sexta-feira, 30 de junho de 2017

Capítulo 11 - O Mistério do Viúvo Maldonha



As Taças de Vidro

Maldonha desistiu de fumar o restante do cigarro que acabara de acender e apagou-o no cinzeiro, assim que Pedro voltou do banheiro e lhe cobrou a história.
— Bem, Pedro, vou falar de um rapaz — começou Maldonha, dando início à sua história, após beber um gole de vinho. — Ele morava somente com a mãe, pois o pai dele havia falecido fazia pouco tempo. Ele também tinha uma irmã, mas ela era casada. Era jovem, tinha vinte e três anos e gostava de farra. Quando a tristeza do luto pela morte do pai começou a se transformar em saudade, ele não parava um fim de semana sequer em casa pra fazer companhia à mãe, e ela não dormia por estar sempre pensando no pior. É estranho, as mães nunca se acostumam… Um filho pode aprontar mil vezes a mesma coisa, mas elas sempre ficam preocupadas. Compreender o coração de uma mãe é muito mais difícil do que podemos imaginar, Pedro.
Pedro consentiu com a cabeça, enquanto abria a lata de cerveja que acabara de ser posta sobre o balcão. A porção de salame, que pedira havia alguns instantes, chegou em seguida.
Maldonha prosseguiu:
— Não sei como podem existir histórias, como vemos por aí, de mães que abandonam seus filhos dias depois de eles terem nascido. Deve haver alguma força maligna que faça essas mulheres cometerem tais atrocidades…
Safadeza, pensou Pedro, essa é a força: safadeza! Trepam como cadelas no cio com seus machos, depois querem alegar insanidade mental.
—… como essas, mas isso não importa agora. Vamos falar do rapaz de quem eu estava falando. Numa dessas vezes, quando ele chegou em casa, teve uma discussão com a mãe. Ela só queria que ele não fizesse mais aquilo, mas por ser maior de idade, esse rapaz, que se chamava Henrique, achava que não devia satisfação; não dava a mínima pra aflição que a mãe sentia.
Maldonha parou de falar por um instante e, apesar de ter dito que não queria mais salame, pegou um palito e perguntou a Pedro se podia.
— Claro! — respondeu Pedro.
Maldonha espetou três fatias de uma só vez.
Pedro ficou em silêncio, enquanto esperava o velho mastigar e engolir as fatias de salame. Depois que as engoliu, Maldonha continuou:
— Apesar de tudo, Henrique era bom filho, Pedro. Agia daquela forma, mas não era uma má pessoa.
— Sei… — concordou Pedro, com ironia.
— Ao contrário de você, ele acreditava em Deus, mas a fé sem obra é morta; tão morta quanto uma fatia desse salame — apontou com o palito para a bandeja. — E não era bem fé o que ele sentia, sabe? Ele simplesmente acreditava e ponto. No seu caso, você não acredita, mas pelo que percebi, não gosta de falar sobre esse assunto.
— Não é questão de não gostar…
— Eu sei — interferiu Maldonha —, querer discutir religião gera brigas e nunca ninguém chega a um acordo. Religião não é pra ser discutida. Também não é uma coisa que tem que ser posta à força na cabeça de uma pessoa, ainda mais quando essa pessoa já é adulta.
— É, eu concordo.
— Conheça a verdade, e ela vos libertará — tornou a dizer o velho.
Nesse momento, Pedro lembrou-se de seu pai. Na verdade, o que lhe veio à cabeça foram imagens de uma discussão que tivera com ele por causa de religião semanas antes da morte dele.
— Bem, Pedro — continuou Maldonha, interrompendo os pensamentos de Pedro —, esse rapaz blasfemava, e a mãe dele lhe pedia que parasse, mas ele não lhe dava ouvidos. É por isso que eu digo: você, que não acredita em Deus, não se julga melhor do que as pessoas que acreditam e também não fica dizendo pra todo o mundo o que acha ou deixa de achar a respeito d’Ele. Não fica defendendo o fato de não acreditar, entendeu? Já algumas pessoas que dizem acreditar e amar a Deus acima de todas as coisas, não param de culpá-Lo por tudo que acontece de errado em suas vidas — fez uma pausa e sorriu com ironia. — Essas pessoas não passam de hipócritas, pois dizem que amam, mas amam apenas com os lábios, pois o coração delas está longe de Deus.
Maldonha pegou o maço de cigarros no bolso da camisa. Enquanto observava-o acender mais um, Pedro percebeu que ele não fumava apenas por vício, era também um hábito, pois acabara de vê-lo apagar um cigarro ainda inteiro havia poucos instantes.
— O que vou contar agora aconteceu mais ou menos onze horas da manhã — prosseguiu Maldonha —, quando Henrique e outros amigos saíram de carro, mas não chegaram ao destino; sofreram um acidente horrível e fatal. Nem um deles sobreviveu. O carro capotou várias vezes e só parou de se arrastar pelo asfalto depois que entrou debaixo de um caminhão.
Pedro admirou-se com tamanha proporção do acidente, mas estava confuso, não conseguia entender o que Maldonha queria dizer-lhe com tudo aquilo.
— O que isso tem a ver com blasfêmia?
Maldonha tragou, soprou a fumaça para o alto e respondeu:
— Você vai entender. Então, antes de sair com os amigos, Henrique havia ido ao mercado com a mãe. Quando Marta estava levando as últimas sacolas pra dentro…
— Marta era a mãe dele? — perguntou Pedro.
— Exatamente — esclareceu o velho. — Quando ela levava as sacolas com as compras pra dentro de casa, os amigos dele chegaram e entraram no carro. Quando Henrique ia dar a partida, a mãe voltou e ficou furiosa ao ver aqueles rapazes no carro, mas Henrique não quis saber. Ela ficou furiosa, pois o filho ia sair sem avisar; mesmo assim disse a seguinte frase: “Que o Espírito Santo os acompanhe!”.
Maldonha espetou mais uma fatia de salame.
— E então? — Pedro cobrou a continuidade.
— Eu não sei direito o que aconteceu — continuou o velho, de boca cheia. — O que sei é que nos destroços do carro, ou melhor, no porta-malas, foi encontrado um jogo de taças.
— E daí? — Pedro não via nenhum sentido.
— Nem uma das seis taças estava quebrada, Pedro. Nem sequer uma delas estava trincada.
— Como?! — Pedro estava incrédulo. — Como é possível, se você disse que o carro ficou completamente…
— É verdade, Pedro, as taças estavam inteiras. Intactas!
— Como tem tanta certeza disso?
— Eu fui ao velório e ao enterro de Henrique, e a mãe dele, que era uma velha conhecida minha, me contou tudo; até me mostrou as taças.
Pedro balançou a cabeça e riu. Nada fazia sentido e, apesar de achar normal uma pessoa ir ao enterro de outra, estranhou o fato de Maldonha ter ido ao velório e ao enterro desse rapaz. Na verdade, achava tudo muito fantasioso para ser verdade e, para causar mais estranheza ainda aos fatos, havia o detalhe de o jogo de taças estar intacto no porta-malas de um carro que foi destruído em um acidente de trânsito.
— E essa mulher, onde ela está agora? — perguntou Pedro, querendo mais informações.
— Isso aconteceu há muito tempo. Ela morreu algum tempo depois do filho. Na época, eu tive uma longa conversa com ela, no dia do velório. Foi ela quem me disse toda essa história. Disse que dias antes do acidente teve uma visão enquanto orava diante de um pequeno altar que havia em sua casa. Ela não compreendeu a mensagem de sua visão; disse que ouviu barulhos como se fosse uma batida de carro; ouviu vozes zombando às gargalhadas de algo. Ela me disse que teve outras visões, mas eu não me lembro direito pra poder contar pra você. Eram mensagens muito confusas, e ela não pôde compreender. No dia do acidente, ela havia feito uma compra com o filho e me disse que havia esquecido algo no porta-malas.
