora, mas com uma única diferença: ele não sabia de toda a história.
— Quer dizer então que Deus castigou esse rapaz e os amigos dele?!
Maldonha não respondeu, apenas olhou para Pedro, que continuou:
— Que Deus misericordioso é esse que castiga…?!
— Pedro…? — interferiu Maldonha, voz branda, colocando a mão sobre o braço do outro como se quisesse pedir-lhe que parasse de falar, e Pedro parou. — Não foi Deus quem bateu o carro daqueles jovens. As pessoas são livres pra fazer o que elas quiserem da vida. Por que atribuir a Deus as consequências de nossos atos? Deus não é responsável por nossas irresponsabilidades. Escute e tente entender: nós fazemos julgo de nós mesmos. De uma forma ou de outra, somos responsáveis pelos nossos atos. Há um versículo na Bíblia, que não me lembro bem onde está… sei apenas que está, se não me engano, em Gálatas, que diz que com Deus não se brinca, que o que uma pessoa planta, ela também colherá. Deus é Vida, e é com essa Vida que não devemos brincar. Você nunca vai colher peras se plantar uma macieira, Pedro.
Pedro nada disse. Meneou a cabeça e bateu a mão no ombro de Maldonha, que percebeu que Pedro havia compreendido o que ele queria dizer.
Ficaram quietos. O velho bebeu o resto do vinho, pegou uma fatia de salame e colocou-a na boca, olhando para Pedro, que bebia a sua cerveja. Ficaram assim por longo tempo, como se Maldonha tivesse dito tudo o que queria dizer, e Pedro, perdido a fala, embora tivesse um rio de palavras para elaborar inúmeras perguntas. Sabia, entretanto, que para cada resposta que obtivesse, uma nova pergunta se formaria em sua cabeça.
Que o Espírito Santo o acompanhe!
Os minutos foram passando. Ambos ficaram em silêncio tempo suficiente para Pedro beber mais uma lata de cerveja, e Maldonha, outro copo de vinho, além de fumar mais um cigarro, que acendeu na guimba do anterior.
Seis taças inteiras Capotou várias vezes…, Pedro pensava sem parar.
E o silêncio se arrastou de gole em gole, de tragada em tragada e, por algumas vezes, com sabor de salame. Quando o último gole de cerveja molhou-lhe a garganta, Pedro pôs a mão direita no ombro de Maldonha, perguntando:
— Vai querer mais alguma coisa?
Maldonha bebeu o restante do vinho que estava no copo.
— Só um maço de cigarros — respondeu.
Pedro levantou-se e pegou a carteira; Maldonha também se levantou e, quando ia retirar o dinheiro do bolso, Pedro segurou-lhe a mão, dizendo:
— Pode deixar. Eu pago!
— De forma alguma! — Maldonha tentou relutar.
— Não insista — Pedro abriu a carteira e pegou o dinheiro. — Pode pedir o seu cigarro, eu pago!
— Por favor…
— Por favor, digo eu — depois olhou para o dono do bar. — Quanto deu aqui?
O dono do bar recebeu o dinheiro da mão de Pedro, que disse:
— Inclua também um maço de cigarros — olhou para Maldonha. — Que cigarro você fuma mesmo?
— Pall Mall, por favor! — respondeu o velho.
Pedro recebeu o troco, e Maldonha, o maço de cigarros. Depois saíram do bar lado a lado.
Caminharam por um tempo em silêncio. Muitas coisas passavam pela cabeça de Pedro. Mais uma vez, Maldonha o surpreendera, e, novamente, ele não sabia o que achar; sua cabeça era uma confusão; quando por alguns momentos pensava em mudar os seus conceitos sobre a existência de Deus, algo, que cultivava havia anos, rebatia tais pensamentos, dizendo-lhe que qualquer um poderia ter forjado aquele fato das taças, colocando-as no local do acidente.
Oh, mas é claro! Um dos bombeiros. Só pode ter sido um dos bombeiros. Não, é claro que não foi nenhum deles. Pra que a mãe do rapaz estaria mentindo? Mentindo! É isso! Maldonha está mentindo, e fim de papo. Maldonha é um mentiroso, um tremendo de um velho mentiroso.
— Se eu lhe disser algo — começou a falar Pedro —, você não vai se aborrecer?
— Por que me aborreceria?
Deram mais alguns passos e pararam em frente à rua que dava para casa de Maldonha.
— Você me contou essa história só pra me deixar impressionado, não foi? Ela não aconteceu de fato, não é mesmo?
Decepcionado, Maldonha balançou a cabeça para os lados. Pedro percebeu o que acabara de fazer e sentiu vergonha. Sentiu-se também ridículo, pois ninguém o estava obrigando a acreditar em nada. Bastava não acreditar e pronto. Por que levar o velho Maldonha tão a sério? No entanto, algo o confundia, como se necessitasse acreditar, o que, para ele, era excessivamente estranho.
— Bem, já está tarde — continuou Pedro, passando a mão direita no rosto, como se tentasse consertar o que acabara de dizer. — Qualquer dia desses, a gente sai de novo pra beber junto, certo?
Maldonha comprimiu os lábios e tornou a balançar a cabeça, dessa vez afirmativamente. Aproximou-se de Pedro e bateu-lhe a mão no ombro. Depois deu as costas e seguiu seu caminho. Pedro observou-o entrar na estreita e pouco iluminada rua sem saída; quando não pôde vê-lo mais, olhou para o relógio. Era tarde da noite, e Lívia deveria estar preocupada.
Pedro apressou os passos. Não estava bêbado. Aquelas poucas latas de cerveja não eram suficientes para tanto. Sentia apenas uma leve tonteira, mas se julgava sóbrio.
Enquanto caminhava, pensava em tudo o que Maldonha lhe havia dito.
Conheça a verdade, e ela vos libertará.
Logo adiante, a poucos metros, havia uma árvore. Lembrou-se do exemplo que o velho lhe havia dado sobre o livre-arbítrio. Quando chegou próximo da árvore, segurou um fino galho com a mão direita e continuou andando, puxando-o por sobre a cabeça até arrancá-lo.
Nenhuma folha cai de uma árvore sem que haja o consentimento de Deus.
Enquanto seguia rumo a casa, ia puxando as folhas uma a uma do pequeno galho que arrancara da árvore. Ao passar ao lado de um portão, um cachorro pulou contra as grades, latindo ferozmente. Pedro estava tão distraído que tomou um susto daqueles e pulou para o lado, pensando que o cachorro pudesse pegá-lo.
— Cachorro filho-da-puta!!! — gritou de forma instintiva. — Vá assustar a cadela da sua mãe!
Depois de gritar essas palavras, sorriu, sentindo o coração bater na boca.
— Au! Au! — fez ele, inclinado o corpo na direção do portão, tentando imitar o cachorro, um vira-lata de porte grande e, por sinal, muito bonito. — Au! Au! Grrr!
Depois continuou a andar, a passos lentos, enquanto ouvia o cachorro latir de modo enlouquecido.
— A cadela da sua mãe — repetiu para si mesmo, pensando como isso era sugestivo, já que se tratava de um cachorro. — A cadela da sua mãe — repetiu, e o sorriso se transformou numa gargalhada.
Quando estava próximo ao portão de casa, percebeu que do galho que segurava não restou folha. Arrancara todas. Jogou-o para trás, por sobre o ombro, antes de abrir o portão.
Ao abrir a porta de casa e entrar, viu Lívia sentada no sofá, lendo. Ela usava uma calça de moletom cinza-claro e uma camiseta azul. Gostava de usar essa camiseta quando estava em casa porque a achava confortável, mas nem sequer sairia ao quintal usando-a. Ela já havia passado da metade do livro que lia. Estava ansiosa para saber o desfecho, mas, mesmo estando envolvida pela leitura, marcou a página e fechou o livro.
