No dia seguinte, antes do almoço, Lívia havia pegado
no telefone várias vezes. Pedro já tinha notado a impaciência da filha, ainda
mais quando ela deixou o arroz queimar, o que não costumava deixar acontecer.
Sem conseguir tirar Roberto dos pensamentos um único instante, ela estava muito
distraída.
Preciso falar com ele, nem que seja pra pedir desculpas
novamente, pensava ela
cada vez que se aproximava do telefone, mas, antes mesmo de discar os três
primeiros números do celular do rapaz, desistia. Na noite anterior, dormir havia
sido um sacrifício, pois só pensava nele e no que poderia dizer, mas as opções criadas
por sua mente eram tantas que nem saberia como começar.
Após o almoço, ela tomou
banho, trocou de roupa e disse ao pai que iria sair.
— Vou dar uma volta, mas
não demoro.
— Precisa de dinheiro? —
perguntou Pedro.
— Não. Não precisa, pai.
Obrigada.
Sem destino, Lívia queria
apenas caminhar, espairecer um pouco e pensar em Roberto, já que não tivera
coragem de ligar para ele. Depois de alguns minutos de caminhada a esmo, viu-se
diante da casa de Ana Paula, uma amiga da época de colégio.
Apesar de morarem no
mesmo bairro, havia tempos não pararam para conversar. Apenas se falavam quando,
por acaso, encontravam-se no mercado ou na fila da padaria, mas não trocavam
mais do que três ou quatro frases de cumprimentos.
Parou diante do portão,
pensando que, talvez, precisasse de alguém para desabafar, pedir conselhos,
trocar confidências e, ao passar próximo à casa da amiga, sentiu algo estranho,
uma lembrança saudosa dos velhos tempos, que foi impossível seguir adiante. Depois
de um instante de hesitação, resolveu apertar a campainha e, em poucos minutos,
viu Ana Paula se aproximar.
— Que surpresa, Lívia! —
exclamou Ana Paula, sorrindo.
Assim que Ana Paula abriu
o portão, abraçaram-se e logo entraram. Ao ver os pais da amiga na sala, Lívia
os cumprimentou. Conversaram um pouco e, depois, em voz baixa, Ana sugeriu à Lívia:
— Vamos subir para o meu
quarto? Lá a gente fica mais à vontade.
Lívia assentiu com a
cabeça e, após pedir licença aos pais de Ana Paula, acompanhou a amiga.
— Estou morta de
curiosidade pra saber as novidades — disse Ana Paula, enquanto subiam a escada
em direção ao quarto.
Lívia sorriu.
No quarto, conversaram muito,
e o tempo passou depressa, como se cada minuto tivesse apenas um quarto dos
segundos que lhe são de direito.
—
Conheci um rapaz na faculdade — comentou Lívia certa hora.
— Sério? Você está
ficando com ele?
Lívia torceu a boca para
o lado e franziu a testa.
— Ih, logo vejo que há
algo errado — deduziu Ana Paula.
— Não. Não tem nada de
errado. É que ele acabou de terminar um namoro e…
— A ex dele fica no pé? Ou
é ele quem ainda fica atrás dela?
— Ela é quem fica atrás
dele. Quero dizer, acho que é… Pelo menos, é o que ele diz.
— Menos mal, sua boba!
— Sei lá, eu sempre me
dou mal…
— Ainda se lembra daquele
sacana, Lívia? — indignou-se Ana Paula. — Isso já faz tempo e…
— Verdade. Mas não quero
falar mais dele. O Marcelo é passado. E você, está ficando com alguém?
— Não. O último rapaz com
quem saí era um colega do cursinho pré-vestibular que eu estava fazendo, mas
não deu certo, porque ele era um tremendo mulherengo.
— Que pena! — exclamou
Lívia, lembrando-se, por um instante, de sua experiência com Marcelo.
— Mas já passou, deixa
pra lá.
— Mas me conta, pretende
prestar vestibular pra que curso? — perguntou Lívia, curiosa.
— Psicologia.
— Que bom! — disse Lívia,
sorrindo. — Assim eu terei a minha psicóloga particular.
Ana Paula também sorriu.
