domingo, 9 de junho de 2019

Chamada Restrita


Chamada Restrita

O CELULAR VIBROU. O homem alto e elegante parou de andar e retirou o aparelho do bolso. No visor marcava chamada restrita. Antes de atender, sorriu de canto de boca.
Mal conseguiu falar alô e uma voz feminina chorosa gritava desesperada do outro lado da linha.
— Pai, me ajuda, por favor! — a mulher emendava uma palavra na outra. — Acabei de ser assaltada, me ajuda!
Houve silêncio do outro lado. Em seguida, uma voz masculina irritada deu sequência:
— Sua filha está aqui comigo, senhor, sai de perto de todo mundo agora, se não ela morre!
— Olha…
Nem teve tempo de completar a frase e foi interrompido.
— Falo sério, senhor! Falo sério…! Sai agora ou mato sua filha!
O homem elegante afastou-se para a calçada, calmo, como se nada estivesse acontecendo.
— Pronto. Estou o mais longe possível de qualquer pessoa.
— Escuta com atenção, senhor, ela está comigo, e eu quero vinte mil reais, se não vou matar…
— Vinte mil? — a pergunta saiu leve da boca do homem. — Você quer vinte mil? Acho que disponho dessa grana?
— Falo sério, caralho! Quanto o senhor tem? Quanto acha que ela vale?
O homem elegante sorriu em silêncio.
— Muito bem, estou a fim de participar dessa brincadeira — disse, ainda sorrindo.
— Não estou brincando! Eu vou…
— Sei exatamente onde você está agora — interrompeu, falando de forma calma, encadeando as palavras de maneira harmoniosa. — Sei até a cor da sua camiseta.
— O quê…? — a voz vacilou.
— Vermelha. Olhe para o seu lado.
O homem de camisa vermelha estava numa praça e olhou para o lado esquerdo.
— Não para o esquerdo, olhe para o seu lado direito — o homem olhou. — Acabou de passar um senhor, não foi mesmo? Mas não se preocupe, não sou eu. Estou a alguns quilômetros de você, mas me dê alguns minutos e vou até aí e me apresento…
— Vou encher a tua cara de bala, filho da puta! — gritou desesperado.
— Vai mesmo? — perguntou o homem e riu com sarcasmo.
— O que está acontecendo? — perguntou a mulher que havia dado início à ligação, olhos arregalados, a voz estridente. O outro comparsa, que estava ao lado, sentando no banco da praça mexendo em um notebook, quis pegar o telefone do colega.
— Não deixe seu colega pegar o celular de suas mãos, ele já pega muita coisa sua — zombou o homem elegante.
O homem com o celular não permitiu que o colega pegasse o aparelho de suas mãos.
— Deixa! — disse virando o rosto com o aparelho no ouvido. — Eu resolvo isso!
— Desliga isso, cara! — protestou o homem com o notebook.
— Cala a boca, caralho!
— Está tudo bem aí?  — apenas um fungado do rapaz de camisa vermelha foi a resposta e, então, o homem elegante prosseguiu: — Sabe a vadia que você mandou me ligar? Ela até finge bem. Assim como fingiu estar satisfeita quando você saiu de cima dela ontem à noite após gozar feito um coelho apressado. Mas a vadia não se satisfez e procurou seu amigo, esse babaca aí do seu lado, que quer saber o que estou dizendo pra você. Fala pra ele que o câncer na garganta da mãe dele vai matá-la ainda essa semana.
— Olha, cara, eu…
— Desliga isso, porra! — protestou a mulher.
— Ouve a gente, mano! — reforçou o outro, mas ele não lhes deu ouvido e continuou na linha.
— Você foi uma criança boa — o homem elegante continuou —, mas os constantes abusos de seu padrasto, ao menos uma vez na semana, têm feito companhia a você todas as noites em variados pesadelos. Quando eu chegar aí e encontrar você, o que ele fazia com suas partes íntimas vai parecer uma boa lembrança.
Sentindo uma sensação de impotência corre-lhe nas entranhas, o homem de vermelho quis dizer algo, mas quando abriu a boca para proferir a primeira palavra desenhada por sua mente, foi arremessado contra uma árvore logo à frente. Bateu com extrema força a cabeça e o peito contra o tronco e caiu na grama mal aparada golfando sangue e tremendo como se estivesse tomando choque. O estalo das costelas sendo esmagadas dentro da caixa torácica foi o último som que conseguiu ouvir, feito a sequência de estalos quando alguém cruza os dedos de uma mão na outra e força as juntas.
Os outros dois quiseram correr. O homem fechou o notebook e ainda conseguiu chegar à calçada; a mulher ficou parada, forçando o movimento que teimava em não sair. Era como se o corpo estivesse todo engessado.
— Por favor…! — gemeu ela, os braços se abrindo em forma de cruz involuntariamente. Ainda teve tempo de ver o colega, que fugira, ser puxado por uma força invisível para o centro da praça, ter o corpo alçado ao ar e voltar em queda livre de cabeça em extrema velocidade. O barulho da cervical se rompendo fê-la fechar os olhos e gemer de medo pelo que a aguardava.
Nesse momento, por alguma força ou magia que ela não saberia explicar, as pessoas passavam pelo local como se nada estivesse acontecendo. Seus gritos por socorro ecoavam no espaço e pareciam não atingir nenhum ouvido ao redor.
Ainda com o corpo paralisado, a mulher viu uma silhueta disforme aparecer diante dela e, no instante seguinte, seu corpo, ainda em forma de cruz e suspenso ao ar, virou de cabeça para baixo, e ela foi arremessada na horizontal para diante de um ônibus que passava em alta velocidade à direta da praça.
Como se um botão tivesse sido apertado, o impacto do corpo contra o coletivo fez ecoar uma gritaria ao redor. As pessoas se aglomerando para ver o que havia acontecido àqueles dois homens e àquela mulher. O homem elegante desligou o celular, colocou-o no bolso e atravessou a rua, desviando-se dos curiosos.