Pedro trancou a porta, olhou para a filha e piscou-lhe um olho, e ela percebeu que ele estava um pouco ébrio.
— E a sua amiga?
Lívia largou o livro sobre o sofá e levantou-se.
— Faz tempo que foi embora.
— Eu demorei?
— Eu estava tão entretida na leitura que nem percebi a hora.
Pedro se aproximou da filha e beijou-lhe o rosto, orgulhoso.
— Teve alguma ideia pra começar a escrever seu livro?
— Não, não tive, mas por que a pergunta?
— Por nada — desconversou. Achou melhor não dizer que havia comentado com Maldonha que ela pretendia escrever um livro. — Eu vi você lendo e lembrei. Só isso.
Lívia sorriu e o abraçou.
— Adivinha quem me ligou — disse ela, exultante.
— Quem? 
— O Roberto!
— Roberto… Roberto… — Pedro tentava se recordar.
— O Roberto foi quem me deu aquele celular.
— Ah, sim! — exclamou ele, enquanto caminhava em direção ao sofá, no qual se sentou. — Pelo seu rostinho de felicidade, ele chamou você pra sair, não foi?
Lívia pegou o livro do sofá e sentou ao lado esquerdo do pai.
— Ele já havia me convidado algumas vezes. Na última, eu fiquei de ligar pra dar a resposta e acabei esquecendo. Foi no dia em que fomos ao cinema.
— Claro, claro! — disse Pedro, mudando a voz para fazer graça —, o Pedrão aqui é irresistível.
Lívia sorriu e bateu com o livro no braço do pai.
— Para de brincadeira, pai! — fez um instante de silêncio. — Tudo bem, eu confesso que fiquei tão feliz de sair com você que acabei esquecendo. O Roberto passou o dia ligando aqui pra casa…
— Coitado!
—… e não havia ninguém pra atender.
— Ele deve ter ficado muito chateado. Eu ficaria.
— Ficou mesmo — Lívia se mexeu no sofá e sentou-se sobre a perna direita para ficar quase de frente para o pai —, mas depois me deu um celular; assim ficará mais fácil pra ele falar comigo.
— Como é esse rapaz? — Pedro estava preocupado com a filha. Lembrava-se muito bem do último rapaz que ela namorou.
— Ele é um colega de turma na faculdade. É legal. É bonito!
Pedro pôs a mão direita no rosto da filha. Os olhos dela brilhavam ao falar do rapaz.
— Cuidado pra não se machucar, meu bem — disse ele, em tom carinhoso. Estava realmente preocupado, mas reconhecia que a filha sabia se cuidar.
Lívia beijou o rosto do pai e ficou olhando-o por alguns segundos. Depois, dizendo que o amava muito, abraçou-o com muita força.
— Eu também amo você — secundou ele, sentindo uma inexplicável sensação de perda no peito.
Após o abraço, Pedro levantou-se e subiu para tomar banho. Lívia voltou à leitura, louca para terminar logo de ler o livro.
Pedro passou tanto tempo no banho que Lívia não estava mais na sala quando ele saiu do banheiro. Depois de tirar o roupão, ele vestiu apenas uma bermuda e ficou sem camiseta. Com os cabelos ainda molhados e despenteados, foi ao quarto da filha. A porta estava apenas encostada, e a luz, acesa; Lívia dormia. Adormecera com o livro aberto sobre o peito. Pedro pegou-o com cuidado, olhou o título, Contágio Criminoso, e com um marcador de páginas com um desenho das Meninas Superpoderosas, que estava sobre a cabeceira da cama, marcou a página, fechou o livro e colocou-o sobre o criado-mudo ao lado. Contemplou por um instante a filha e lembrou-se de quando ela era pequena, e ele contava-lhe histórias infantis para dormir, que nada se assemelhavam com O Cemitério ou O Iluminado, obras de Stephen King, que ela lera recentemente.
A Valsa. As taças de vidro, foi o que ocorreu na cabeça de Pedro, enquanto colocava um lençol sobre a filha. Depois se afastou, apagou a luz, saiu e encostou a porta devagar para não fazer barulho. Novamente uma sensação de perda apertou-lhe o peito e um calafrio envolveu-lhe o corpo.
O que está acontecendo com você, Pedro? O quê?
Em meio ao pensamento, foi para o quarto, caminhou para o banheiro, no qual acabara de tomar banho, pegou a toalha e secou os cabelos. Enquanto olhava para o espelho, tentava organizar os pensamentos. Tudo o que ouvira de Maldonha lhe havia tirado o sono; estava elétrico demais para poder dormir, e, para piorar, o salame lhe havia dado uma azia tremenda. Sabia que não deveria comer coisas do tipo, pois sempre sentia essa queimação que estava sentindo.
Antes de se deitar, foi à cozinha; não estava aguentando aquele gosto de salame que a cada instante subia-lhe pela garganta em doses amargas. Sobre a geladeira estava guardado um sachê de antiácido. Pegou-o e despejou-o dentro de meio copo com água. Ficou à espera da completa dissolução, enquanto observava as bolhas formarem uma fina espuma que subia até quase a borda do copo. Em seguida, virou o líquido garganta abaixo em grandes goles. Resmungando, voltou para o quarto.
Maldonha desistiu de fumar o restante do cigarro que acabara de acender e apagou-o no cinzeiro, assim que Pedro voltou do banheiro e lhe cobrou a história.
— Bem, Pedro, vou falar de um rapaz — começou Maldonha, dando início à sua história, após beber um gole de vinho. — Ele morava somente com a mãe, pois o pai dele havia falecido fazia pouco tempo. Ele também tinha uma irmã, mas ela era casada. Era jovem, tinha vinte e três anos e gostava de farra. Quando a tristeza do luto pela morte do pai começou a se transformar em saudade, ele não parava um fim de semana sequer em casa pra fazer companhia à mãe, e ela não dormia por estar sempre pensando no pior. É estranho, as mães nunca se acostumam… Um filho pode aprontar mil vezes a mesma coisa, mas elas sempre ficam preocupadas. Compreender o coração de uma mãe é muito mais difícil do que podemos imaginar, Pedro.
Pedro consentiu com a cabeça, enquanto abria a lata de cerveja que acabara de ser posta sobre o balcão. A porção de salame, que pedira havia alguns instantes, chegou em seguida.
Maldonha prosseguiu:
— Não sei como podem existir histórias, como vemos por aí, de mães que abandonam seus filhos dias depois de eles terem nascido. Deve haver alguma força maligna que faça essas mulheres cometerem tais atrocidades…
Safadeza, pensou Pedro, essa é a força: safadeza! Trepam como cadelas no cio com seus machos, depois querem alegar insanidade mental.
—… como essas, mas isso não importa agora. Vamos falar do rapaz de quem eu estava falando. Numa dessas vezes, quando ele chegou em casa, teve uma discussão com a mãe. Ela só queria que ele não fizesse mais aquilo, mas por ser maior de idade, esse rapaz, que se chamava Henrique, achava que não devia satisfação; não dava a mínima pra aflição que a mãe sentia.
Maldonha parou de falar por um instante e, apesar de ter dito que não queria mais salame, pegou um palito e perguntou a Pedro se podia.
— Claro! — respondeu Pedro.
Maldonha espetou três fatias de uma só vez.
Pedro ficou em silêncio, enquanto esperava o velho mastigar e engolir as fatias de salame. Depois que as engoliu, Maldonha continuou:
— Apesar de tudo, Henrique era bom filho, Pedro. Agia daquela forma, mas não era uma má pessoa.
— Sei… — concordou Pedro, com ironia.