— Eram as taças? — perguntou Pedro, em tom de afirmação.
— Sim, eram, mas quando ela voltou pra pegar, o filho já estava de saída. Como já disse, ela ficou furiosa com ele, mas pediu que o Espírito Santo o acompanhasse. Henrique não deu muito ouvido ao que ela disse. Quando ele já estava um pouco distante, ela se lembrou das taças e gritou que havia esquecido algo no porta-malas. Sabe o que Henrique disse, Pedro?
— É claro que não! Como é que vou saber?! — exclamou Pedro num misto de curiosidade e irritação.
Maldonha tragou mais uma vez, prendeu por um instante a fumaça nos pulmões e soprou-a para o alto em seguida. Olhou sério para Pedro e continuou:
— Henrique parou o carro e pôs a cabeça pra fora, olhando pra trás. O carro estava um pouco distante de sua mãe, mas ela pôde ouvir com perfeição cada palavra que ele disse.
— O que ele disse?! — perguntou Pedro, olhando para Maldonha, que parou de falar para beber um pouco de vinho. A curiosidade envolvera-o de tal forma que as palavras de sua pergunta saíram quase num grito.
— Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas, porque aqui dentro do carro não cabe mais ninguém — disse Maldonha, voz calma, enquanto colocava o copo sobre o balcão. — Foi exatamente isso o que ele disse, e os amigos dele riram como se tivessem ouvido a melhor piada da vida deles. De onde estava, Marta pôde ouvir as gargalhadas, mas não era uma piada, e se tivesse sido, seria a última.
Um silêncio envolveu-os. Maldonha pegou mais uma fatia de salame, enquanto Pedro, pensativo, observava-o. Agora ele sabia o que Maldonha queria dizer com aquilo tudo.
O Espírito Santo estava no porta-malas, pensou Pedro, tentando pôr em ordem cada imagem que a cabeça desenhava. Era como se tentasse reconstruir nos pensamentos uma cena que não vira. Era chocante, era impressionante e, em meio às concepções dele, era um absurdo.
Não, eu não posso estar pensando nisso. Seis taças de vidro, e nem uma delas se quebrou?!
Seis taças
As taças estavam inteiras. Nem uma delas estava ao menos trincada. Pedro queria saber como isso era possível…
de vidro
… e não conseguia achar uma resposta que não fosse a proposta na história contada por Maldonha.
e nem uma quebrada
Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas do carro.
— Isso é loucura! — disse, olhos arregalados, enquanto tentava afastar qualquer pensamento que o deixasse cada vez mais atordoado.
— Não, não é — Maldonha estava calmo, tragou o cigarro e encarou Pedro por entre a nuvem deslizante de fumaça acinzentada que expeliu lentamente dos pulmões. E, embora a história fosse absurda, não havia traços de mentira em seu olhar. Segurava o cigarro entre os dedos indicador e médio da mão direita que estava sobre o balcão. Pedro olhava para a fina fumaça que subia do cigarro e serpenteava o ar até sumir em sua parte mais alta.
— Quem encontrou as taças? — perguntou Pedro, para retomar a conversa.
— Um dos bombeiros. Ele deve ter questionado tanto o ocorrido quanto você deve estar questionando agora, mas com uma única diferença: ele não sabia de toda a história.
— Quer dizer então que Deus castigou esse rapaz e os amigos dele?!
Maldonha não respondeu, apenas olhou para Pedro, que continuou:
— Que Deus misericordioso é esse que castiga…?!
— Pedro…? — interferiu Maldonha, voz branda, colocando a mão sobre o braço do outro como se quisesse pedir-lhe que parasse de falar, e Pedro parou. — Não foi Deus quem bateu o carro daqueles jovens. As pessoas são livres pra fazer o que elas quiserem da vida. Por que atribuir a Deus as consequências de nossos atos? Deus não é responsável por nossas irresponsabilidades. Escute e tente entender: nós fazemos julgo de nós mesmos. De uma forma ou de outra, somos responsáveis pelos nossos atos. Há um versículo na Bíblia, que não me lembro bem onde está… sei apenas que está, se não me engano, em Gálatas, que diz que com Deus não se brinca, que o que uma pessoa planta, ela também colherá. Deus é Vida, e é com essa Vida que não devemos brincar. Você nunca vai colher peras se plantar uma macieira, Pedro.
Pedro nada disse. Meneou a cabeça e bateu a mão no ombro de Maldonha, que percebeu que Pedro havia compreendido o que ele queria dizer.
Ficaram quietos. O velho bebeu o resto do vinho, pegou uma fatia de salame e colocou-a na boca, olhando para Pedro, que bebia a sua cerveja. Ficaram assim por longo tempo, como se Maldonha tivesse dito tudo o que queria dizer, e Pedro, perdido a fala, embora tivesse um rio de palavras para elaborar inúmeras perguntas. Sabia, entretanto, que para cada resposta que obtivesse, uma nova pergunta se formaria em sua cabeça.
Que o Espírito Santo o acompanhe!
Os minutos foram passando. Ambos ficaram em silêncio tempo suficiente para Pedro beber mais uma lata de cerveja, e Maldonha, outro copo de vinho, além de fumar mais um cigarro, que acendeu na guimba do anterior.
Seis taças inteiras Capotou várias vezes…, Pedro pensava sem parar.
E o silêncio se arrastou de gole em gole, de tragada em tragada e, por algumas vezes, com sabor de salame. Quando o último gole de cerveja molhou-lhe a garganta, Pedro pôs a mão direita no ombro de Maldonha, perguntando:
— Vai querer mais alguma coisa?
Maldonha bebeu o restante do vinho que estava no copo.
— Só um maço de cigarros — respondeu.
Pedro levantou-se e pegou a carteira; Maldonha também se levantou e, quando ia retirar o dinheiro do bolso, Pedro segurou-lhe a mão, dizendo:
— Pode deixar. Eu pago!
— De forma alguma! — Maldonha tentou relutar.
— Não insista — Pedro abriu a carteira e pegou o dinheiro. — Pode pedir o seu cigarro, eu pago!
— Por favor…
— Por favor, digo eu — depois olhou para o dono do bar. — Quanto deu aqui?
O dono do bar recebeu o dinheiro da mão de Pedro, que disse:
— Inclua também um maço de cigarros — olhou para Maldonha. — Que cigarro você fuma mesmo?
— Pall Mall, por favor! — respondeu o velho.
Pedro recebeu o troco, e Maldonha, o maço de cigarros. Depois saíram do bar lado a lado.
Caminharam por um tempo em silêncio. Muitas coisas passavam pela cabeça de Pedro. Mais uma vez, Maldonha o surpreendera, e, novamente, ele não sabia o que achar; sua cabeça era uma confusão; quando por alguns momentos pensava em mudar os seus conceitos sobre a existência de Deus, algo, que cultivava havia anos, rebatia tais pensamentos, dizendo-lhe que qualquer um poderia ter forjado aquele fato das taças, colocando-as no local do acidente.
Oh, mas é claro! Um dos bombeiros. Só pode ter sido um dos bombeiros. Não, é claro que não foi nenhum deles. Pra que a mãe do rapaz estaria mentindo? Mentindo! É isso! Maldonha está mentindo, e fim de papo. Maldonha é um mentiroso, um tremendo de um velho mentiroso.
— Se eu lhe disser algo — começou a falar Pedro —, você não vai se aborrecer?
— Por que me aborreceria?
Deram mais alguns passos e pararam em frente à rua que dava para casa de Maldonha.
— Você me contou essa história só pra me deixar impressionado, não foi? Ela não aconteceu de fato, não é mesmo?
Decepcionado, Maldonha balançou a cabeça para os lados. Pedro percebeu o que acabara de fazer e sentiu vergonha. Sentiu-se também ridículo, pois ninguém o estava obrigando a acreditar em nada. Bastava não acreditar e pronto. Por que levar o velho Maldonha tão a sério? No entanto, algo o confundia, como se necessitasse acreditar, o que, para ele, era excessivamente estranho.