— Quer dizer que eu nem
comecei o curso e já tenho uma paciente?
— E olha que eu não sou
normal, não, hein? — gracejou Lívia. — Vou acabar enlouquecendo você.
— Então você será tema do
meu TCC.
Ambas riram alegres.
— Eu preciso ir, meu pai
deve estar preocupado — disse Lívia em seguida.
— Fica um pouco mais.
Janta com a gente. Liga para o seu pai pra avisar.
Lívia levantou-se.
— Fica pra próxima, eu
prometo.
—Tá bom então — concordou
Ana Paula, levantando-se também.
Desceram a escada rumo à
sala. Lívia despediu-se dos pais de Ana Paula e, acompanhada pela amiga, seguiu
para a porta de saída da casa.
Já próximas ao portão,
abraçaram-se.
— Venha mais vezes —
convidou Ana Paula. — Eu já havia esquecido como é bom ter a sua companhia.
— Agora é você quem me
deve uma visita — Lívia sorriu e já havia virado as costas quando se lembrou de
algo e voltou. — Me passa o seu facebook.
Ana Paula fez um sinal
com a mão para que Lívia esperasse um instante e correu para dentro de casa.
Depois de alguns minutos, voltou com o celular na mão.
— Anota meu celular
também — pediu ela, e Lívia riu. — Do que tá rindo?
— Eu estou sem celular.
Deixei cair na privada do banheiro da faculdade, acredita?
— Não! — exclamou Ana
Paula, rindo. — Eu não acredito!
— Para de rir de mim —
pediu Lívia, rindo também.
— Ai, Lívia, como pode
isso?
— Fui motivo de piada das
meninas na faculdade durante uma semana.
Caíram ambas numa
gargalhada intensa.
— Ai, Lívia, só você
mesmo!
— Marca o telefone da
minha casa e me procura no face aí —
Lívia aproximou-se da amiga para juntas olharem no celular.
Após Ana Paula anotar as
informações, Lívia afastou-se um pouco e colocou as mãos nos bolsos detrás da
minissaia jeans.
— Quando eu chegar em
casa — disse —, aceito seu convite no face.
— Só não vá esquecer,
hein?
— Não vou, não —
aproximou-se de Ana Paula e deu-lhe um beijo no rosto. — Pode deixar — concluiu
e riu mais uma vez junto com a amiga antes de dar as costas, murmurando um
tchau quase inaudível, enquanto caminhava. Ana Paula acenou com a mão para ela.
No caminho de volta,
Lívia ainda passou em uma doçaria, pediu um sorvete de flocos e foi para casa. Ela
havia esquecido como era bom estar com Ana Paula. Embora tenham conversado
bastante, ainda ficaram assuntos pendentes, pois esse tempo de conversa não era
o suficiente para colocá-los em
dia. Elas, além de comentarem as novidades, relembraram fatos
antigos, quase desbotados na memória de ambas, mas que voltaram à tona e as
fizeram dar boas risadas.
Minutos depois, Lívia cruzou
a porta da sala de casa.
— Eu já estava ficando
preocupado — reclamou Pedro, voz branda, mas firme.
Lívia sorriu, e isso
desarmou o pai.
— Que carinha de
felicidade é essa? — Pedro notou que a filha estava diferente, mais radiante e
feliz.
— Eu fui na casa da Ana —
explicou ela. — Lembra dela?
— Lembro sim. Mas deveria
ter me telefonado, não é?
— A conversa estava tão
boa, tão descontraída, que me esqueci da hora. Havia tempo não me divertia
tanto sem ter de ir muito longe.
Pedro meneou a cabeça.
Sabia que a filha era responsável e achou melhor não insistir na bronca. Lívia
deu-lhe um beijo no rosto e subiu a escada em direção ao quarto. Ao chegar, ligou
o computador; em seguida, acessou sua página pessoal no facebook e adicionou Ana Paula. Fez isso e ainda ficou um bom tempo
trocando mensagens com a amiga, que estava online.
* * *
À noite, Pedro foi ao
Texas. Ao chegar, encontrou Afonso e Marsílio, que estavam jogando bilhar.