segunda-feira, 8 de abril de 2019

Entre Cão e Gato


Entre Cão e Gato

Saí à rua com meus dois animais de estimação que havia adotado recentemente. Um no colo e o outro na coleira. Enquanto eu caminhava, evitava os vizinhos, mudando de calçada quando avistava um. Estava cansado dos mesmos assuntos.
Mesmo assim, certas coisas, ou pessoas, são inevitáveis. Um chato de galocha me parou com o falso pretexto de falar de meus animais.
— Bom dia! — cumprimentou ele. — Nunca vi você com esses bichos.
— Pois é! — tentei arrumar uma maneira de não prolongar o assunto, mas certas pessoas fazem perguntas aleatórias sobre o tempo, o sol, a chuva, o dia… Comentam sobre o possível resfriado que ainda nem sequer tiveram.
— Já têm nomes?
— Sim, têm — respondi, mas, na verdade, eu ainda nem havia escolhido.
— Ah, é…? Qual o nome do gato?
Após pensar por alguns instantes e, em se tratando do cidadão que obteria minha resposta, fui criativo:
— O gato se chama cachorro, e o cachorro se chama gato.
Entre o espanto e a surpresa, ele fez um gesto com as mãos espalmadas, como quem pede auxílio dos céus.
— Mas isso não pode! — exclamou ele.
— Como não?! — retruquei. — Os bichos são meus e dou o nome que eu quiser!
— Chamar gato de cachorro, e cachorro de gato?! — indignou-se, certamente pensando em algum argumento vazio. — Por Deus do céu, é doidera!
— Sim! — confirmei, com um riso irônico. — Quem sabe começam a achar que o gato é cachorro, e o cachorro é gato.
— Mas como vão achar isso?
— Tenho esperança! — insisti. — Penso na possibilidade de um dia o gato latir, e o cachorro miar. Já pensou?! Ou quem sabe, mesmo que isso não ocorra, alguém venha a difundir isso, e muitos acreditem.
— Que loucura, o gato latir, e o cachorro miar…! O gato nunca vai ser cachorro, e o cachorro nunca vai ser gato só porque você os nomeou assim.
Sorri satisfeito, embrenhado de sarcasmo.
— Talvez não, mas como você mesmo me disse outro dia que o Nazismo é de Esquerda só por ter a palavra socialista no nome, minha esperança é a última que morre.
O semblante de meu vizinho se fechou, mas não fiquei para ouvir o que tentou me dizer. Quando ele estava no meio de uma frase irritada, eu já caminhava para longe, puxando o gato pela coleira.