— Ao contrário de você, ele acreditava em Deus, mas a fé sem obra é morta; tão morta quanto uma fatia desse salame — apontou com o palito para a bandeja. — E não era bem fé o que ele sentia, sabe? Ele simplesmente acreditava e ponto. No seu caso, você não acredita, mas pelo que percebi, não gosta de falar sobre esse assunto.
— Não é questão de não gostar…
— Eu sei — interferiu Maldonha —, querer discutir religião gera brigas e nunca ninguém chega a um acordo. Religião não é pra ser discutida. Também não é uma coisa que tem que ser posta à força na cabeça de uma pessoa, ainda mais quando essa pessoa já é adulta.
— É, eu concordo.
— Conheça a verdade, e ela vos libertará — tornou a dizer o velho.
Nesse momento, Pedro lembrou-se de seu pai. Na verdade, o que lhe veio à cabeça foram imagens de uma discussão que tivera com ele por causa de religião semanas antes da morte dele.
— Bem, Pedro — continuou Maldonha, interrompendo os pensamentos de Pedro —, esse rapaz blasfemava, e a mãe dele lhe pedia que parasse, mas ele não lhe dava ouvidos. É por isso que eu digo: você, que não acredita em Deus, não se julga melhor do que as pessoas que acreditam e também não fica dizendo pra todo o mundo o que acha ou deixa de achar a respeito d’Ele. Não fica defendendo o fato de não acreditar, entendeu? Já algumas pessoas que dizem acreditar e amar a Deus acima de todas as coisas, não param de culpá-Lo por tudo que acontece de errado em suas vidas — fez uma pausa e sorriu com ironia. — Essas pessoas não passam de hipócritas, pois dizem que amam, mas amam apenas com os lábios, pois o coração delas está longe de Deus.
Maldonha pegou o maço de cigarros no bolso da camisa. Enquanto observava-o acender mais um, Pedro percebeu que ele não fumava apenas por vício, era também um hábito, pois acabara de vê-lo apagar um cigarro ainda inteiro havia poucos instantes.
— O que vou contar agora aconteceu mais ou menos onze horas da manhã — prosseguiu Maldonha —, quando Henrique e outros amigos saíram de carro, mas não chegaram ao destino; sofreram um acidente horrível e fatal. Nem um deles sobreviveu. O carro capotou várias vezes e só parou de se arrastar pelo asfalto depois que entrou debaixo de um caminhão.
Pedro admirou-se com tamanha proporção do acidente, mas estava confuso, não conseguia entender o que Maldonha queria dizer-lhe com tudo aquilo.
— O que isso tem a ver com blasfêmia?
Maldonha tragou, soprou a fumaça para o alto e respondeu:
— Você vai entender. Então, antes de sair com os amigos, Henrique havia ido ao mercado com a mãe. Quando Marta estava levando as últimas sacolas pra dentro…
— Marta era a mãe dele? — perguntou Pedro.
— Exatamente — esclareceu o velho. — Quando ela levava as sacolas com as compras pra dentro de casa, os amigos dele chegaram e entraram no carro. Quando Henrique ia dar a partida, a mãe voltou e ficou furiosa ao ver aqueles rapazes no carro, mas Henrique não quis saber. Ela ficou furiosa, pois o filho ia sair sem avisar; mesmo assim disse a seguinte frase: “Que o Espírito Santo os acompanhe!”.
Maldonha espetou mais uma fatia de salame.
— E então? — Pedro cobrou a continuidade.
— Eu não sei direito o que aconteceu — continuou o velho, de boca cheia. — O que sei é que nos destroços do carro, ou melhor, no porta-malas, foi encontrado um jogo de taças.
— E daí? — Pedro não via nenhum sentido.
— Nem uma das seis taças estava quebrada, Pedro. Nem sequer uma delas estava trincada.
— Como?! — Pedro estava incrédulo. — Como é possível, se você disse que o carro ficou completamente…
— É verdade, Pedro, as taças estavam inteiras. Intactas!
— Como tem tanta certeza disso?
— Eu fui ao velório e ao enterro de Henrique, e a mãe dele, que era uma velha conhecida minha, me contou tudo; até me mostrou as taças.
Pedro balançou a cabeça e riu. Nada fazia sentido e, apesar de achar normal uma pessoa ir ao enterro de outra, estranhou o fato de Maldonha ter ido ao velório e ao enterro desse rapaz. Na verdade, achava tudo muito fantasioso para ser verdade e, para causar mais estranheza ainda aos fatos, havia o detalhe de o jogo de taças estar intacto no porta-malas de um carro que foi destruído em um acidente de trânsito.
— E essa mulher, onde ela está agora? — perguntou Pedro, querendo mais informações.
— Isso aconteceu há muito tempo. Ela morreu algum tempo depois do filho. Na época, eu tive uma longa conversa com ela, no dia do velório. Foi ela quem me disse toda essa história. Disse que dias antes do acidente teve uma visão enquanto orava diante de um pequeno altar que havia em sua casa. Ela não compreendeu a mensagem de sua visão; disse que ouviu barulhos como se fosse uma batida de carro; ouviu vozes zombando às gargalhadas de algo. Ela me disse que teve outras visões, mas eu não me lembro direito pra poder contar pra você. Eram mensagens muito confusas, e ela não pôde compreender. No dia do acidente, ela havia feito uma compra com o filho e me disse que havia esquecido algo no porta-malas.
— Eram as taças? — perguntou Pedro, em tom de afirmação.
— Sim, eram, mas quando ela voltou pra pegar, o filho já estava de saída. Como já disse, ela ficou furiosa com ele, mas pediu que o Espírito Santo o acompanhasse. Henrique não deu muito ouvido ao que ela disse. Quando ele já estava um pouco distante, ela se lembrou das taças e gritou que havia esquecido algo no porta-malas. Sabe o que Henrique disse, Pedro?
— É claro que não! Como é que vou saber?! — exclamou Pedro num misto de curiosidade e irritação.
Maldonha tragou mais uma vez, prendeu por um instante a fumaça nos pulmões e soprou-a para o alto em seguida. Olhou sério para Pedro e continuou:
— Henrique parou o carro e pôs a cabeça pra fora, olhando pra trás. O carro estava um pouco distante de sua mãe, mas ela pôde ouvir com perfeição cada palavra que ele disse.
— O que ele disse?! — perguntou Pedro, olhando para Maldonha, que parou de falar para beber um pouco de vinho. A curiosidade envolvera-o de tal forma que as palavras de sua pergunta saíram quase num grito.
— Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas, porque aqui dentro do carro não cabe mais ninguém — disse Maldonha, voz calma, enquanto colocava o copo sobre o balcão. — Foi exatamente isso o que ele disse, e os amigos dele riram como se tivessem ouvido a melhor piada da vida deles. De onde estava, Marta pôde ouvir as gargalhadas, mas não era uma piada, e se tivesse sido, seria a última.
Um silêncio envolveu-os. Maldonha pegou mais uma fatia de salame, enquanto Pedro, pensativo, observava-o. Agora ele sabia o que Maldonha queria dizer com aquilo tudo.
O Espírito Santo estava no porta-malas, pensou Pedro, tentando pôr em ordem cada imagem que a cabeça desenhava. Era como se tentasse reconstruir nos pensamentos uma cena que não vira. Era chocante, era impressionante e, em meio às concepções dele, era um absurdo.
Não, eu não posso estar pensando nisso. Seis taças de vidro, e nem uma delas se quebrou?!
Seis taças
As taças estavam inteiras. Nem uma delas estava ao menos trincada. Pedro queria saber como isso era possível…
de vidro
… e não conseguia achar uma resposta que não fosse a proposta na história contada por Maldonha.
e nem uma quebrada
Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas do carro.