— Bem, já está tarde — continuou Pedro, passando a mão direita no rosto, como se tentasse consertar o que acabara de dizer. — Qualquer dia desses, a gente sai de novo pra beber junto, certo?
Maldonha comprimiu os lábios e tornou a balançar a cabeça, dessa vez afirmativamente. Aproximou-se de Pedro e bateu-lhe a mão no ombro. Depois deu as costas e seguiu seu caminho. Pedro observou-o entrar na estreita e pouco iluminada rua sem saída; quando não pôde vê-lo mais, olhou para o relógio. Era tarde da noite, e Lívia deveria estar preocupada.
Pedro apressou os passos. Não estava bêbado. Aquelas poucas latas de cerveja não eram suficientes para tanto. Sentia apenas uma leve tonteira, mas se julgava sóbrio.
Enquanto caminhava, pensava em tudo o que Maldonha lhe havia dito.
Conheça a verdade, e ela vos libertará.
Logo adiante, a poucos metros, havia uma árvore. Lembrou-se do exemplo que o velho lhe havia dado sobre o livre-arbítrio. Quando chegou próximo da árvore, segurou um fino galho com a mão direita e continuou andando, puxando-o por sobre a cabeça até arrancá-lo.
Nenhuma folha cai de uma árvore sem que haja o consentimento de Deus.
Enquanto seguia rumo a casa, ia puxando as folhas uma a uma do pequeno galho que arrancara da árvore. Ao passar ao lado de um portão, um cachorro pulou contra as grades, latindo ferozmente. Pedro estava tão distraído que tomou um susto daqueles e pulou para o lado, pensando que o cachorro pudesse pegá-lo.
— Cachorro filho-da-puta!!! — gritou de forma instintiva. — Vá assustar a cadela da sua mãe!
Depois de gritar essas palavras, sorriu, sentindo o coração bater na boca.
— Au! Au! — fez ele, inclinado o corpo na direção do portão, tentando imitar o cachorro, um vira-lata de porte grande e, por sinal, muito bonito. — Au! Au! Grrr!
Depois continuou a andar, a passos lentos, enquanto ouvia o cachorro latir de modo enlouquecido.
— A cadela da sua mãe — repetiu para si mesmo, pensando como isso era sugestivo, já que se tratava de um cachorro. — A cadela da sua mãe — repetiu, e o sorriso se transformou numa gargalhada.
Quando estava próximo ao portão de casa, percebeu que do galho que segurava não restou folha. Arrancara todas. Jogou-o para trás, por sobre o ombro, antes de abrir o portão.
Ao abrir a porta de casa e entrar, viu Lívia sentada no sofá, lendo. Ela usava uma calça de moletom cinza-claro e uma camiseta azul. Gostava de usar essa camiseta quando estava em casa porque a achava confortável, mas nem sequer sairia ao quintal usando-a. Ela já havia passado da metade do livro que lia. Estava ansiosa para saber o desfecho, mas, mesmo estando envolvida pela leitura, marcou a página e fechou o livro.
Pedro trancou a porta, olhou para a filha e piscou-lhe um olho, e ela percebeu que ele estava um pouco ébrio.
— E a sua amiga?
Lívia largou o livro sobre o sofá e levantou-se.
— Faz tempo que foi embora.
— Eu demorei?
— Eu estava tão entretida na leitura que nem percebi a hora.
Pedro se aproximou da filha e beijou-lhe o rosto, orgulhoso.
— Teve alguma ideia pra começar a escrever seu livro?
— Não, não tive, mas por que a pergunta?
— Por nada — desconversou. Achou melhor não dizer que havia comentado com Maldonha que ela pretendia escrever um livro. — Eu vi você lendo e lembrei. Só isso.
Lívia sorriu e o abraçou.
— Adivinha quem me ligou — disse ela, exultante.
— Quem? 
— O Roberto!
— Roberto… Roberto… — Pedro tentava se recordar.
— O Roberto foi quem me deu aquele celular.
— Ah, sim! — exclamou ele, enquanto caminhava em direção ao sofá, no qual se sentou. — Pelo seu rostinho de felicidade, ele chamou você pra sair, não foi?
Lívia pegou o livro do sofá e sentou ao lado esquerdo do pai.
— Ele já havia me convidado algumas vezes. Na última, eu fiquei de ligar pra dar a resposta e acabei esquecendo. Foi no dia em que fomos ao cinema.
— Claro, claro! — disse Pedro, mudando a voz para fazer graça —, o Pedrão aqui é irresistível.
Lívia sorriu e bateu com o livro no braço do pai.
— Para de brincadeira, pai! — fez um instante de silêncio. — Tudo bem, eu confesso que fiquei tão feliz de sair com você que acabei esquecendo. O Roberto passou o dia ligando aqui pra casa…
— Coitado!
—… e não havia ninguém pra atender.
— Ele deve ter ficado muito chateado. Eu ficaria.
— Ficou mesmo — Lívia se mexeu no sofá e sentou-se sobre a perna direita para ficar quase de frente para o pai —, mas depois me deu um celular; assim ficará mais fácil pra ele falar comigo.
— Como é esse rapaz? — Pedro estava preocupado com a filha. Lembrava-se muito bem do último rapaz que ela namorou.
— Ele é um colega de turma na faculdade. É legal. É bonito!
Pedro pôs a mão direita no rosto da filha. Os olhos dela brilhavam ao falar do rapaz.
— Cuidado pra não se machucar, meu bem — disse ele, em tom carinhoso. Estava realmente preocupado, mas reconhecia que a filha sabia se cuidar.
Lívia beijou o rosto do pai e ficou olhando-o por alguns segundos. Depois, dizendo que o amava muito, abraçou-o com muita força.
— Eu também amo você — secundou ele, sentindo uma inexplicável sensação de perda no peito.
Após o abraço, Pedro levantou-se e subiu para tomar banho. Lívia voltou à leitura, louca para terminar logo de ler o livro.
Pedro passou tanto tempo no banho que Lívia não estava mais na sala quando ele saiu do banheiro. Depois de tirar o roupão, ele vestiu apenas uma bermuda e ficou sem camiseta. Com os cabelos ainda molhados e despenteados, foi ao quarto da filha. A porta estava apenas encostada, e a luz, acesa; Lívia dormia. Adormecera com o livro aberto sobre o peito. Pedro pegou-o com cuidado, olhou o título, Contágio Criminoso, e com um marcador de páginas com um desenho das Meninas Superpoderosas, que estava sobre a cabeceira da cama, marcou a página, fechou o livro e colocou-o sobre o criado-mudo ao lado. Contemplou por um instante a filha e lembrou-se de quando ela era pequena, e ele contava-lhe histórias infantis para dormir, que nada se assemelhavam com O Cemitério ou O Iluminado, obras de Stephen King, que ela lera recentemente.
A Valsa. As taças de vidro, foi o que ocorreu na cabeça de Pedro, enquanto colocava um lençol sobre a filha. Depois se afastou, apagou a luz, saiu e encostou a porta devagar para não fazer barulho. Novamente uma sensação de perda apertou-lhe o peito e um calafrio envolveu-lhe o corpo.
O que está acontecendo com você, Pedro? O quê?
Em meio ao pensamento, foi para o quarto, caminhou para o banheiro, no qual acabara de tomar banho, pegou a toalha e secou os cabelos. Enquanto olhava para o espelho, tentava organizar os pensamentos. Tudo o que ouvira de Maldonha lhe havia tirado o sono; estava elétrico demais para poder dormir, e, para piorar, o salame lhe havia dado uma azia tremenda. Sabia que não deveria comer coisas do tipo, pois sempre sentia essa queimação que estava sentindo.