Cumprimentou-os, voltou para junto do balcão e pediu uma caneca de chope. Ficou
ali, a distância, observando os colegas jogarem. Marsílio estava levando uma
surra.
— Afonso já ganhou oito
partidas seguidas — disse John a Pedro, rindo.
Depois da nona derrota,
Marsílio desistiu do jogo. Dizendo um palavrão, largou o taco sobre a mesa de
bilhar, pegou a caneca de chope na mesa ao lado e caminhou para o balcão, onde
estava Pedro, que teve de ouvi-lo resmungar sobre a sua falta de sorte.
Enquanto isso, Afonso foi ao banheiro.
Maldonha estava sentado no
mesmo lugar de sempre, quieto, tomando vinho e fumando um cigarro atrás do
outro. Pedro não parava de olhá-lo. Era como se o velho fosse um enorme ímã,
atraindo um pequeno pedaço de metal. Essa era a sensação que ele passava para
Pedro, que se sentia ridículo por isso.
Sorrindo, Afonso voltou
do banheiro. Estava debochando de Marsílio, que aceitava a gozação com
indulgência de amigo, mas não estava nem um pouco contente com o fato.
— O que estavam
apostando? — perguntou Pedro, mais por gozação do que por curiosidade.
— Apostando? — perguntou
Marsílio, exasperado. — Nada! Ainda bem.
— Da próxima vez
apostaremos dois livro de gasolina por ficha — brincou Afonso. — Vou abastecer
meu carro na maior moleza.
— Cheio de graça! —
retrucou Marsílio, enquanto os outros riam. — Sou só o frentista de lá, não
virei sócio ainda. Querem que perca meu emprego, já não basta perder na merda
da sinuca?
— Do jeito que é ruim
jogando, vai ser demitido por justa causa do posto — brincou Pedro e riu em
seguida.
A conversa fluía.
Trocavam de assunto com extrema facilidade. Nem ao menos percebiam que uma hora
falavam de jogo de bilhar e, instantes depois, estavam falando de futebol. Era
incrível a capacidade de desenvolvimento da conversa. Dentre pouco estavam
falando de um dos assuntos de que Pedro menos gostava: religião. Na verdade,
ele parecia ter aversão a essa palavra. Desde muito cedo começou a ter um
conceito ateu. Chegou a iniciar um curso de Teologia, no intuito de alimentar a
fé que estava morta no peito, mas o abandonou semanas depois de tê-lo iniciado.
Quando lia a Bíblia, admirava-se com os contextos do Antigo e, principalmente,
do Novo Testamento, mas algo bloqueava a possibilidade de crer na existência de
um Ser Supremo que observa tudo o que os humanos fazem na Terra para poder
julgá-los depois. Em relação ao Diabo, o vilão da história, sua opinião era
semelhante. A maldade, para ele, é intrínseca ao homem, não se pode atribuí-la
a outro ser. Mas desde que ouviu a história contada por Maldonha, de alguma
forma, começava a mudar de opinião, mesmo que isso fosse apenas a ponta de um iceberg na consciência. Quando o assunto
era relacionado à religião, Pedro ficava quieto; preferia não participar da
conversa, tornando-se apenas um ouvinte. Tinha a opinião muito parecida com a
de Maldonha, pois também achava que discutir isso era algo sem preceitos, que
não levava a lugar algum. Achava que quem acreditava em Deus deveria passar
mais tempo servindo a esse Deus e não discutindo religião, como verdadeiros
tolos, para saber qual era a certa e qual era a errada.
Em meio ao assunto
religião — que começou por causa dos comentários que fizeram da história
contada por Maldonha —, surgiu a questão sobre sonhos, que passou a ser o cerne
da conversa. Queriam saber qual a influência deles na vida de uma pessoa. Era
mais um assunto que Pedro evitava. Para ele, sonho era apenas sonho, nada mais
que isso; mas, na verdade, havia algo por trás dessa antipatia relacionada aos
sonhos que o fazia sentir raiva simplesmente pelo fato de que ao dormir podia
sonhar.
À medida que a conversa
evoluía, incomodado, Pedro sentia vontade de ir embora. No calor do assunto,
havia momentos que parecia uma briga; cada um queria estar repleto de razão, e,
quando dois concordavam com algo, o terceiro discordava. Haver um consenso era
uma questão impossível.