— Isso é loucura! — disse, olhos arregalados, enquanto tentava afastar qualquer pensamento que o deixasse cada vez mais atordoado.
— Não, não é — Maldonha estava calmo, tragou o cigarro e encarou Pedro por entre a nuvem deslizante de fumaça acinzentada que expeliu lentamente dos pulmões. E, embora a história fosse absurda, não havia traços de mentira em seu olhar. Segurava o cigarro entre os dedos indicador e médio da mão direita que estava sobre o balcão. Pedro olhava para a fina fumaça que subia do cigarro e serpenteava o ar até sumir em sua parte mais alta.
— Quem encontrou as taças? — perguntou Pedro, para retomar a conversa.
— Um dos bombeiros. Ele deve ter questionado tanto o ocorrido quanto você deve estar questionando agora, mas com uma única diferença: ele não sabia de toda a história.
— Quer dizer então que Deus castigou esse rapaz e os amigos dele?!
Maldonha não respondeu, apenas olhou para Pedro, que continuou:
— Que Deus misericordioso é esse que castiga…?!
— Pedro…? — interferiu Maldonha, voz branda, colocando a mão sobre o braço do outro como se quisesse pedir-lhe que parasse de falar, e Pedro parou. — Não foi Deus quem bateu o carro daqueles jovens. As pessoas são livres pra fazer o que elas quiserem da vida. Por que atribuir a Deus as consequências de nossos atos? Deus não é responsável por nossas irresponsabilidades. Escute e tente entender: nós fazemos julgo de nós mesmos. De uma forma ou de outra, somos responsáveis pelos nossos atos. Há um versículo na Bíblia, que não me lembro bem onde está… sei apenas que está, se não me engano, em Gálatas, que diz que com Deus não se brinca, que o que uma pessoa planta, ela também colherá. Deus é Vida, e é com essa Vida que não devemos brincar. Você nunca vai colher peras se plantar uma macieira, Pedro.
Pedro nada disse. Meneou a cabeça e bateu a mão no ombro de Maldonha, que percebeu que Pedro havia compreendido o que ele queria dizer.
Ficaram quietos. O velho bebeu o resto do vinho, pegou uma fatia de salame e colocou-a na boca, olhando para Pedro, que bebia a sua cerveja. Ficaram assim por longo tempo, como se Maldonha tivesse dito tudo o que queria dizer, e Pedro, perdido a fala, embora tivesse um rio de palavras para elaborar inúmeras perguntas. Sabia, entretanto, que para cada resposta que obtivesse, uma nova pergunta se formaria em sua cabeça.
Que o Espírito Santo o acompanhe!
Os minutos foram passando. Ambos ficaram em silêncio tempo suficiente para Pedro beber mais uma lata de cerveja, e Maldonha, outro copo de vinho, além de fumar mais um cigarro, que acendeu na guimba do anterior.
Seis taças inteiras Capotou várias vezes…, Pedro pensava sem parar.
E o silêncio se arrastou de gole em gole, de tragada em tragada e, por algumas vezes, com sabor de salame. Quando o último gole de cerveja molhou-lhe a garganta, Pedro pôs a mão direita no ombro de Maldonha, perguntando:
— Vai querer mais alguma coisa?
Maldonha bebeu o restante do vinho que estava no copo.
— Só um maço de cigarros — respondeu.
Pedro levantou-se e pegou a carteira; Maldonha também se levantou e, quando ia retirar o dinheiro do bolso, Pedro segurou-lhe a mão, dizendo:
— Pode deixar. Eu pago!
— De forma alguma! — Maldonha tentou relutar.
— Não insista — Pedro abriu a carteira e pegou o dinheiro. — Pode pedir o seu cigarro, eu pago!
— Por favor…
— Por favor, digo eu — depois olhou para o dono do bar. — Quanto deu aqui?
O dono do bar recebeu o dinheiro da mão de Pedro, que disse:
— Inclua também um maço de cigarros — olhou para Maldonha. — Que cigarro você fuma mesmo?
— Pall Mall, por favor! — respondeu o velho.
Pedro recebeu o troco, e Maldonha, o maço de cigarros. Depois saíram do bar lado a lado.
Caminharam por um tempo em silêncio. Muitas coisas passavam pela cabeça de Pedro. Mais uma vez, Maldonha o surpreendera, e, novamente, ele não sabia o que achar; sua cabeça era uma confusão; quando por alguns momentos pensava em mudar os seus conceitos sobre a existência de Deus, algo, que cultivava havia anos, rebatia tais pensamentos, dizendo-lhe que qualquer um poderia ter forjado aquele fato das taças, colocando-as no local do acidente.
Oh, mas é claro! Um dos bombeiros. Só pode ter sido um dos bombeiros. Não, é claro que não foi nenhum deles. Pra que a mãe do rapaz estaria mentindo? Mentindo! É isso! Maldonha está mentindo, e fim de papo. Maldonha é um mentiroso, um tremendo de um velho mentiroso.
— Se eu lhe disser algo — começou a falar Pedro —, você não vai se aborrecer?
— Por que me aborreceria?
Deram mais alguns passos e pararam em frente à rua que dava para casa de Maldonha.
— Você me contou essa história só pra me deixar impressionado, não foi? Ela não aconteceu de fato, não é mesmo?
Decepcionado, Maldonha balançou a cabeça para os lados. Pedro percebeu o que acabara de fazer e sentiu vergonha. Sentiu-se também ridículo, pois ninguém o estava obrigando a acreditar em nada. Bastava não acreditar e pronto. Por que levar o velho Maldonha tão a sério? No entanto, algo o confundia, como se necessitasse acreditar, o que, para ele, era excessivamente estranho.
— Bem, já está tarde — continuou Pedro, passando a mão direita no rosto, como se tentasse consertar o que acabara de dizer. — Qualquer dia desses, a gente sai de novo pra beber junto, certo?
Maldonha comprimiu os lábios e tornou a balançar a cabeça, dessa vez afirmativamente. Aproximou-se de Pedro e bateu-lhe a mão no ombro. Depois deu as costas e seguiu seu caminho. Pedro observou-o entrar na estreita e pouco iluminada rua sem saída; quando não pôde vê-lo mais, olhou para o relógio. Era tarde da noite, e Lívia deveria estar preocupada.
Pedro apressou os passos. Não estava bêbado. Aquelas poucas latas de cerveja não eram suficientes para tanto. Sentia apenas uma leve tonteira, mas se julgava sóbrio.
Enquanto caminhava, pensava em tudo o que Maldonha lhe havia dito.
Conheça a verdade, e ela vos libertará.
Logo adiante, a poucos metros, havia uma árvore. Lembrou-se do exemplo que o velho lhe havia dado sobre o livre-arbítrio. Quando chegou próximo da árvore, segurou um fino galho com a mão direita e continuou andando, puxando-o por sobre a cabeça até arrancá-lo.
Nenhuma folha cai de uma árvore sem que haja o consentimento de Deus.
Enquanto seguia rumo a casa, ia puxando as folhas uma a uma do pequeno galho que arrancara da árvore. Ao passar ao lado de um portão, um cachorro pulou contra as grades, latindo ferozmente. Pedro estava tão distraído que tomou um susto daqueles e pulou para o lado, pensando que o cachorro pudesse pegá-lo.
— Cachorro filho-da-puta!!! — gritou de forma instintiva. — Vá assustar a cadela da sua mãe!
Depois de gritar essas palavras, sorriu, sentindo o coração bater na boca.
— Au! Au! — fez ele, inclinado o corpo na direção do portão, tentando imitar o cachorro, um vira-lata de porte grande e, por sinal, muito bonito. — Au! Au! Grrr!