Antes de se deitar, foi à cozinha; não estava aguentando aquele gosto de salame que a cada instante subia-lhe pela garganta em doses amargas. Sobre a geladeira estava guardado um sachê de antiácido. Pegou-o e despejou-o dentro de meio copo com água. Ficou à espera da completa dissolução, enquanto observava as bolhas formarem uma fina espuma que subia até quase a borda do copo. Em seguida, virou o líquido garganta abaixo em grandes goles. Resmungando, voltou para o quarto.
Maldonha desistiu de fumar o restante do cigarro que acabara de acender e apagou-o no cinzeiro, assim que Pedro voltou do banheiro e lhe cobrou a história.
— Bem, Pedro, vou falar de um rapaz — começou Maldonha, dando início à sua história, após beber um gole de vinho. — Ele morava somente com a mãe, pois o pai dele havia falecido fazia pouco tempo. Ele também tinha uma irmã, mas ela era casada. Era jovem, tinha vinte e três anos e gostava de farra. Quando a tristeza do luto pela morte do pai começou a se transformar em saudade, ele não parava um fim de semana sequer em casa pra fazer companhia à mãe, e ela não dormia por estar sempre pensando no pior. É estranho, as mães nunca se acostumam… Um filho pode aprontar mil vezes a mesma coisa, mas elas sempre ficam preocupadas. Compreender o coração de uma mãe é muito mais difícil do que podemos imaginar, Pedro.
Pedro consentiu com a cabeça, enquanto abria a lata de cerveja que acabara de ser posta sobre o balcão. A porção de salame, que pedira havia alguns instantes, chegou em seguida.
Maldonha prosseguiu:
— Não sei como podem existir histórias, como vemos por aí, de mães que abandonam seus filhos dias depois de eles terem nascido. Deve haver alguma força maligna que faça essas mulheres cometerem tais atrocidades…
Safadeza, pensou Pedro, essa é a força: safadeza! Trepam como cadelas no cio com seus machos, depois querem alegar insanidade mental.
—… como essas, mas isso não importa agora. Vamos falar do rapaz de quem eu estava falando. Numa dessas vezes, quando ele chegou em casa, teve uma discussão com a mãe. Ela só queria que ele não fizesse mais aquilo, mas por ser maior de idade, esse rapaz, que se chamava Henrique, achava que não devia satisfação; não dava a mínima pra aflição que a mãe sentia.
Maldonha parou de falar por um instante e, apesar de ter dito que não queria mais salame, pegou um palito e perguntou a Pedro se podia.
— Claro! — respondeu Pedro.
Maldonha espetou três fatias de uma só vez.
Pedro ficou em silêncio, enquanto esperava o velho mastigar e engolir as fatias de salame. Depois que as engoliu, Maldonha continuou:
— Apesar de tudo, Henrique era bom filho, Pedro. Agia daquela forma, mas não era uma má pessoa.
— Sei… — concordou Pedro, com ironia.
— Ao contrário de você, ele acreditava em Deus, mas a fé sem obra é morta; tão morta quanto uma fatia desse salame — apontou com o palito para a bandeja. — E não era bem fé o que ele sentia, sabe? Ele simplesmente acreditava e ponto. No seu caso, você não acredita, mas pelo que percebi, não gosta de falar sobre esse assunto.
— Não é questão de não gostar…
— Eu sei — interferiu Maldonha —, querer discutir religião gera brigas e nunca ninguém chega a um acordo. Religião não é pra ser discutida. Também não é uma coisa que tem que ser posta à força na cabeça de uma pessoa, ainda mais quando essa pessoa já é adulta.
— É, eu concordo.
— Conheça a verdade, e ela vos libertará — tornou a dizer o velho.
Nesse momento, Pedro lembrou-se de seu pai. Na verdade, o que lhe veio à cabeça foram imagens de uma discussão que tivera com ele por causa de religião semanas antes da morte dele.
— Bem, Pedro — continuou Maldonha, interrompendo os pensamentos de Pedro —, esse rapaz blasfemava, e a mãe dele lhe pedia que parasse, mas ele não lhe dava ouvidos. É por isso que eu digo: você, que não acredita em Deus, não se julga melhor do que as pessoas que acreditam e também não fica dizendo pra todo o mundo o que acha ou deixa de achar a respeito d’Ele. Não fica defendendo o fato de não acreditar, entendeu? Já algumas pessoas que dizem acreditar e amar a Deus acima de todas as coisas, não param de culpá-Lo por tudo que acontece de errado em suas vidas — fez uma pausa e sorriu com ironia. — Essas pessoas não passam de hipócritas, pois dizem que amam, mas amam apenas com os lábios, pois o coração delas está longe de Deus.
Maldonha pegou o maço de cigarros no bolso da camisa. Enquanto observava-o acender mais um, Pedro percebeu que ele não fumava apenas por vício, era também um hábito, pois acabara de vê-lo apagar um cigarro ainda inteiro havia poucos instantes.
— O que vou contar agora aconteceu mais ou menos onze horas da manhã — prosseguiu Maldonha —, quando Henrique e outros amigos saíram de carro, mas não chegaram ao destino; sofreram um acidente horrível e fatal. Nem um deles sobreviveu. O carro capotou várias vezes e só parou de se arrastar pelo asfalto depois que entrou debaixo de um caminhão.
Pedro admirou-se com tamanha proporção do acidente, mas estava confuso, não conseguia entender o que Maldonha queria dizer-lhe com tudo aquilo.
— O que isso tem a ver com blasfêmia?
Maldonha tragou, soprou a fumaça para o alto e respondeu:
— Você vai entender. Então, antes de sair com os amigos, Henrique havia ido ao mercado com a mãe. Quando Marta estava levando as últimas sacolas pra dentro…
— Marta era a mãe dele? — perguntou Pedro.
— Exatamente — esclareceu o velho. — Quando ela levava as sacolas com as compras pra dentro de casa, os amigos dele chegaram e entraram no carro. Quando Henrique ia dar a partida, a mãe voltou e ficou furiosa ao ver aqueles rapazes no carro, mas Henrique não quis saber. Ela ficou furiosa, pois o filho ia sair sem avisar; mesmo assim disse a seguinte frase: “Que o Espírito Santo os acompanhe!”.
Maldonha espetou mais uma fatia de salame.
— E então? — Pedro cobrou a continuidade.
— Eu não sei direito o que aconteceu — continuou o velho, de boca cheia. — O que sei é que nos destroços do carro, ou melhor, no porta-malas, foi encontrado um jogo de taças.
— E daí? — Pedro não via nenhum sentido.
— Nem uma das seis taças estava quebrada, Pedro. Nem sequer uma delas estava trincada.
— Como?! — Pedro estava incrédulo. — Como é possível, se você disse que o carro ficou completamente…
— É verdade, Pedro, as taças estavam inteiras. Intactas!
— Como tem tanta certeza disso?
— Eu fui ao velório e ao enterro de Henrique, e a mãe dele, que era uma velha conhecida minha, me contou tudo; até me mostrou as taças.
Pedro balançou a cabeça e riu. Nada fazia sentido e, apesar de achar normal uma pessoa ir ao enterro de outra, estranhou o fato de Maldonha ter ido ao velório e ao enterro desse rapaz. Na verdade, achava tudo muito fantasioso para ser verdade e, para causar mais estranheza ainda aos fatos, havia o detalhe de o jogo de taças estar intacto no porta-malas de um carro que foi destruído em um acidente de trânsito.
— E essa mulher, onde ela está agora? — perguntou Pedro, querendo mais informações.
— Isso aconteceu há muito tempo. Ela morreu algum tempo depois do filho. Na época, eu tive uma longa conversa com ela, no dia do velório. Foi ela quem me disse toda essa história. Disse que dias antes do acidente teve uma visão enquanto orava diante de um pequeno altar que havia em sua casa. Ela não compreendeu a mensagem de sua visão; disse que ouviu barulhos como se fosse uma batida de carro; ouviu vozes zombando às gargalhadas de algo. Ela me disse que teve outras visões, mas eu não me lembro direito pra poder contar pra você. Eram mensagens muito confusas, e ela não pôde compreender. No dia do acidente, ela havia feito uma compra com o filho e me disse que havia esquecido algo no porta-malas.