terça-feira, 26 de março de 2019

A Vida Continua



A Vida Continua

OS POMBOS VOARAM assustados do campanário da Catedral. O sino ecoava suas badaladas do meio-dia. O barulho era estridente. Seria apenas mais um ato que se repetia cotidianamente, não fosse o fato de estar no alto do campanário um homem.
Uma criança apontou para cima, por estranhar. Tudo passava despercebido dos olhos apressados de todos. A correria da cidade era igual a todos os dias. As pessoas cruzavam os seus olhares feito um vento que é cortado por um poste. A frieza era total. No entanto, um fato estranho pararia tudo, nem que fosse por um instante.
O dedo do garoto acompanhou a queda do homem. O barulho abafado do corpo ao tocar o chão coincidiu com uma badalada do sino como se fosse apenas mais um som de algum instrumento musical que acabara de iniciar o seu compasso, que morreu na primeira nota, enquanto o sino continuava com suas badaladas, dando sequência à balada da vida, em sua sina de morte.
Todos correram em direção à escadaria, mas isso só aconteceu instantes depois de o susto ter-se dissipado de seus olhos hirtos.
— Ele se jogou?!
Era essa a pergunta que os estranhos se faziam um aos outros como se quisessem iniciar uma conversa de velhos conhecidos que havia anos não se viam, mas nada os tirava da linha reta e firme de seus cotidianos engessados de afazeres repetidos à exaustão de forma automática, impedindo-os a proferir um simples bom-dia.
Aos poucos, o local estava repleto de curiosos que outrora estavam atrasados, mas que nesse momento tinham tempo para pôr a notícia em dia. O sereno que enfeitava o dia tornou-se, de repente, uma chuva intensa, formando uma parede quase sólida entre a vida e a correria diária. Raios rasgaram o céu, sequenciados de estrondosos trovões.
— Meu Deus, é um padre! Era a voz de alguém que parecia ter percebido o que realmente estava acontecendo.
— Ele se matou? — era a voz de outro.
Tudo era feito uma peça teatral, com a exata diferença de que as cortinas não separavam os atos. Tudo era visto numa sequência ilógica, irreal e estranhamente macabra.
A escadaria começou a ficar rosada com sangue que era varrido pela chuva. Aos poucos, todos  se foram, saíram com seus bons-dias presos na garganta.
O jornal do dia seguinte, ainda que atrasado, seria bem mais preciso que perguntas de estranhos que se temem.






sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

O Amor Não Vence


O Amor Não Vence

Era começo de noite. Fazia um pouco de frio, mesmo assim o senhor Gustavo tomou banho morno, como gostava, demorado. Era um dia especial para ele, aguardado por anos. Assim que saiu do banheiro, escolheu a melhor roupa que tinha. O perfume era o mesmo de quando era jovem. Trocou-se com calma e penteou os ralos cabelos grisalhos que o tempo lhe presenteou. Ela não iria reparar em sua calvície, embora isso já não importasse tanto. Não tinha pressa, pois não sabia se sua visita dessa vez cumpriria a promessa de ir vê-lo. Encontrara-a na fila do banco, por acaso do destino, ele pensava. Anos sem vê-la. Não conversaram muito. Poucas palavras foram trocadas. No entanto, ele aproveitou para convidá-la para uma visita.
— Moro no mesmo lugar de sempre — disse ele após ter feito o convite.
— Eu vou sim, pode deixar — disse ela, ao ir embora.
Ele sorriu, porém sem depositar muita fé de que ela o visitaria.
Em casa, enquanto se arrumava, lembrou-se de momentos da juventude, tentando afastar a ponta de tristeza que ainda lhe assolava o coração. Abotoou vagarosamente a camisa, sentindo os botões passarem pelos furos. Quando estava pronto, desceu a escada e rumou para a sala. Na mesa de jantar, acendeu as velas do castiçal com um fósforo, mas não havia preparado nada para comerem, mas havia algo especial que guardara por anos. Em seguida, sentou-se no sofá e ficou a esperar: mais alguns minutos não seriam intoleráveis para quem estava havia décadas esperando por um momento que não chegava, um momento que só acontecia em seus infindáveis sonhos, que o faziam acordar de madrugada para velar suas lembranças.
Quase uma hora depois, a companhia tocou, mas ele não se levantou de imediato. O som agradou-lhe os ouvidos, fazendo-lhe o coração bater forte no peito. Novo toque soou, e ele quase não acreditou que era real. Levantou-se, fazendo força com os braços no sofá para erguer o peso de seus oitenta e três anos. Caminhou a passos lentos até a porta, olhou através do olho-mágico: era ela. Finalmente era ela. O coração descompassou outra vez. Sentiu-se um adolescente. Respirou fundo e girou a chave na fechadura. Era a primeira vez em décadas que destrancava a porta, pois havia muito não a trancava a chave.
A porta aberta deixou-os cara a cara. Ela sorriu; ele sentiu vontade de chorar.
— Entre, Lívia — pediu ele, controlando o choro, saindo um pouco para o lado para dar-lhe caminho.
Após agradecer, ela entrou. Parou dois passos para dentro, olhou em volta, admirada.
— Você reformou a casa — comentou ela. — Está como você sempre disse que a deixaria.
— Sim — respondeu ele, aproximando-se dela. — Fiz isso aos poucos. Demorou um bocado, pois o dinheiro era sempre pouco, mas está aí, arrumada, como eu lhe havia prometido.
Em seguida, caminharam juntos até a sala.
— Sente-se aqui — pediu ele, puxando gentilmente a cadeira da mesa para ela, que se sentou agradecida.
— Ficou bonita a casa — continuou ela, observando. — Do jeito que você gosta.
— Você não estava aqui pra ajudar a opinar… — lembrou ele, e deu a volta na mesa para ficar de frente para ela.
— E você deixaria?
Ele apenas fez que sim com a cabeça, num movimento suave. Olhou-a por alguns instantes; em seguida, dirigiu-se à cozinha, abriu a geladeira, abaixou-se e, numa gaveta, pegou algo em forma de barra. Suspirou sem acreditar no que estava acontecendo. Voltou para a sala e, ao chegar, colocou a barra sobre a mesa e empurrou-a na direção da mulher.
— O que é isso? — perguntou ela, olhando para o que fora posto diante dela. A embalagem estava velha, desbotada, mas denunciava a marca do produto que não era fabricado havia anos.
— Quarenta e oito anos e vinte e seis dias, Lívia.
— Você comprou? Eu… — a voz falhou, perdeu-se em algum lugar do passado.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Você disse que viria e me pediu um chocolate — disse ele. — Eu comprei. Eu disse também que a porta estaria aberta, que não precisava chamar. Fiquei esperando você chegar, mas…
A senhora deixou uma lágrima escorrer dos olhos azuis, pegou a embalagem sobre a mesa e sentiu o chocolate esfarelado dentro.
         — E guardou esse tempo todo…? — a voz dela estava embargada, afogada nas lágrimas que tentava segurar.
         — Guardei, como guardei aqui dentro… — ele bateu com a mão direita no centro do peito, a voz falhando por estar segurando o choro. — Como guardei… aqui dentro, Lívia, o que sinto por você. O chocolate está vencido há muito, querida. O tempo o estragou. Mas… mas o que sinto por você… não vence.



quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Tempo de Espera


Tempo de Espera

Mario saiu do trabalho, tarde como sempre. Saiu da empresa e atravessou a passarela em direção ao ponto de ônibus. Com sorte, o coletivo passaria rápido, mas se fosse depender do habitual, ficaria muito tempo esperando. Só não contava que dessa vez seria a ponto de deixá-lo com os nervos à flor da pele, as sensações e sentimentos mudando conforme os minutos passavam.
O ponto estava lotado, mas conforme o tempo passava, as pessoas iam pegando suas conduções, seguindo cada uma para a sua vida, e ele ali, pensando na vida e sentindo as emoções mudarem constantemente. Consultou o relógio: meia-hora havia se passado e nada! Murmurou um palavrão qualquer e cruzou o ponto de um lado ao outro, sem olhar para as poucas pessoas que ainda estavam lá.
O tempo se arrastou junto com sua espera. Era estranho, mas embora não tentasse, pensar na vida e nos problemas era automático. Olhou o relógio: mais quinze minutos e nada. Os últimos passageiros partiram, e ele estranhou o fato de ficar só. Não era medo, ou talvez fosse e negasse a si mesmo isso. A verdade era que se sentiu só não por estar só, mas sim por perceber que ninguém iria resolver isso por ele. Os pensamentos nos problemas sondarem-lhe a mente mais uma vez. Suspirou entre nervoso e ansioso.
Mais meia-hora havia se passada desde que olhou a última vez o relógio. A espera, de esperançosa de que o coletivo viria no minuto seguinte, passou a ser cansativa e não tardou a tornar-se angustiante. A solidão naquele ponto passou a incomodá-lo. E nada do ônibus. Olhou a última vez para o relógio e, cansado de esperar, que o coletivo viesse para levá-lo para sua casa, começou a caminhar, pensando que para certas coisas a espera é inútil e, que se quisesse chegar a algum lugar, nem que fosse devagar, ficar parado esperando não surtiria efeito. Portanto, os passos o guiaram para o futuro; devagar chegaria a casa. 




quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Engrenagem


Engrenagem

É o parafuso que folga e aperta o tempo,
Conforme gritam e saltam aos olhos nossas sensações.
Tempo é tempo, e o que sinto passa de acordo com o que sei.
E se nada sei, sigo o tempo que rege para onde todos vamos.