Depois continuou a andar, a passos lentos, enquanto ouvia o cachorro latir de modo enlouquecido.
— A cadela da sua mãe — repetiu para si mesmo, pensando como isso era sugestivo, já que se tratava de um cachorro. — A cadela da sua mãe — repetiu, e o sorriso se transformou numa gargalhada.
Quando estava próximo ao portão de casa, percebeu que do galho que segurava não restou folha. Arrancara todas. Jogou-o para trás, por sobre o ombro, antes de abrir o portão.
Ao abrir a porta de casa e entrar, viu Lívia sentada no sofá, lendo. Ela usava uma calça de moletom cinza-claro e uma camiseta azul. Gostava de usar essa camiseta quando estava em casa porque a achava confortável, mas nem sequer sairia ao quintal usando-a. Ela já havia passado da metade do livro que lia. Estava ansiosa para saber o desfecho, mas, mesmo estando envolvida pela leitura, marcou a página e fechou o livro.
Pedro trancou a porta, olhou para a filha e piscou-lhe um olho, e ela percebeu que ele estava um pouco ébrio.
— E a sua amiga?
Lívia largou o livro sobre o sofá e levantou-se.
— Faz tempo que foi embora.
— Eu demorei?
— Eu estava tão entretida na leitura que nem percebi a hora.
Pedro se aproximou da filha e beijou-lhe o rosto, orgulhoso.
— Teve alguma ideia pra começar a escrever seu livro?
— Não, não tive, mas por que a pergunta?
— Por nada — desconversou. Achou melhor não dizer que havia comentado com Maldonha que ela pretendia escrever um livro. — Eu vi você lendo e lembrei. Só isso.
Lívia sorriu e o abraçou.
— Adivinha quem me ligou — disse ela, exultante.
— Quem? 
— O Roberto!
— Roberto… Roberto… — Pedro tentava se recordar.
— O Roberto foi quem me deu aquele celular.
— Ah, sim! — exclamou ele, enquanto caminhava em direção ao sofá, no qual se sentou. — Pelo seu rostinho de felicidade, ele chamou você pra sair, não foi?
Lívia pegou o livro do sofá e sentou ao lado esquerdo do pai.
— Ele já havia me convidado algumas vezes. Na última, eu fiquei de ligar pra dar a resposta e acabei esquecendo. Foi no dia em que fomos ao cinema.
— Claro, claro! — disse Pedro, mudando a voz para fazer graça —, o Pedrão aqui é irresistível.
Lívia sorriu e bateu com o livro no braço do pai.
— Para de brincadeira, pai! — fez um instante de silêncio. — Tudo bem, eu confesso que fiquei tão feliz de sair com você que acabei esquecendo. O Roberto passou o dia ligando aqui pra casa…
— Coitado!
—… e não havia ninguém pra atender.
— Ele deve ter ficado muito chateado. Eu ficaria.
— Ficou mesmo — Lívia se mexeu no sofá e sentou-se sobre a perna direita para ficar quase de frente para o pai —, mas depois me deu um celular; assim ficará mais fácil pra ele falar comigo.
— Como é esse rapaz? — Pedro estava preocupado com a filha. Lembrava-se muito bem do último rapaz que ela namorou.
— Ele é um colega de turma na faculdade. É legal. É bonito!
Pedro pôs a mão direita no rosto da filha. Os olhos dela brilhavam ao falar do rapaz.
— Cuidado pra não se machucar, meu bem — disse ele, em tom carinhoso. Estava realmente preocupado, mas reconhecia que a filha sabia se cuidar.
Lívia beijou o rosto do pai e ficou olhando-o por alguns segundos. Depois, dizendo que o amava muito, abraçou-o com muita força.
— Eu também amo você — secundou ele, sentindo uma inexplicável sensação de perda no peito.
Após o abraço, Pedro levantou-se e subiu para tomar banho. Lívia voltou à leitura, louca para terminar logo de ler o livro.
Pedro passou tanto tempo no banho que Lívia não estava mais na sala quando ele saiu do banheiro. Depois de tirar o roupão, ele vestiu apenas uma bermuda e ficou sem camiseta. Com os cabelos ainda molhados e despenteados, foi ao quarto da filha. A porta estava apenas encostada, e a luz, acesa; Lívia dormia. Adormecera com o livro aberto sobre o peito. Pedro pegou-o com cuidado, olhou o título, Contágio Criminoso, e com um marcador de páginas com um desenho das Meninas Superpoderosas, que estava sobre a cabeceira da cama, marcou a página, fechou o livro e colocou-o sobre o criado-mudo ao lado. Contemplou por um instante a filha e lembrou-se de quando ela era pequena, e ele contava-lhe histórias infantis para dormir, que nada se assemelhavam com O Cemitério ou O Iluminado, obras de Stephen King, que ela lera recentemente.
A Valsa. As taças de vidro, foi o que ocorreu na cabeça de Pedro, enquanto colocava um lençol sobre a filha. Depois se afastou, apagou a luz, saiu e encostou a porta devagar para não fazer barulho. Novamente uma sensação de perda apertou-lhe o peito e um calafrio envolveu-lhe o corpo.
O que está acontecendo com você, Pedro? O quê?
Em meio ao pensamento, foi para o quarto, caminhou para o banheiro, no qual acabara de tomar banho, pegou a toalha e secou os cabelos. Enquanto olhava para o espelho, tentava organizar os pensamentos. Tudo o que ouvira de Maldonha lhe havia tirado o sono; estava elétrico demais para poder dormir, e, para piorar, o salame lhe havia dado uma azia tremenda. Sabia que não deveria comer coisas do tipo, pois sempre sentia essa queimação que estava sentindo.
Antes de se deitar, foi à cozinha; não estava aguentando aquele gosto de salame que a cada instante subia-lhe pela garganta em doses amargas. Sobre a geladeira estava guardado um sachê de antiácido. Pegou-o e despejou-o dentro de meio copo com água. Ficou à espera da completa dissolução, enquanto observava as bolhas formarem uma fina espuma que subia até quase a borda do copo. Em seguida, virou o líquido garganta abaixo em grandes goles. Resmungando, voltou para o quarto. 
Maldonha desistiu de fumar o restante do cigarro que acabara de acender e apagou-o no cinzeiro, assim que Pedro voltou do banheiro e lhe cobrou a história.
— Bem, Pedro, vou falar de um rapaz — começou Maldonha, dando início à sua história, após beber um gole de vinho. — Ele morava somente com a mãe, pois o pai dele havia falecido fazia pouco tempo. Ele também tinha uma irmã, mas ela era casada. Era jovem, tinha vinte e três anos e gostava de farra. Quando a tristeza do luto pela morte do pai começou a se transformar em saudade, ele não parava um fim de semana sequer em casa pra fazer companhia à mãe, e ela não dormia por estar sempre pensando no pior. É estranho, as mães nunca se acostumam… Um filho pode aprontar mil vezes a mesma coisa, mas elas sempre ficam preocupadas. Compreender o coração de uma mãe é muito mais difícil do que podemos imaginar, Pedro.
Pedro consentiu com a cabeça, enquanto abria a lata de cerveja que acabara de ser posta sobre o balcão. A porção de salame, que pedira havia alguns instantes, chegou em seguida.
Maldonha prosseguiu:
— Não sei como podem existir histórias, como vemos por aí, de mães que abandonam seus filhos dias depois de eles terem nascido. Deve haver alguma força maligna que faça essas mulheres cometerem tais atrocidades…
Safadeza, pensou Pedro, essa é a força: safadeza! Trepam como cadelas no cio com seus machos, depois querem alegar insanidade mental.