— Eram as taças? — perguntou Pedro, em tom de afirmação.
— Sim, eram, mas quando ela voltou pra pegar, o filho já estava de saída. Como já disse, ela ficou furiosa com ele, mas pediu que o Espírito Santo o acompanhasse. Henrique não deu muito ouvido ao que ela disse. Quando ele já estava um pouco distante, ela se lembrou das taças e gritou que havia esquecido algo no porta-malas. Sabe o que Henrique disse, Pedro?
— É claro que não! Como é que vou saber?! — exclamou Pedro num misto de curiosidade e irritação.
Maldonha tragou mais uma vez, prendeu por um instante a fumaça nos pulmões e soprou-a para o alto em seguida. Olhou sério para Pedro e continuou:
— Henrique parou o carro e pôs a cabeça pra fora, olhando pra trás. O carro estava um pouco distante de sua mãe, mas ela pôde ouvir com perfeição cada palavra que ele disse.
— O que ele disse?! — perguntou Pedro, olhando para Maldonha, que parou de falar para beber um pouco de vinho. A curiosidade envolvera-o de tal forma que as palavras de sua pergunta saíram quase num grito.
— Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas, porque aqui dentro do carro não cabe mais ninguém — disse Maldonha, voz calma, enquanto colocava o copo sobre o balcão. — Foi exatamente isso o que ele disse, e os amigos dele riram como se tivessem ouvido a melhor piada da vida deles. De onde estava, Marta pôde ouvir as gargalhadas, mas não era uma piada, e se tivesse sido, seria a última.
Um silêncio envolveu-os. Maldonha pegou mais uma fatia de salame, enquanto Pedro, pensativo, observava-o. Agora ele sabia o que Maldonha queria dizer com aquilo tudo.
O Espírito Santo estava no porta-malas, pensou Pedro, tentando pôr em ordem cada imagem que a cabeça desenhava. Era como se tentasse reconstruir nos pensamentos uma cena que não vira. Era chocante, era impressionante e, em meio às concepções dele, era um absurdo.
Não, eu não posso estar pensando nisso. Seis taças de vidro, e nem uma delas se quebrou?!
Seis taças
As taças estavam inteiras. Nem uma delas estava ao menos trincada. Pedro queria saber como isso era possível…
de vidro
… e não conseguia achar uma resposta que não fosse a proposta na história contada por Maldonha.
e nem uma quebrada
Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas do carro.
— Isso é loucura! — disse, olhos arregalados, enquanto tentava afastar qualquer pensamento que o deixasse cada vez mais atordoado.
— Não, não é — Maldonha estava calmo, tragou o cigarro e encarou Pedro por entre a nuvem deslizante de fumaça acinzentada que expeliu lentamente dos pulmões. E, embora a história fosse absurda, não havia traços de mentira em seu olhar. Segurava o cigarro entre os dedos indicador e médio da mão direita que estava sobre o balcão. Pedro olhava para a fina fumaça que subia do cigarro e serpenteava o ar até sumir em sua parte mais alta.
— Quem encontrou as taças? — perguntou Pedro, para retomar a conversa.
— Um dos bombeiros. Ele deve ter questionado tanto o ocorrido quanto você deve estar questionando agora, mas com uma única diferença: ele não sabia de toda a história.
— Quer dizer então que Deus castigou esse rapaz e os amigos dele?!
Maldonha não respondeu, apenas olhou para Pedro, que continuou:
— Que Deus misericordioso é esse que castiga…?!
— Pedro…? — interferiu Maldonha, voz branda, colocando a mão sobre o braço do outro como se quisesse pedir-lhe que parasse de falar, e Pedro parou. — Não foi Deus quem bateu o carro daqueles jovens. As pessoas são livres pra fazer o que elas quiserem da vida. Por que atribuir a Deus as consequências de nossos atos? Deus não é responsável por nossas irresponsabilidades. Escute e tente entender: nós fazemos julgo de nós mesmos. De uma forma ou de outra, somos responsáveis pelos nossos atos. Há um versículo na Bíblia, que não me lembro bem onde está… sei apenas que está, se não me engano, em Gálatas, que diz que com Deus não se brinca, que o que uma pessoa planta, ela também colherá. Deus é Vida, e é com essa Vida que não devemos brincar. Você nunca vai colher peras se plantar uma macieira, Pedro.
Pedro nada disse. Meneou a cabeça e bateu a mão no ombro de Maldonha, que percebeu que Pedro havia compreendido o que ele queria dizer.
Ficaram quietos. O velho bebeu o resto do vinho, pegou uma fatia de salame e colocou-a na boca, olhando para Pedro, que bebia a sua cerveja. Ficaram assim por longo tempo, como se Maldonha tivesse dito tudo o que queria dizer, e Pedro, perdido a fala, embora tivesse um rio de palavras para elaborar inúmeras perguntas. Sabia, entretanto, que para cada resposta que obtivesse, uma nova pergunta se formaria em sua cabeça.
Que o Espírito Santo o acompanhe!
Os minutos foram passando. Ambos ficaram em silêncio tempo suficiente para Pedro beber mais uma lata de cerveja, e Maldonha, outro copo de vinho, além de fumar mais um cigarro, que acendeu na guimba do anterior.
Seis taças inteiras Capotou várias vezes…, Pedro pensava sem parar.
E o silêncio se arrastou de gole em gole, de tragada em tragada e, por algumas vezes, com sabor de salame. Quando o último gole de cerveja molhou-lhe a garganta, Pedro pôs a mão direita no ombro de Maldonha, perguntando:
— Vai querer mais alguma coisa?
Maldonha bebeu o restante do vinho que estava no copo.
— Só um maço de cigarros — respondeu.
Pedro levantou-se e pegou a carteira; Maldonha também se levantou e, quando ia retirar o dinheiro do bolso, Pedro segurou-lhe a mão, dizendo:
— Pode deixar. Eu pago!
— De forma alguma! — Maldonha tentou relutar.
— Não insista — Pedro abriu a carteira e pegou o dinheiro. — Pode pedir o seu cigarro, eu pago!
— Por favor…
— Por favor, digo eu — depois olhou para o dono do bar. — Quanto deu aqui?
O dono do bar recebeu o dinheiro da mão de Pedro, que disse:
— Inclua também um maço de cigarros — olhou para Maldonha. — Que cigarro você fuma mesmo?
— Pall Mall, por favor! — respondeu o velho.
Pedro recebeu o troco, e Maldonha, o maço de cigarros. Depois saíram do bar lado a lado.
Caminharam por um tempo em silêncio. Muitas coisas passavam pela cabeça de Pedro. Mais uma vez, Maldonha o surpreendera, e, novamente, ele não sabia o que achar; sua cabeça era uma confusão; quando por alguns momentos pensava em mudar os seus conceitos sobre a existência de Deus, algo, que cultivava havia anos, rebatia tais pensamentos, dizendo-lhe que qualquer um poderia ter forjado aquele fato das taças, colocando-as no local do acidente.
Oh, mas é claro! Um dos bombeiros. Só pode ter sido um dos bombeiros. Não, é claro que não foi nenhum deles. Pra que a mãe do rapaz estaria mentindo? Mentindo! É isso! Maldonha está mentindo, e fim de papo. Maldonha é um mentiroso, um tremendo de um velho mentiroso.
— Se eu lhe disser algo — começou a falar Pedro —, você não vai se aborrecer?
— Por que me aborreceria?
Deram mais alguns passos e pararam em frente à rua que dava para casa de Maldonha.