Meninos, meninas, homens, mulheres, velhos!
Todos num único caminho dos ponteiros da vida.
Em sentido horário, devemos ter sentido,
Para não estarmos sentidos de algo no último instante.

Nessa engrenagem silenciosa de toda existência,
Nesse trabalhar de formiga que cava a cova do desespero,
Nesse deitar e levantar de dias sempre iguais,
Morreremos todos! sem viver a vida orgânica da qual nascemos.

Preza!, preza pela engrenagem de ferros retorcidos, preza…!
E reza para esse deus em quem tu crês, pois já é um vício:
O vício de viver a vida sob os ponteiros do tempo,
Esperando de um deus, esperança: abstração da humanidade.

Mas se ainda transpiras e sentes dor, sorrias,
Que em teu peito ainda bate a vida da qual nasceste,
Mas se só vives a favor de toda engrenagem mecânica,
Alimenta-te também do óleo que rega essa modernidade.






sábado, 2 de fevereiro de 2019

Histórias Passageiras



Histórias Passageiras

A vida é feita de coisas estranhas, de pessoas estranhas e de fatos estranhos. É tanta estranheza que eu começo a me estranhar também.
Há anos pego este mesmo ônibus para voltar para casa. É raro eu tomar outro, mas isso acontece, e é sempre quando o professor nos segura até mais tarde na sala de aula ou quando nos libera mais cedo. Sempre me sento nos últimos bancos, não sei por que razão, pois balança muito, e isso me incomoda um pouco.
Hoje é a última vez que vou voltar para casa neste coletivo, ou melhor, pode acontecer de eu pegá-lo outras vezes, mas não rotineiramente como fiz durante esses três anos que durou o meu curso na Universidade.
A maioria das pessoas que está neste ônibus nem se conhece, mas tenho certeza de que cada uma delas carrega consigo uma história. Tem um homem que sempre senta na frente, numa cadeira após a catraca. Ele entra, senta, encosta a cabeça no vidro e dorme. Deve descer no final, eu acho; por isso, fica tranquilo, sem medo de passar do ponto. Como será a vida dele? Será que é casado? Será que tem filhos? A vida dele pode ser de tantas formas, mas já que eu não sei como é, imagino. Entretanto, se cada pessoa pudesse contar a sua história, eu encheria essa folha e talvez outra, e outra…
Eu também tenho a minha história. Será que alguém nesses três anos ao menos pensou nisso? Não sei dizer, mas creio eu que sim.
São tantos rostos, e eu já decorei todos, mas há sempre um novo, que por ventura saiu mais cedo ou mais tarde de algum lugar, assim como acontece, às vezes, comigo, e me torno um estranho para um monte de estranhos. Pelo menos neste ônibus, o meu rosto já é familiar: sou um estranho conhecido de todos; isso não é engraçado e até mesmo triste?
Bem, já não importa tanto o que sinto, mas sim o que vou sentir daqui por diante. Levanto-me do banco onde estou sentado, olho para a frente, onde todos estão presos em seus mundos particulares, puxo a corda, ouço o som da campainha solicitando a parada no próximo ponto, e aguardo até que eu possa descer. Quando, por fim, o ônibus para, olho mais uma vez em direção à frente do veículo: é um olhar cheio e vazio ao mesmo tempo. São tantos significados que não consigo ao menos entendê-los… ou me entender. Desço, feliz por um ciclo que se completa e triste por já estar saudoso de uma história que deixo para trás, com o desejo vivo de poder seguir minha vida, pois felizmente o que é bom não dura para sempre, assim como o que não é também acaba. Digo felizmente no caso das coisas boas acabarem porque só elas sendo da maneira que são aprendemos a olhá-las como elas merecem. Essa é mais uma longa história de vida que fica para trás, ou talvez não, pois quem sabe a minha história, nesta jornada da vida, solicite parada e desça no próximo ponto, afinal de contas, na vida, até as histórias são passageiras.