—… como essas, mas isso não importa agora. Vamos falar do rapaz de quem eu estava falando. Numa dessas vezes, quando ele chegou em casa, teve uma discussão com a mãe. Ela só queria que ele não fizesse mais aquilo, mas por ser maior de idade, esse rapaz, que se chamava Henrique, achava que não devia satisfação; não dava a mínima pra aflição que a mãe sentia.
Maldonha parou de falar por um instante e, apesar de ter dito que não queria mais salame, pegou um palito e perguntou a Pedro se podia.
— Claro! — respondeu Pedro.
Maldonha espetou três fatias de uma só vez.
Pedro ficou em silêncio, enquanto esperava o velho mastigar e engolir as fatias de salame. Depois que as engoliu, Maldonha continuou:
— Apesar de tudo, Henrique era bom filho, Pedro. Agia daquela forma, mas não era uma má pessoa.
— Sei… — concordou Pedro, com ironia.
— Ao contrário de você, ele acreditava em Deus, mas a fé sem obra é morta; tão morta quanto uma fatia desse salame — apontou com o palito para a bandeja. — E não era bem fé o que ele sentia, sabe? Ele simplesmente acreditava e ponto. No seu caso, você não acredita, mas pelo que percebi, não gosta de falar sobre esse assunto.
— Não é questão de não gostar…
— Eu sei — interferiu Maldonha —, querer discutir religião gera brigas e nunca ninguém chega a um acordo. Religião não é pra ser discutida. Também não é uma coisa que tem que ser posta à força na cabeça de uma pessoa, ainda mais quando essa pessoa já é adulta.
— É, eu concordo.
— Conheça a verdade, e ela vos libertará — tornou a dizer o velho.
Nesse momento, Pedro lembrou-se de seu pai. Na verdade, o que lhe veio à cabeça foram imagens de uma discussão que tivera com ele por causa de religião semanas antes da morte dele.
— Bem, Pedro — continuou Maldonha, interrompendo os pensamentos de Pedro —, esse rapaz blasfemava, e a mãe dele lhe pedia que parasse, mas ele não lhe dava ouvidos. É por isso que eu digo: você, que não acredita em Deus, não se julga melhor do que as pessoas que acreditam e também não fica dizendo pra todo o mundo o que acha ou deixa de achar a respeito d’Ele. Não fica defendendo o fato de não acreditar, entendeu? Já algumas pessoas que dizem acreditar e amar a Deus acima de todas as coisas, não param de culpá-Lo por tudo que acontece de errado em suas vidas — fez uma pausa e sorriu com ironia. — Essas pessoas não passam de hipócritas, pois dizem que amam, mas amam apenas com os lábios, pois o coração delas está longe de Deus.
Maldonha pegou o maço de cigarros no bolso da camisa. Enquanto observava-o acender mais um, Pedro percebeu que ele não fumava apenas por vício, era também um hábito, pois acabara de vê-lo apagar um cigarro ainda inteiro havia poucos instantes.
— O que vou contar agora aconteceu mais ou menos onze horas da manhã — prosseguiu Maldonha —, quando Henrique e outros amigos saíram de carro, mas não chegaram ao destino; sofreram um acidente horrível e fatal. Nem um deles sobreviveu. O carro capotou várias vezes e só parou de se arrastar pelo asfalto depois que entrou debaixo de um caminhão.
Pedro admirou-se com tamanha proporção do acidente, mas estava confuso, não conseguia entender o que Maldonha queria dizer-lhe com tudo aquilo.
— O que isso tem a ver com blasfêmia?
Maldonha tragou, soprou a fumaça para o alto e respondeu:
— Você vai entender. Então, antes de sair com os amigos, Henrique havia ido ao mercado com a mãe. Quando Marta estava levando as últimas sacolas pra dentro…
— Marta era a mãe dele? — perguntou Pedro.
— Exatamente — esclareceu o velho. — Quando ela levava as sacolas com as compras pra dentro de casa, os amigos dele chegaram e entraram no carro. Quando Henrique ia dar a partida, a mãe voltou e ficou furiosa ao ver aqueles rapazes no carro, mas Henrique não quis saber. Ela ficou furiosa, pois o filho ia sair sem avisar; mesmo assim disse a seguinte frase: “Que o Espírito Santo os acompanhe!”.
Maldonha espetou mais uma fatia de salame.
— E então? — Pedro cobrou a continuidade.
— Eu não sei direito o que aconteceu — continuou o velho, de boca cheia. — O que sei é que nos destroços do carro, ou melhor, no porta-malas, foi encontrado um jogo de taças.
— E daí? — Pedro não via nenhum sentido.
— Nem uma das seis taças estava quebrada, Pedro. Nem sequer uma delas estava trincada.
— Como?! — Pedro estava incrédulo. — Como é possível, se você disse que o carro ficou completamente…
— É verdade, Pedro, as taças estavam inteiras. Intactas!
— Como tem tanta certeza disso?
— Eu fui ao velório e ao enterro de Henrique, e a mãe dele, que era uma velha conhecida minha, me contou tudo; até me mostrou as taças.
Pedro balançou a cabeça e riu. Nada fazia sentido e, apesar de achar normal uma pessoa ir ao enterro de outra, estranhou o fato de Maldonha ter ido ao velório e ao enterro desse rapaz. Na verdade, achava tudo muito fantasioso para ser verdade e, para causar mais estranheza ainda aos fatos, havia o detalhe de o jogo de taças estar intacto no porta-malas de um carro que foi destruído em um acidente de trânsito.
— E essa mulher, onde ela está agora? — perguntou Pedro, querendo mais informações.
— Isso aconteceu há muito tempo. Ela morreu algum tempo depois do filho. Na época, eu tive uma longa conversa com ela, no dia do velório. Foi ela quem me disse toda essa história. Disse que dias antes do acidente teve uma visão enquanto orava diante de um pequeno altar que havia em sua casa. Ela não compreendeu a mensagem de sua visão; disse que ouviu barulhos como se fosse uma batida de carro; ouviu vozes zombando às gargalhadas de algo. Ela me disse que teve outras visões, mas eu não me lembro direito pra poder contar pra você. Eram mensagens muito confusas, e ela não pôde compreender. No dia do acidente, ela havia feito uma compra com o filho e me disse que havia esquecido algo no porta-malas.
— Eram as taças? — perguntou Pedro, em tom de afirmação.
— Sim, eram, mas quando ela voltou pra pegar, o filho já estava de saída. Como já disse, ela ficou furiosa com ele, mas pediu que o Espírito Santo o acompanhasse. Henrique não deu muito ouvido ao que ela disse. Quando ele já estava um pouco distante, ela se lembrou das taças e gritou que havia esquecido algo no porta-malas. Sabe o que Henrique disse, Pedro?
— É claro que não! Como é que vou saber?! — exclamou Pedro num misto de curiosidade e irritação.
Maldonha tragou mais uma vez, prendeu por um instante a fumaça nos pulmões e soprou-a para o alto em seguida. Olhou sério para Pedro e continuou:
— Henrique parou o carro e pôs a cabeça pra fora, olhando pra trás. O carro estava um pouco distante de sua mãe, mas ela pôde ouvir com perfeição cada palavra que ele disse.
— O que ele disse?! — perguntou Pedro, olhando para Maldonha, que parou de falar para beber um pouco de vinho. A curiosidade envolvera-o de tal forma que as palavras de sua pergunta saíram quase num grito.
— Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas, porque aqui dentro do carro não cabe mais ninguém — disse Maldonha, voz calma, enquanto colocava o copo sobre o balcão. — Foi exatamente isso o que ele disse, e os amigos dele riram como se tivessem ouvido a melhor piada da vida deles. De onde estava, Marta pôde ouvir as gargalhadas, mas não era uma piada, e se tivesse sido, seria a última.