— Você me contou essa história só pra me deixar impressionado, não foi? Ela não aconteceu de fato, não é mesmo?
Decepcionado, Maldonha balançou a cabeça para os lados. Pedro percebeu o que acabara de fazer e sentiu vergonha. Sentiu-se também ridículo, pois ninguém o estava obrigando a acreditar em nada. Bastava não acreditar e pronto. Por que levar o velho Maldonha tão a sério? No entanto, algo o confundia, como se necessitasse acreditar, o que, para ele, era excessivamente estranho.
— Bem, já está tarde — continuou Pedro, passando a mão direita no rosto, como se tentasse consertar o que acabara de dizer. — Qualquer dia desses, a gente sai de novo pra beber junto, certo?
Maldonha comprimiu os lábios e tornou a balançar a cabeça, dessa vez afirmativamente. Aproximou-se de Pedro e bateu-lhe a mão no ombro. Depois deu as costas e seguiu seu caminho. Pedro observou-o entrar na estreita e pouco iluminada rua sem saída; quando não pôde vê-lo mais, olhou para o relógio. Era tarde da noite, e Lívia deveria estar preocupada.
Pedro apressou os passos. Não estava bêbado. Aquelas poucas latas de cerveja não eram suficientes para tanto. Sentia apenas uma leve tonteira, mas se julgava sóbrio.
Enquanto caminhava, pensava em tudo o que Maldonha lhe havia dito.
Conheça a verdade, e ela vos libertará.
Logo adiante, a poucos metros, havia uma árvore. Lembrou-se do exemplo que o velho lhe havia dado sobre o livre-arbítrio. Quando chegou próximo da árvore, segurou um fino galho com a mão direita e continuou andando, puxando-o por sobre a cabeça até arrancá-lo.
Nenhuma folha cai de uma árvore sem que haja o consentimento de Deus.
Enquanto seguia rumo a casa, ia puxando as folhas uma a uma do pequeno galho que arrancara da árvore. Ao passar ao lado de um portão, um cachorro pulou contra as grades, latindo ferozmente. Pedro estava tão distraído que tomou um susto daqueles e pulou para o lado, pensando que o cachorro pudesse pegá-lo.
— Cachorro filho-da-puta!!! — gritou de forma instintiva. — Vá assustar a cadela da sua mãe!
Depois de gritar essas palavras, sorriu, sentindo o coração bater na boca.
— Au! Au! — fez ele, inclinado o corpo na direção do portão, tentando imitar o cachorro, um vira-lata de porte grande e, por sinal, muito bonito. — Au! Au! Grrr!
Depois continuou a andar, a passos lentos, enquanto ouvia o cachorro latir de modo enlouquecido.
— A cadela da sua mãe — repetiu para si mesmo, pensando como isso era sugestivo, já que se tratava de um cachorro. — A cadela da sua mãe — repetiu, e o sorriso se transformou numa gargalhada.
Quando estava próximo ao portão de casa, percebeu que do galho que segurava não restou folha. Arrancara todas. Jogou-o para trás, por sobre o ombro, antes de abrir o portão.
Ao abrir a porta de casa e entrar, viu Lívia sentada no sofá, lendo. Ela usava uma calça de moletom cinza-claro e uma camiseta azul. Gostava de usar essa camiseta quando estava em casa porque a achava confortável, mas nem sequer sairia ao quintal usando-a. Ela já havia passado da metade do livro que lia. Estava ansiosa para saber o desfecho, mas, mesmo estando envolvida pela leitura, marcou a página e fechou o livro.
Pedro trancou a porta, olhou para a filha e piscou-lhe um olho, e ela percebeu que ele estava um pouco ébrio.
— E a sua amiga?
Lívia largou o livro sobre o sofá e levantou-se.
— Faz tempo que foi embora.
— Eu demorei?
— Eu estava tão entretida na leitura que nem percebi a hora.
Pedro se aproximou da filha e beijou-lhe o rosto, orgulhoso.
— Teve alguma ideia pra começar a escrever seu livro?
— Não, não tive, mas por que a pergunta?
— Por nada — desconversou. Achou melhor não dizer que havia comentado com Maldonha que ela pretendia escrever um livro. — Eu vi você lendo e lembrei. Só isso.
Lívia sorriu e o abraçou.
— Adivinha quem me ligou — disse ela, exultante.
— Quem? 
— O Roberto!
— Roberto… Roberto… — Pedro tentava se recordar.
— O Roberto foi quem me deu aquele celular.
— Ah, sim! — exclamou ele, enquanto caminhava em direção ao sofá, no qual se sentou. — Pelo seu rostinho de felicidade, ele chamou você pra sair, não foi?
Lívia pegou o livro do sofá e sentou ao lado esquerdo do pai.
— Ele já havia me convidado algumas vezes. Na última, eu fiquei de ligar pra dar a resposta e acabei esquecendo. Foi no dia em que fomos ao cinema.
— Claro, claro! — disse Pedro, mudando a voz para fazer graça —, o Pedrão aqui é irresistível.
Lívia sorriu e bateu com o livro no braço do pai.
— Para de brincadeira, pai! — fez um instante de silêncio. — Tudo bem, eu confesso que fiquei tão feliz de sair com você que acabei esquecendo. O Roberto passou o dia ligando aqui pra casa…
— Coitado!
—… e não havia ninguém pra atender.
— Ele deve ter ficado muito chateado. Eu ficaria.
— Ficou mesmo — Lívia se mexeu no sofá e sentou-se sobre a perna direita para ficar quase de frente para o pai —, mas depois me deu um celular; assim ficará mais fácil pra ele falar comigo.
— Como é esse rapaz? — Pedro estava preocupado com a filha. Lembrava-se muito bem do último rapaz que ela namorou.
— Ele é um colega de turma na faculdade. É legal. É bonito!
Pedro pôs a mão direita no rosto da filha. Os olhos dela brilhavam ao falar do rapaz.
— Cuidado pra não se machucar, meu bem — disse ele, em tom carinhoso. Estava realmente preocupado, mas reconhecia que a filha sabia se cuidar.
Lívia beijou o rosto do pai e ficou olhando-o por alguns segundos. Depois, dizendo que o amava muito, abraçou-o com muita força.
— Eu também amo você — secundou ele, sentindo uma inexplicável sensação de perda no peito.
Após o abraço, Pedro levantou-se e subiu para tomar banho. Lívia voltou à leitura, louca para terminar logo de ler o livro.
Pedro passou tanto tempo no banho que Lívia não estava mais na sala quando ele saiu do banheiro. Depois de tirar o roupão, ele vestiu apenas uma bermuda e ficou sem camiseta. Com os cabelos ainda molhados e despenteados, foi ao quarto da filha. A porta estava apenas encostada, e a luz, acesa; Lívia dormia. Adormecera com o livro aberto sobre o peito. Pedro pegou-o com cuidado, olhou o título, Contágio Criminoso, e com um marcador de páginas com um desenho das Meninas Superpoderosas, que estava sobre a cabeceira da cama, marcou a página, fechou o livro e colocou-o sobre o criado-mudo ao lado. Contemplou por um instante a filha e lembrou-se de quando ela era pequena, e ele contava-lhe histórias infantis para dormir, que nada se assemelhavam com O Cemitério ou O Iluminado, obras de Stephen King, que ela lera recentemente.
A Valsa. As taças de vidro, foi o que ocorreu na cabeça de Pedro, enquanto colocava um lençol sobre a filha. Depois se afastou, apagou a luz, saiu e encostou a porta devagar para não fazer barulho. Novamente uma sensação de perda apertou-lhe o peito e um calafrio envolveu-lhe o corpo.
O que está acontecendo com você, Pedro? O quê?
