Minutos depois
de a filha ter ido para
o quarto, Pedro desligou a tevê e também subiu.
Deitou-se e deixou, como de costume, o abajur ligado. Pôs atrás da cabeça as
mãos entrelaçadas pelos dedos e ficou olhando para o teto, pensativo. Sentia
que algo lhe faltava, mas não sabia bem o quê. Lembrou-se da Bíblia, porém não
queria admitir o fato de que era algo relacionado a ela que o deixava com essa
forte impressão de impotência. Tentou ser duro consigo mesmo, repetindo pela
centésima vez que não havia nada na Bíblia que pudesse ajudá-lo de alguma
forma.
Encontrei conforto, pensou.
Virou o corpo na cama e
ficou de lado, contemplando a fraca luz do abajur. Estava com sono, mas não
conseguia ao menos ficar de olhos fechados. Virou para o outro lado e continuou
tentando fugir dos pensamentos, mas eles eram implacáveis e não lhe saíam da
cabeça. Fechou os olhos e assim se manteve por longo tempo, até que a realidade
e a inconsciência começaram a fundir-se, tornando-se um complicado mundo de
desejos ocultos.
João, capítulo três.
Foi em meio a esse
pensamento que se levantou da cama, desceu a escada e dirigiu-se ao rack. Sem hesitar, abriu uma das portas
e pegou a Bíblia. Olhou-a por alguns segundos e voltou para o quarto,
segurando-a com uma das mãos. Sentou-se na beira da cama, de frente para o
abajur, abriu-a e procurou o livro de João.
Jesus instrui Nicodemos acerca do novo nascimento, Pedro leu mentalmente. Pensou em
parar por aí, mas algo o fez ler adiante, e leu do primeiro versículo até o
vigésimo primeiro e achou que bastava. A cada versículo lido sentia o coração
acelerar inexplicavelmente, misturado a uma intensa vontade de chorar. Fechou a
Bíblia, reflexivo, os olhos úmidos, a boca seca. Estava impressionado como
aquela passagem parecia ser direcionada a ele, mas achava ser uma mera
coincidência; entretanto, algo lhe dizia que as coisas iam muito além de um
simples fato coincidente. À tarde, ao abrir a Bíblia nesse capítulo, não deu
muita importância, mas ao lê-lo nesse momento pôde perceber que o texto
continha uma mensagem tão análoga à vida dele nos últimos dias que isso não
poderia ter acontecido por acaso, sem uma explicação por trás dos fatos, mesmo
que essa explicação fosse muito além de suas convicções alimentadas por sua
incredulidade de anos.
Ao deduzir isso, largou a
Bíblia sobre a cama, levantou-se e caminhou em direção à janela fechada. Ficou
por alguns instantes ali, diante dela; depois, abriu-a e pôs a cabeça para
fora. Ventava um pouco, e o vento parecia assobiar uma melodia suave de poucas
notas. Por sobre o telhado de sua garagem podia ver apenas a copa da árvore,
que ficava de frente ao portão pequeno de sua casa, balançar os seus galhos
freneticamente. Fechou os olhos e ergueu a cabeça, sentindo uma imensa vontade
de chorar, sentindo faltar-lhe o chão sob os pés descalços.
— Anima-te, Pedro, tu renascerás.
Essa frase soou feito um
trovão para Pedro, mesmo assim pareceu-lhe suave aos ouvidos. Era como se
viesse de todos os lados, e foi ao ouvi-la que se sentou na cama. Passou as mãos
no rosto e percebeu que ele estava molhado: havia chorado enquanto dormia.
Olhou para a janela, e ela estava fechada. Moveu o corpo como quem vai se
levantar e sentiu uma forte dor de cabeça. Gemeu calado e levantou-se. Acendeu
a luz, e a claridade ofuscou-lhe os olhos, fazendo a cabeça latejar impiedosa e
insuportavelmente. Franziu a testa e protegeu os olhos até que suas pupilas se
acostumassem à claridade. Procurou a Bíblia. Ela não estava no quarto. Olhou em
volta da cama, no chão, mas não adiantava procurar, ela não estava ali; tudo
não passou de um sonho. Tudo havia sumido e o que lhe restou foi uma dor de
cabeça forte, como se os miolos tivessem sido lavados, torcidos e postos para
secar.
Mas foi tão real…
Foi um sonho.
Eu podia sentir o vento.
Mas foi apenas um sonho.
Tu renascerás.
A memória de Pedro
reproduzia-lhe a voz de um tom forte vezes sem conta na cabeça, que latejava no
ritmo de sua respiração.
A Bíblia.
A Bíblia! Pedro precisa
ver a Bíblia, mas ela não estava no quarto. Estava no rack, junto aos álbuns de fotografia.
Preciso verificar… Eu preciso…
Com a cabeça jorrando-lhe
pergunta sobre pergunta, saiu do quarto, desceu a escada e foi até a cozinha.
Acendeu a luz e puxou uma gaveta do gabinete da pia à procura de uma aspirina.
Encontrou uma cartela, pegou os dois comprimidos que restavam e jogou um deles
na boca. Encheu um copo com água e virou-a em grandes goles garganta abaixo.
Enxugou a boca e o queixo com a mão e, em seguida, pôs o outro comprimido na
boca; triturou-o entre os dentes caninos e sentiu o seu horrível gosto amargo. Achava
que, ao fazer isso, o efeito seria mais rápido. Se isso era verdade, não sabia,
mas era o que costumava fazer com qualquer tipo de remédio que tomava, exceto
os que eram revestidos com uma cápsula. Estes, ele abria, despejava o conteúdo
na água e jogava as cápsulas fora.