Um silêncio envolveu-os. Maldonha pegou mais uma fatia de salame, enquanto Pedro, pensativo, observava-o. Agora ele sabia o que Maldonha queria dizer com aquilo tudo.
O Espírito Santo estava no porta-malas, pensou Pedro, tentando pôr em ordem cada imagem que a cabeça desenhava. Era como se tentasse reconstruir nos pensamentos uma cena que não vira. Era chocante, era impressionante e, em meio às concepções dele, era um absurdo.
Não, eu não posso estar pensando nisso. Seis taças de vidro, e nem uma delas se quebrou?!
Seis taças
As taças estavam inteiras. Nem uma delas estava ao menos trincada. Pedro queria saber como isso era possível…
de vidro
… e não conseguia achar uma resposta que não fosse a proposta na história contada por Maldonha.
e nem uma quebrada
Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas do carro.
— Isso é loucura! — disse, olhos arregalados, enquanto tentava afastar qualquer pensamento que o deixasse cada vez mais atordoado.
— Não, não é — Maldonha estava calmo, tragou o cigarro e encarou Pedro por entre a nuvem deslizante de fumaça acinzentada que expeliu lentamente dos pulmões. E, embora a história fosse absurda, não havia traços de mentira em seu olhar. Segurava o cigarro entre os dedos indicador e médio da mão direita que estava sobre o balcão. Pedro olhava para a fina fumaça que subia do cigarro e serpenteava o ar até sumir em sua parte mais alta.
— Quem encontrou as taças? — perguntou Pedro, para retomar a conversa.
— Um dos bombeiros. Ele deve ter questionado tanto o ocorrido quanto você deve estar questionando agora, mas com uma única diferença: ele não sabia de toda a história.
— Quer dizer então que Deus castigou esse rapaz e os amigos dele?!
Maldonha não respondeu, apenas olhou para Pedro, que continuou:
— Que Deus misericordioso é esse que castiga…?!
— Pedro…? — interferiu Maldonha, voz branda, colocando a mão sobre o braço do outro como se quisesse pedir-lhe que parasse de falar, e Pedro parou. — Não foi Deus quem bateu o carro daqueles jovens. As pessoas são livres pra fazer o que elas quiserem da vida. Por que atribuir a Deus as consequências de nossos atos? Deus não é responsável por nossas irresponsabilidades. Escute e tente entender: nós fazemos julgo de nós mesmos. De uma forma ou de outra, somos responsáveis pelos nossos atos. Há um versículo na Bíblia, que não me lembro bem onde está… sei apenas que está, se não me engano, em Gálatas, que diz que com Deus não se brinca, que o que uma pessoa planta, ela também colherá. Deus é Vida, e é com essa Vida que não devemos brincar. Você nunca vai colher peras se plantar uma macieira, Pedro.
Pedro nada disse. Meneou a cabeça e bateu a mão no ombro de Maldonha, que percebeu que Pedro havia compreendido o que ele queria dizer.
Ficaram quietos. O velho bebeu o resto do vinho, pegou uma fatia de salame e colocou-a na boca, olhando para Pedro, que bebia a sua cerveja. Ficaram assim por longo tempo, como se Maldonha tivesse dito tudo o que queria dizer, e Pedro, perdido a fala, embora tivesse um rio de palavras para elaborar inúmeras perguntas. Sabia, entretanto, que para cada resposta que obtivesse, uma nova pergunta se formaria em sua cabeça.
Que o Espírito Santo o acompanhe!
Os minutos foram passando. Ambos ficaram em silêncio tempo suficiente para Pedro beber mais uma lata de cerveja, e Maldonha, outro copo de vinho, além de fumar mais um cigarro, que acendeu na guimba do anterior.
Seis taças inteiras Capotou várias vezes…, Pedro pensava sem parar.
E o silêncio se arrastou de gole em gole, de tragada em tragada e, por algumas vezes, com sabor de salame. Quando o último gole de cerveja molhou-lhe a garganta, Pedro pôs a mão direita no ombro de Maldonha, perguntando:
— Vai querer mais alguma coisa?
Maldonha bebeu o restante do vinho que estava no copo.
— Só um maço de cigarros — respondeu.
Pedro levantou-se e pegou a carteira; Maldonha também se levantou e, quando ia retirar o dinheiro do bolso, Pedro segurou-lhe a mão, dizendo:
— Pode deixar. Eu pago!
— De forma alguma! — Maldonha tentou relutar.
— Não insista — Pedro abriu a carteira e pegou o dinheiro. — Pode pedir o seu cigarro, eu pago!
— Por favor…
— Por favor, digo eu — depois olhou para o dono do bar. — Quanto deu aqui?
O dono do bar recebeu o dinheiro da mão de Pedro, que disse:
— Inclua também um maço de cigarros — olhou para Maldonha. — Que cigarro você fuma mesmo?
— Pall Mall, por favor! — respondeu o velho.
Pedro recebeu o troco, e Maldonha, o maço de cigarros. Depois saíram do bar lado a lado.
Caminharam por um tempo em silêncio. Muitas coisas passavam pela cabeça de Pedro. Mais uma vez, Maldonha o surpreendera, e, novamente, ele não sabia o que achar; sua cabeça era uma confusão; quando por alguns momentos pensava em mudar os seus conceitos sobre a existência de Deus, algo, que cultivava havia anos, rebatia tais pensamentos, dizendo-lhe que qualquer um poderia ter forjado aquele fato das taças, colocando-as no local do acidente.
Oh, mas é claro! Um dos bombeiros. Só pode ter sido um dos bombeiros. Não, é claro que não foi nenhum deles. Pra que a mãe do rapaz estaria mentindo? Mentindo! É isso! Maldonha está mentindo, e fim de papo. Maldonha é um mentiroso, um tremendo de um velho mentiroso.
— Se eu lhe disser algo — começou a falar Pedro —, você não vai se aborrecer?
— Por que me aborreceria?
Deram mais alguns passos e pararam em frente à rua que dava para casa de Maldonha.
— Você me contou essa história só pra me deixar impressionado, não foi? Ela não aconteceu de fato, não é mesmo?
Decepcionado, Maldonha balançou a cabeça para os lados. Pedro percebeu o que acabara de fazer e sentiu vergonha. Sentiu-se também ridículo, pois ninguém o estava obrigando a acreditar em nada. Bastava não acreditar e pronto. Por que levar o velho Maldonha tão a sério? No entanto, algo o confundia, como se necessitasse acreditar, o que, para ele, era excessivamente estranho.
— Bem, já está tarde — continuou Pedro, passando a mão direita no rosto, como se tentasse consertar o que acabara de dizer. — Qualquer dia desses, a gente sai de novo pra beber junto, certo?
Maldonha comprimiu os lábios e tornou a balançar a cabeça, dessa vez afirmativamente. Aproximou-se de Pedro e bateu-lhe a mão no ombro. Depois deu as costas e seguiu seu caminho. Pedro observou-o entrar na estreita e pouco iluminada rua sem saída; quando não pôde vê-lo mais, olhou para o relógio. Era tarde da noite, e Lívia deveria estar preocupada.
Pedro apressou os passos. Não estava bêbado. Aquelas poucas latas de cerveja não eram suficientes para tanto. Sentia apenas uma leve tonteira, mas se julgava sóbrio.
Enquanto caminhava, pensava em tudo o que Maldonha lhe havia dito.
Conheça a verdade, e ela vos libertará.
Logo adiante, a poucos metros, havia uma árvore. Lembrou-se do exemplo que o velho lhe havia dado sobre o livre-arbítrio. Quando chegou próximo da árvore, segurou um fino galho com a mão direita e continuou andando, puxando-o por sobre a cabeça até arrancá-lo.