Em meio ao pensamento, foi para o quarto, caminhou para o banheiro, no qual acabara de tomar banho, pegou a toalha e secou os cabelos. Enquanto olhava para o espelho, tentava organizar os pensamentos. Tudo o que ouvira de Maldonha lhe havia tirado o sono; estava elétrico demais para poder dormir, e, para piorar, o salame lhe havia dado uma azia tremenda. Sabia que não deveria comer coisas do tipo, pois sempre sentia essa queimação que estava sentindo.
Antes de se deitar, foi à cozinha; não estava aguentando aquele gosto de salame que a cada instante subia-lhe pela garganta em doses amargas. Sobre a geladeira estava guardado um sachê de antiácido. Pegou-o e despejou-o dentro de meio copo com água. Ficou à espera da completa dissolução, enquanto observava as bolhas formarem uma fina espuma que subia até quase a borda do copo. Em seguida, virou o líquido garganta abaixo em grandes goles. Resmungando, voltou para o quarto. 
Maldonha desistiu de fumar o restante do cigarro que acabara de acender e apagou-o no cinzeiro, assim que Pedro voltou do banheiro e lhe cobrou a história.
— Bem, Pedro, vou falar de um rapaz — começou Maldonha, dando início à sua história, após beber um gole de vinho. — Ele morava somente com a mãe, pois o pai dele havia falecido fazia pouco tempo. Ele também tinha uma irmã, mas ela era casada. Era jovem, tinha vinte e três anos e gostava de farra. Quando a tristeza do luto pela morte do pai começou a se transformar em saudade, ele não parava um fim de semana sequer em casa pra fazer companhia à mãe, e ela não dormia por estar sempre pensando no pior. É estranho, as mães nunca se acostumam… Um filho pode aprontar mil vezes a mesma coisa, mas elas sempre ficam preocupadas. Compreender o coração de uma mãe é muito mais difícil do que podemos imaginar, Pedro.
Pedro consentiu com a cabeça, enquanto abria a lata de cerveja que acabara de ser posta sobre o balcão. A porção de salame, que pedira havia alguns instantes, chegou em seguida.
Maldonha prosseguiu:
— Não sei como podem existir histórias, como vemos por aí, de mães que abandonam seus filhos dias depois de eles terem nascido. Deve haver alguma força maligna que faça essas mulheres cometerem tais atrocidades…
Safadeza, pensou Pedro, essa é a força: safadeza! Trepam como cadelas no cio com seus machos, depois querem alegar insanidade mental.
—… como essas, mas isso não importa agora. Vamos falar do rapaz de quem eu estava falando. Numa dessas vezes, quando ele chegou em casa, teve uma discussão com a mãe. Ela só queria que ele não fizesse mais aquilo, mas por ser maior de idade, esse rapaz, que se chamava Henrique, achava que não devia satisfação; não dava a mínima pra aflição que a mãe sentia.
Maldonha parou de falar por um instante e, apesar de ter dito que não queria mais salame, pegou um palito e perguntou a Pedro se podia.
— Claro! — respondeu Pedro.
Maldonha espetou três fatias de uma só vez.
Pedro ficou em silêncio, enquanto esperava o velho mastigar e engolir as fatias de salame. Depois que as engoliu, Maldonha continuou:
— Apesar de tudo, Henrique era bom filho, Pedro. Agia daquela forma, mas não era uma má pessoa.
— Sei… — concordou Pedro, com ironia.
— Ao contrário de você, ele acreditava em Deus, mas a fé sem obra é morta; tão morta quanto uma fatia desse salame — apontou com o palito para a bandeja. — E não era bem fé o que ele sentia, sabe? Ele simplesmente acreditava e ponto. No seu caso, você não acredita, mas pelo que percebi, não gosta de falar sobre esse assunto.
— Não é questão de não gostar…
— Eu sei — interferiu Maldonha —, querer discutir religião gera brigas e nunca ninguém chega a um acordo. Religião não é pra ser discutida. Também não é uma coisa que tem que ser posta à força na cabeça de uma pessoa, ainda mais quando essa pessoa já é adulta.
— É, eu concordo.
— Conheça a verdade, e ela vos libertará — tornou a dizer o velho.
Nesse momento, Pedro lembrou-se de seu pai. Na verdade, o que lhe veio à cabeça foram imagens de uma discussão que tivera com ele por causa de religião semanas antes da morte dele.
— Bem, Pedro — continuou Maldonha, interrompendo os pensamentos de Pedro —, esse rapaz blasfemava, e a mãe dele lhe pedia que parasse, mas ele não lhe dava ouvidos. É por isso que eu digo: você, que não acredita em Deus, não se julga melhor do que as pessoas que acreditam e também não fica dizendo pra todo o mundo o que acha ou deixa de achar a respeito d’Ele. Não fica defendendo o fato de não acreditar, entendeu? Já algumas pessoas que dizem acreditar e amar a Deus acima de todas as coisas, não param de culpá-Lo por tudo que acontece de errado em suas vidas — fez uma pausa e sorriu com ironia. — Essas pessoas não passam de hipócritas, pois dizem que amam, mas amam apenas com os lábios, pois o coração delas está longe de Deus.
Maldonha pegou o maço de cigarros no bolso da camisa. Enquanto observava-o acender mais um, Pedro percebeu que ele não fumava apenas por vício, era também um hábito, pois acabara de vê-lo apagar um cigarro ainda inteiro havia poucos instantes.
— O que vou contar agora aconteceu mais ou menos onze horas da manhã — prosseguiu Maldonha —, quando Henrique e outros amigos saíram de carro, mas não chegaram ao destino; sofreram um acidente horrível e fatal. Nem um deles sobreviveu. O carro capotou várias vezes e só parou de se arrastar pelo asfalto depois que entrou debaixo de um caminhão.
Pedro admirou-se com tamanha proporção do acidente, mas estava confuso, não conseguia entender o que Maldonha queria dizer-lhe com tudo aquilo.
— O que isso tem a ver com blasfêmia?
Maldonha tragou, soprou a fumaça para o alto e respondeu:
— Você vai entender. Então, antes de sair com os amigos, Henrique havia ido ao mercado com a mãe. Quando Marta estava levando as últimas sacolas pra dentro…
— Marta era a mãe dele? — perguntou Pedro.
— Exatamente — esclareceu o velho. — Quando ela levava as sacolas com as compras pra dentro de casa, os amigos dele chegaram e entraram no carro. Quando Henrique ia dar a partida, a mãe voltou e ficou furiosa ao ver aqueles rapazes no carro, mas Henrique não quis saber. Ela ficou furiosa, pois o filho ia sair sem avisar; mesmo assim disse a seguinte frase: “Que o Espírito Santo os acompanhe!”.
Maldonha espetou mais uma fatia de salame.
— E então? — Pedro cobrou a continuidade.
— Eu não sei direito o que aconteceu — continuou o velho, de boca cheia. — O que sei é que nos destroços do carro, ou melhor, no porta-malas, foi encontrado um jogo de taças.
— E daí? — Pedro não via nenhum sentido.
— Nem uma das seis taças estava quebrada, Pedro. Nem sequer uma delas estava trincada.
— Como?! — Pedro estava incrédulo. — Como é possível, se você disse que o carro ficou completamente…
— É verdade, Pedro, as taças estavam inteiras. Intactas!
— Como tem tanta certeza disso?
— Eu fui ao velório e ao enterro de Henrique, e a mãe dele, que era uma velha conhecida minha, me contou tudo; até me mostrou as taças.
Pedro balançou a cabeça e riu. Nada fazia sentido e, apesar de achar normal uma pessoa ir ao enterro de outra, estranhou o fato de Maldonha ter ido ao velório e ao enterro desse rapaz. Na verdade, achava tudo muito fantasioso para ser verdade e, para causar mais estranheza ainda aos fatos, havia o detalhe de o jogo de taças estar intacto no porta-malas de um carro que foi destruído em um acidente de trânsito.
— E essa mulher, onde ela está agora? — perguntou Pedro, querendo mais informações.