Apagou a luz da cozinha e
foi para a sala. Estava escuro, mas não acendeu a luz. Abriu o rack e, sem dificuldade alguma, achou a
Bíblia, que estava lá onde a havia colocado antes de a filha voltar do encontro
com Roberto. Pegou-a e seguiu em direção à escada, andando com cuidado para não
tropeçar em algo. Era forte a sensação de déjà
vu que sentia, pois o sonho fora tão real, que ele parecia estar repetindo os
mesmos movimentos que fizera havia alguns instantes; mas não havia feito nada,
afinal de contas, fora um sonho.
Um sonho absurdamente
real.
Subiu a escada e andou
até o fim do corredor, onde ficava o seu quarto. Lívia dormia profundamente no
quarto em frente ao dele.
No quarto, lembrou-se de
olhar a hora. O rádio-relógio mostrava em grandes números vermelhos três e
vinte e seis da madrugada. Ele havia dormido e por um bom tempo.
Sentou-se na beira da
cama com a Bíblia no colo.
— João, capítulo três.
João, capítulo… três.
Repetia essas palavras
vezes seguidas, enquanto procurava a passagem. Não sabia bem ao certo por que
estava fazendo isso, mas era mais forte do que ele; era como se essa força o
fizesse agir contra a vontade, contra os próprios desejos.
Quando conseguiu achar o
trecho que procurava, ficou durante alguns segundos apenas olhando as letras. O
coração batia fora de ritmo, em um diminuir e acelerar constante. Sentia uma
sensação estranha como se estivesse prestes a cometer algo ilícito, um crime
inafiançável. Era como se existissem dois Pedros, e um deles era feito um
censor que inspecionava o outro para que não mudasse de opinião ou fizesse algo
que fosse contra o modelo anterior do padrão Pedro de viver. Porém, no fundo,
sabia que não havia mal algum no que estava fazendo, então suspirou e mergulhou
de vez nas letras. À medida que a leitura avançava, sentia novamente a forte
sensação de déjà vu. Em poucos
minutos, leu toda a passagem e nenhuma vírgula estava diferente do que havia
acontecido em seu…
(…
sonho?)
Sonho. Por que a dúvida?
Havia sonhado, mas sentia que fora tão real, tão real que…
Não importava. O que
importava era o fato de a passagem bíblica ser tão análoga à do sonho dele que
o fazia sentir um arrepio no corpo inteiro. Fechou a Bíblia, jogou-a sobre a
cama e levantou-se, pondo as mãos na nuca, ainda incrédulo, querendo uma
explicação realista e menos fantasiosa, mas, apesar de tentar, não conseguia.
— É claro! — exclamou,
olhando para as mãos espalmadas.
Pedro achava ter
conseguido uma resposta para tudo o que estava acontecendo. Ocorreu-lhe que na
época em que lia a Bíblia com frequência, interessado apenas na parte histórica
(na verdade, tentava alimentar a fé, mas em vão), certamente lera essa passagem,
portanto estava gravada em seu inconsciente e reapareceu em forma de sonho.
Mas por que as lágrimas, a sensação de leveza e esse
arrependimento que eu não sei bem do quê?, pensou, confuso.
Sua razão queria uma
explicação, mas o coração tentava quebrar a barreira de pedra que ele pusera em
sua volta, e isso o deixava confuso, perdido. Ele queria saber o que era certo
e o que era errado, mas oscilava em meio a tantas dúvidas. Afinal de contas, o
que é certo ou errado num caso como esse? Sem saber direito o que achar de tudo,
foi ao banheiro, abriu a torneira do lavatório e jogou água no rosto. Depois,
encarando a própria imagem no espelho, tomou uma decisão: tirou a roupa,
largou-a no chão, próximo ao lavatório, foi para o boxe, colocou o chuveiro na
água fria, ligou-o e entrou debaixo. Por um instante, achou que foi a pior atitude
que tomara na vida; não era nada agradável sentir, àquela hora da madrugada, a
água fria cair-lhe sobre as costas em jatos que pareciam cortar-lhe a pele. No
entanto, aliviou-lhe a cabeça, pois não conseguia pensar em nada além do banho,
que de forma alguma fora o mais agradável de sua vida.
Menos de três minutos foi
quanto aguentou debaixo da água, mas foi tempo mais do que suficiente para os
dentes começarem a bater freneticamente. A dor de cabeça começava a ceder aos
poucos e não passava de uma leve pontada distante. Enxugou o corpo e vestiu-se.
Os dentes não batiam mais, apenas os lábios tremiam um pouco. A língua, por
causa da aspirina que mastigara, ainda estava levemente adormecida. Cuspiu no
lavatório na tentativa de se livrar daquele sabor amargo e, em seguida, encarou
novamente a própria imagem no espelho.
— O que está acontecendo
com você, Pedro? O quê?! — questionou-se em voz baixa, mas o seu reflexo não
respondeu e nunca responderia. Era só um reflexo, e Pedro sabia muito bem
disso, mas tornou a perguntar mais algumas vezes, mesmo sabendo que não obteria
resposta. Pelo menos não de seu reflexo, que parecia devolver-lhe a pergunta,
como se também precisasse de algumas respostas.
Saiu do banheiro e apagou
a luz. Deitou-se com o rosto voltado para o abajur, que mantivera aceso.
Enquanto esperava o sono aparecer, tentava esvaziar a mente, observando os
minutos do rádio-relógio pularem um após o outro. A sensação que tinha era de
que cada minuto durava como se fossem dois. Rolou várias vezes na cama,
torcendo os lençóis, lutando contra um sentimento muito maior do que ele,
sentindo-se como se fosse a única sentinela na guarita.
Dormiu olhando para o relógio, sem ao menos se dar
conta de que passava das cinco da manhã.
* * *
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