— O que você acha, Pedro?
— perguntou Afonso. — Você não disse nada até agora. O que foi? O gato comeu a
sua língua?
Pedro bebeu o resto do
chope, contraiu os lábios e ficou em silêncio por alguns instantes.
— Olhe, eu não gosto de
conversar sobre esses assuntos. Nunca levam a gente a uma conclusão. Vocês
estão aí falando há… há mais de meia hora e não chegaram a conclusão alguma.
— É, você tem razão —
reconheceu Afonso.
Pedro pediu outro chope.
— Só mais uma coisa —
continuou Afonso —, o que você acha daquelas sensações estranhas que, às vezes,
a gente sente… dando a impressão de que a gente já viveu determinada situação?
— Déjà vu — reforçou Marsílio.
— O quê? — perguntou
Afonso.
— Déjà vu. É o nome dado a essa sensação de que você estava falando.
John colocou a caneca com
o chope de Pedro sobre o balcão.
— Hein, Pedro, o que você
acha? — insistiu Afonso.
— Eu não acho nada. Isso
está parecendo conversa de bêbado.
— Vai dizer que você
nunca teve uma sensação como essa? — perguntou Marsílio, reforçando o
questionário.
— Talvez… — por um
instante, Pedro hesitou. Lembrou-se de quando sua ex-mulher disse-lhe estar
saindo com outro homem. Naquele dia, ele havia sentido uma sensação de déjà vu, pois no momento em que Ângela disse que
queria conversar sério com ele, foi como se já tivesse vivido aquela situação
e, de alguma forma, sabia que a conversa não seria nada agradável.
— Hei, Pedro — chamou
Afonso. — Pedro…?!
— Oi… — Pedro estava distraído
em meio às lembranças. Estava tão absorto que segurava a caneca de uma maneira
tal que não faltava quase nada para derramar o chope no chão.
— Você está bem? —
perguntou John.
— Tudo bem — respondeu
ele, incomodado, ao colocar a caneca sobre o balcão. — Eu só me distraí um
pouco.
— Um pouco?! — alarmou-se
John. — Você estava quase virando o seu chope no chão.
Pedro sorriu,
demonstrando incômodo, como se tivesse pressentido que alguém sabia exatamente
o que ele estava pensando ou até mesmo tivesse visto as imagens que lhe
passaram pela cabeça no seu momento de viagem ao passado.
— O que será que o
Maldonha acha dos sonhos? — perguntou Afonso.
— Aquele velho maluco?! —
esbravejou John, enquanto entregava duas canecas de chope à Júlia, uma das
moças que trabalhavam para ele. Ela as recebeu e as levou para uma das mesas,
na qual havia um casal de jovens. — Deve ter no mínimo uma besteira a dizer.
— Eu vou lá chamar o
Viúvo — disse Afonso, indo em direção à mesa em que Maldonha estava.
Nesse momento, Pedro
sentiu o coração, inexplicavelmente, bater descompassado. Era uma sensação
semelhante a que sentia quando era adolescente e, nos corredores do colégio,
deparava-se, sem esperar, com a garota de quem gostava. Só que Pedro não era
mais adolescente e não havia nenhuma garota.
Ao chegar à mesa em que
estava Maldonha, Afonso puxou uma cadeira e perguntou se podia sentar. Maldonha
fez que sim com a cabeça.
— Como o senhor está? —
perguntou, enquanto se sentava.
— Bem — respondeu de
forma seca, retirando o cigarro da boca —, mas não é só isso que você quer
saber…
Afonso ficou sem reação.
— Eu… — hesitou ele,
sentindo-se de repente um estúpido. — Quero dizer… a gente…
Afonso sabia o que queria
pedir a Maldonha, mas não sabia como. Não imaginou que seria uma situação no
mínimo estranha, constrangedora, sem fundamento. Incomodar uma pessoa, cuja impressão
era de que sempre queria ficar sozinha, para pedir-lhe a opinião sobre sonhos
era algo realmente sem fundamento. Quem ele pensava que Maldonha era? Algum
analista de sonhos? Um psicólogo? Afonso não sabia muito bem quem Maldonha era.