Nenhuma folha cai de uma árvore sem que haja o consentimento de Deus.
Enquanto seguia rumo a casa, ia puxando as folhas uma a uma do pequeno galho que arrancara da árvore. Ao passar ao lado de um portão, um cachorro pulou contra as grades, latindo ferozmente. Pedro estava tão distraído que tomou um susto daqueles e pulou para o lado, pensando que o cachorro pudesse pegá-lo.
— Cachorro filho-da-puta!!! — gritou de forma instintiva. — Vá assustar a cadela da sua mãe!
Depois de gritar essas palavras, sorriu, sentindo o coração bater na boca.
— Au! Au! — fez ele, inclinado o corpo na direção do portão, tentando imitar o cachorro, um vira-lata de porte grande e, por sinal, muito bonito. — Au! Au! Grrr!
Depois continuou a andar, a passos lentos, enquanto ouvia o cachorro latir de modo enlouquecido.
— A cadela da sua mãe — repetiu para si mesmo, pensando como isso era sugestivo, já que se tratava de um cachorro. — A cadela da sua mãe — repetiu, e o sorriso se transformou numa gargalhada.
Quando estava próximo ao portão de casa, percebeu que do galho que segurava não restou folha. Arrancara todas. Jogou-o para trás, por sobre o ombro, antes de abrir o portão.
Ao abrir a porta de casa e entrar, viu Lívia sentada no sofá, lendo. Ela usava uma calça de moletom cinza-claro e uma camiseta azul. Gostava de usar essa camiseta quando estava em casa porque a achava confortável, mas nem sequer sairia ao quintal usando-a. Ela já havia passado da metade do livro que lia. Estava ansiosa para saber o desfecho, mas, mesmo estando envolvida pela leitura, marcou a página e fechou o livro.
Pedro trancou a porta, olhou para a filha e piscou-lhe um olho, e ela percebeu que ele estava um pouco ébrio.
— E a sua amiga?
Lívia largou o livro sobre o sofá e levantou-se.
— Faz tempo que foi embora.
— Eu demorei?
— Eu estava tão entretida na leitura que nem percebi a hora.
Pedro se aproximou da filha e beijou-lhe o rosto, orgulhoso.
— Teve alguma ideia pra começar a escrever seu livro?
— Não, não tive, mas por que a pergunta?
— Por nada — desconversou. Achou melhor não dizer que havia comentado com Maldonha que ela pretendia escrever um livro. — Eu vi você lendo e lembrei. Só isso.
Lívia sorriu e o abraçou.
— Adivinha quem me ligou — disse ela, exultante.
— Quem? 
— O Roberto!
— Roberto… Roberto… — Pedro tentava se recordar.
— O Roberto foi quem me deu aquele celular.
— Ah, sim! — exclamou ele, enquanto caminhava em direção ao sofá, no qual se sentou. — Pelo seu rostinho de felicidade, ele chamou você pra sair, não foi?
Lívia pegou o livro do sofá e sentou ao lado esquerdo do pai.
— Ele já havia me convidado algumas vezes. Na última, eu fiquei de ligar pra dar a resposta e acabei esquecendo. Foi no dia em que fomos ao cinema.
— Claro, claro! — disse Pedro, mudando a voz para fazer graça —, o Pedrão aqui é irresistível.
Lívia sorriu e bateu com o livro no braço do pai.
— Para de brincadeira, pai! — fez um instante de silêncio. — Tudo bem, eu confesso que fiquei tão feliz de sair com você que acabei esquecendo. O Roberto passou o dia ligando aqui pra casa…
— Coitado!
—… e não havia ninguém pra atender.
— Ele deve ter ficado muito chateado. Eu ficaria.
— Ficou mesmo — Lívia se mexeu no sofá e sentou-se sobre a perna direita para ficar quase de frente para o pai —, mas depois me deu um celular; assim ficará mais fácil pra ele falar comigo.
— Como é esse rapaz? — Pedro estava preocupado com a filha. Lembrava-se muito bem do último rapaz que ela namorou.
— Ele é um colega de turma na faculdade. É legal. É bonito!
Pedro pôs a mão direita no rosto da filha. Os olhos dela brilhavam ao falar do rapaz.
— Cuidado pra não se machucar, meu bem — disse ele, em tom carinhoso. Estava realmente preocupado, mas reconhecia que a filha sabia se cuidar.
Lívia beijou o rosto do pai e ficou olhando-o por alguns segundos. Depois, dizendo que o amava muito, abraçou-o com muita força.
— Eu também amo você — secundou ele, sentindo uma inexplicável sensação de perda no peito.
Após o abraço, Pedro levantou-se e subiu para tomar banho. Lívia voltou à leitura, louca para terminar logo de ler o livro.
Pedro passou tanto tempo no banho que Lívia não estava mais na sala quando ele saiu do banheiro. Depois de tirar o roupão, ele vestiu apenas uma bermuda e ficou sem camiseta. Com os cabelos ainda molhados e despenteados, foi ao quarto da filha. A porta estava apenas encostada, e a luz, acesa; Lívia dormia. Adormecera com o livro aberto sobre o peito. Pedro pegou-o com cuidado, olhou o título, Contágio Criminoso, e com um marcador de páginas com um desenho das Meninas Superpoderosas, que estava sobre a cabeceira da cama, marcou a página, fechou o livro e colocou-o sobre o criado-mudo ao lado. Contemplou por um instante a filha e lembrou-se de quando ela era pequena, e ele contava-lhe histórias infantis para dormir, que nada se assemelhavam com O Cemitério ou O Iluminado, obras de Stephen King, que ela lera recentemente.
A Valsa. As taças de vidro, foi o que ocorreu na cabeça de Pedro, enquanto colocava um lençol sobre a filha. Depois se afastou, apagou a luz, saiu e encostou a porta devagar para não fazer barulho. Novamente uma sensação de perda apertou-lhe o peito e um calafrio envolveu-lhe o corpo.
O que está acontecendo com você, Pedro? O quê?
Em meio ao pensamento, foi para o quarto, caminhou para o banheiro, no qual acabara de tomar banho, pegou a toalha e secou os cabelos. Enquanto olhava para o espelho, tentava organizar os pensamentos. Tudo o que ouvira de Maldonha lhe havia tirado o sono; estava elétrico demais para poder dormir, e, para piorar, o salame lhe havia dado uma azia tremenda. Sabia que não deveria comer coisas do tipo, pois sempre sentia essa queimação que estava sentindo.
Antes de se deitar, foi à cozinha; não estava aguentando aquele gosto de salame que a cada instante subia-lhe pela garganta em doses amargas. Sobre a geladeira estava guardado um sachê de antiácido. Pegou-o e despejou-o dentro de meio copo com água. Ficou à espera da completa dissolução, enquanto observava as bolhas formarem uma fina espuma que subia até quase a borda do copo. Em seguida, virou o líquido garganta abaixo em grandes goles. Resmungando, voltou para o quarto.
Enquanto subia a escada, limpou os lábios com a mão.
No quarto, deitou-se e manteve apenas o abajur ligado à sua esquerda. Talvez, se tivesse bebido um pouco mais, pudesse dormir sem ter de ficar pensando no que Maldonha lhe dissera. Sua mente remexia nas duas histórias que ouviu dele no Texas e nas coisas que lhe disse quando estavam sozinhos. Pensava e virava de um lado para outro, sonolento. Já a caminho do inconsciente, a voz do velho era um ruído em sua mente. Suposições sem nexo passavam-lhe pela cabeça uma após a outra, já desbotadas, quase sem foco, em meio ao sono que o fazia cochilar. Dormiu outra vez com a luz do abajur acesa. Foi um sono ininterrupto e sem sonhos.


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