Julgava apenas que o velho tivesse algo interessante a dizer sobre tal assunto;
por isso, estava ali, diante dele, sem saber direito como pedir-lhe a opinião.
— Pode falar — disse Maldonha
—, eu não mordo.
Afonso sorriu de forma
tímida. Um riso breve e sem graça.
— Olhe, é o seguinte: a
gente estava ali falando sobre sonhos… — apontou para o local no qual estavam
Pedro e Marsílio. — A gente gostaria de saber a sua opinião…
Maldonha ficou pensativo.
Passou as pontas dos dedos da mão direita no queixo, em movimento de vaivém,
provocando um barulho por causa da barba por fazer, que já azulava o seu rosto.
— Em que sentido?
— Sei lá — Afonso passou
a mão na nuca, arrependido de estar ali diante do velho. — A gente gostaria de
saber que influência os sonhos podem ter na vida de uma pessoa. A gente estava
falando sobre religião e como o senhor…
— Pode me chamar de você.
—… como você é bastante
religioso. Está sempre citando trechos da Bíblia… Os sonhos, pra muita gente,
são como algum tipo de aviso… É sobre isso que a gente gostaria que o sen… que você
falasse.
Maldonha contraiu os
lábios, balançando de forma lenta a cabeça em sinal de aprovação.
— Religião e sonhos — disse,
como se falasse para si próprio; depois tornou a ficar quieto, pensativo, o
rosto sendo iluminado apenas por um feixe de luz fraca, o que lhe atribuía um
ar de mistério. Manteve a cabeça encostada à parede, enquanto Afonso aguardava
uma resposta.
— E então? — insistiu
Afonso.
— Eu acho que não tenho
nada a dizer a respeito de religião. Discutir isso sempre causa polêmica, como
já disse outro dia — novamente Maldonha ficou em silêncio, reflexivo. Bebeu o
resto de vinho que ainda estava no copo, tragou e, após expelir a fumaça dos
pulmões, olhou para Afonso. — Sobre sonhos, eu acho que tenho algo a dizer.
Daqui a um instante eu vou até lá.
Afonso apoiou-se com as
mãos sobre a mesa para pôr-se de pé.
— Vou ficar à sua espera
— disse, dando as costas para seguiu em direção ao balcão em que estavam os
outros.
Enquanto Afonso
conversava com Maldonha, Pedro e Marsílio apenas observavam. Nada comentaram,
senão que ele era um doido de ter ido incomodá-lo por causa de um assunto como
aquele.
Nesse meio tempo, John
estava ocupado atendendo a dois homens que chegaram e ficaram encostados na
outra extremidade do balcão.
Quando Afonso se
aproximou dos amigos, Marsílio perguntou sorrindo:
— E então, o que ele
disse?
— Que daqui a pouco vem
aqui.
Antes de ir até o local
em que estavam os outros, Maldonha parecia pensar em algo. Mantinha-se
na mesma posição, fumando o seu inseparável cigarro. Se de onde estavam, Pedro
e os outros pudessem ver a expressão no rosto dele, veriam uma imagem de um
homem triste, decerto recobrando na memória alguma lembrança angustiante, mas
quem é que saberia o que ele estava pensando? Poderia ser qualquer coisa, ou
simplesmente nada. Depois de alguns instantes, o velho levantou-se e, com seu
andar trôpego, seguiu para o balcão.
— Eu ainda acho que os
sonhos são uma espécie de aviso — dizia Afonso, enquanto Maldonha encostava-se
ao seu lado.
— Tive um sonho, que me espantou — Maldonha começou a falar, e isso
chamou a atenção até mesmo de John, que se aproximava deles —; e quando estava no meu leito os pensamentos
e as visões da minha cabeça me turbaram.
Enquanto Maldonha falava,
Pedro sentou-se de frente para o balcão em um dos bancos fixos. Ele era o que
estava mais distante de Maldonha. Entre ele e Afonso, estava Marsílio, mas a
pequena distância não o impediu de perceber que o velho o olhava de uma forma
estranha. Era como se Maldonha tivesse algo a lhe dizer, mas não podia ser ali,
na presença dos outros.
Quando Maldonha terminou
de citar o trecho bíblico, Afonso olhou para Marsílio, franziu a testa e ficou
balançando lenta e afirmativamente a cabeça como se quisesse dizer: “Eu não
disse que ele vinha?”.
— Trecho da Bíblia
Sagrada — prosseguiu Maldonha. — Está no livro de Daniel.
Era impressionante a
capacidade que Maldonha tinha de saber de cor passagens da Bíblia. E não era
uma algo que ele decorava em casa para depois sair dizendo, no intuito de se
gloriar. Era um trecho preciso, que se encaixava perfeitamente no assunto de
que falavam. Não era possível que de um livro tão volumoso, como é a Bíblia
Sagrada, o velho tivesse a sorte de decorar justamente o trecho exato para
fazer analogia com uma situação cotidiana que nem imaginava que aconteceria. Na
imaginação de Pedro e dos outros, o mais provável era que Maldonha tivesse um
vasto conhecimento da Palavra Divina, e para isso deveria ficar horas meditando
sobre as Escrituras Sagradas.
— Então você também acha
que os sonhos querem nos dizer algo? — perguntou Afonso, olhando para Maldonha,
que logo acendeu outro cigarro na guimba do anterior.
— Me dê um copo de vinho
— pediu o velho a John e, virando-se para Afonso, disse: — Nem sempre os sonhos
são avisos. Na maioria das vezes, são apenas sonhos, nada mais que isso.
Assim que John colocou o
copo de vinho sobre o balcão, Maldonha o levou à boca com cuidado para não
derrubar a bebida. Depois de um grande gole, continuou:
— Em outros casos, os
sonhos devem ser levados em consideração. Pois podem estar querendo nos dizer
algo… nos preparar pra algo, compreende?
Pedro mantinha-se em
silêncio, tentando conciliar a vontade de ir embora, por não gostar desse tipo
de assunto, com o inexplicável incômodo que sentia ao ter de aceitar que estava
curioso para saber o que o velho
Maldonha diria.
— Nós ficamos debatendo e
não conseguimos chegar a um acor…
— E não vão chegar nunca
a um acordo — interrompeu Maldonha. — Há certos assuntos que devem ser evitadas
em debates. Todo
mundo acha que sabe tudo a respeito de determinada coisa, mas na verdade não sabe
nada. Até mesmo eu, de quem vocês queriam uma opinião, como ele disse — apontou
para Afonso —, não sei de nada. Eu demorei a aprender isso, mas foi a melhor
coisa que aprendi na vida.
Todos, incluindo John,
estavam em silêncio, ouvindo Maldonha falar. Apesar do ocorrido na sexta-feira,
John não conseguia esconder que também ficava curioso quando Maldonha começava
a explicar algum assunto. Podia ser o assunto mais simples do mundo, mas algo
no velho Leandro tornava a conversa interessante, ou no mínimo fazia dela uma
boa distração.
— Houve um ocorrido que
posso contar pra vocês — continuou o velho. — É uma história que tem um pouco a
ver com esse assunto — ficou um breve instante em silêncio. — A menos que tenha
alguém que não queira ouvir.
Todos se entreolharam em silêncio. Pareciam
estar de acordo em ouvir a história. Ao perceber isso, Maldonha tragou, soltou
o cigarro quase pela metade no chão e saboreou mais um gole de vinho.
— Essa história aconteceu
com um rapaz que vou chamar de… — fez uma pausa para pensar. — Marcos. Eu vou
chamar esse rapaz de Marcos.
— Mas por que isso? —
perguntou Marsílio. — Por que esse mistério até pra dizer o nome…?
— Por nada — desconversou
Maldonha. Não queria esticar o assunto.
— Quanto mistério! — exclamou
Afonso.
— Já volto — disse
Maldonha. Em seguida, deu as costas e seguiu em direção ao banheiro.
Ao ver Maldonha se
afastar, Marsílio riu, olhando para Afonso. Não era um riso de deboche, mas sim
uma espécie de concordância entre os dois sobre o que possivelmente pensavam do
velho.
— Só quero ver o que vem
por aí — disse.
— Eu também — reforçou
Afonso.
Pedro permaneceu quieto.