— Isso aconteceu há muito tempo. Ela morreu algum tempo depois do filho. Na época, eu tive uma longa conversa com ela, no dia do velório. Foi ela quem me disse toda essa história. Disse que dias antes do acidente teve uma visão enquanto orava diante de um pequeno altar que havia em sua casa. Ela não compreendeu a mensagem de sua visão; disse que ouviu barulhos como se fosse uma batida de carro; ouviu vozes zombando às gargalhadas de algo. Ela me disse que teve outras visões, mas eu não me lembro direito pra poder contar pra você. Eram mensagens muito confusas, e ela não pôde compreender. No dia do acidente, ela havia feito uma compra com o filho e me disse que havia esquecido algo no porta-malas.
— Eram as taças? — perguntou Pedro, em tom de afirmação.
— Sim, eram, mas quando ela voltou pra pegar, o filho já estava de saída. Como já disse, ela ficou furiosa com ele, mas pediu que o Espírito Santo o acompanhasse. Henrique não deu muito ouvido ao que ela disse. Quando ele já estava um pouco distante, ela se lembrou das taças e gritou que havia esquecido algo no porta-malas. Sabe o que Henrique disse, Pedro?
— É claro que não! Como é que vou saber?! — exclamou Pedro num misto de curiosidade e irritação.
Maldonha tragou mais uma vez, prendeu por um instante a fumaça nos pulmões e soprou-a para o alto em seguida. Olhou sério para Pedro e continuou:
— Henrique parou o carro e pôs a cabeça pra fora, olhando pra trás. O carro estava um pouco distante de sua mãe, mas ela pôde ouvir com perfeição cada palavra que ele disse.
— O que ele disse?! — perguntou Pedro, olhando para Maldonha, que parou de falar para beber um pouco de vinho. A curiosidade envolvera-o de tal forma que as palavras de sua pergunta saíram quase num grito.
— Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas, porque aqui dentro do carro não cabe mais ninguém — disse Maldonha, voz calma, enquanto colocava o copo sobre o balcão. — Foi exatamente isso o que ele disse, e os amigos dele riram como se tivessem ouvido a melhor piada da vida deles. De onde estava, Marta pôde ouvir as gargalhadas, mas não era uma piada, e se tivesse sido, seria a última.
Um silêncio envolveu-os. Maldonha pegou mais uma fatia de salame, enquanto Pedro, pensativo, observava-o. Agora ele sabia o que Maldonha queria dizer com aquilo tudo.
O Espírito Santo estava no porta-malas, pensou Pedro, tentando pôr em ordem cada imagem que a cabeça desenhava. Era como se tentasse reconstruir nos pensamentos uma cena que não vira. Era chocante, era impressionante e, em meio às concepções dele, era um absurdo.
Não, eu não posso estar pensando nisso. Seis taças de vidro, e nem uma delas se quebrou?!
Seis taças
As taças estavam inteiras. Nem uma delas estava ao menos trincada. Pedro queria saber como isso era possível…
de vidro
… e não conseguia achar uma resposta que não fosse a proposta na história contada por Maldonha.
e nem uma quebrada
Deve ser o Espírito Santo que a senhora esqueceu no porta-malas do carro.
— Isso é loucura! — disse, olhos arregalados, enquanto tentava afastar qualquer pensamento que o deixasse cada vez mais atordoado.
— Não, não é — Maldonha estava calmo, tragou o cigarro e encarou Pedro por entre a nuvem deslizante de fumaça acinzentada que expeliu lentamente dos pulmões. E, embora a história fosse absurda, não havia traços de mentira em seu olhar. Segurava o cigarro entre os dedos indicador e médio da mão direita que estava sobre o balcão. Pedro olhava para a fina fumaça que subia do cigarro e serpenteava o ar até sumir em sua parte mais alta.
— Quem encontrou as taças? — perguntou Pedro, para retomar a conversa.
— Um dos bombeiros. Ele deve ter questionado tanto o ocorrido quanto você deve estar questionando agora, mas com uma única diferença: ele não sabia de toda a história.
— Quer dizer então que Deus castigou esse rapaz e os amigos dele?!
Maldonha não respondeu, apenas olhou para Pedro, que continuou:
— Que Deus misericordioso é esse que castiga…?!
— Pedro…? — interferiu Maldonha, voz branda, colocando a mão sobre o braço do outro como se quisesse pedir-lhe que parasse de falar, e Pedro parou. — Não foi Deus quem bateu o carro daqueles jovens. As pessoas são livres pra fazer o que elas quiserem da vida. Por que atribuir a Deus as consequências de nossos atos? Deus não é responsável por nossas irresponsabilidades. Escute e tente entender: nós fazemos julgo de nós mesmos. De uma forma ou de outra, somos responsáveis pelos nossos atos. Há um versículo na Bíblia, que não me lembro bem onde está… sei apenas que está, se não me engano, em Gálatas, que diz que com Deus não se brinca, que o que uma pessoa planta, ela também colherá. Deus é Vida, e é com essa Vida que não devemos brincar. Você nunca vai colher peras se plantar uma macieira, Pedro.
Pedro nada disse. Meneou a cabeça e bateu a mão no ombro de Maldonha, que percebeu que Pedro havia compreendido o que ele queria dizer.
Ficaram quietos. O velho bebeu o resto do vinho, pegou uma fatia de salame e colocou-a na boca, olhando para Pedro, que bebia a sua cerveja. Ficaram assim por longo tempo, como se Maldonha tivesse dito tudo o que queria dizer, e Pedro, perdido a fala, embora tivesse um rio de palavras para elaborar inúmeras perguntas. Sabia, entretanto, que para cada resposta que obtivesse, uma nova pergunta se formaria em sua cabeça.
Que o Espírito Santo o acompanhe!
Os minutos foram passando. Ambos ficaram em silêncio tempo suficiente para Pedro beber mais uma lata de cerveja, e Maldonha, outro copo de vinho, além de fumar mais um cigarro, que acendeu na guimba do anterior.
Seis taças inteiras Capotou várias vezes…, Pedro pensava sem parar.
E o silêncio se arrastou de gole em gole, de tragada em tragada e, por algumas vezes, com sabor de salame. Quando o último gole de cerveja molhou-lhe a garganta, Pedro pôs a mão direita no ombro de Maldonha, perguntando:
— Vai querer mais alguma coisa?
Maldonha bebeu o restante do vinho que estava no copo.
— Só um maço de cigarros — respondeu.
Pedro levantou-se e pegou a carteira; Maldonha também se levantou e, quando ia retirar o dinheiro do bolso, Pedro segurou-lhe a mão, dizendo:
— Pode deixar. Eu pago!
— De forma alguma! — Maldonha tentou relutar.
— Não insista — Pedro abriu a carteira e pegou o dinheiro. — Pode pedir o seu cigarro, eu pago!
— Por favor…
— Por favor, digo eu — depois olhou para o dono do bar. — Quanto deu aqui?
O dono do bar recebeu o dinheiro da mão de Pedro, que disse:
— Inclua também um maço de cigarros — olhou para Maldonha. — Que cigarro você fuma mesmo?
— Pall Mall, por favor! — respondeu o velho.
Pedro recebeu o troco, e Maldonha, o maço de cigarros. Depois saíram do bar lado a lado.
Caminharam por um tempo em silêncio. Muitas coisas passavam pela cabeça de Pedro. Mais uma vez, Maldonha o surpreendera, e, novamente, ele não sabia o que achar; sua cabeça era uma confusão; quando por alguns momentos pensava em mudar os seus conceitos sobre a existência de Deus, algo, que cultivava havia anos, rebatia tais pensamentos, dizendo-lhe que qualquer um poderia ter forjado aquele fato das taças, colocando-as no local do acidente.
Oh, mas é claro! Um dos bombeiros. Só pode ter sido um dos bombeiros. Não, é claro que não foi nenhum deles. Pra que a mãe do rapaz estaria mentindo? Mentindo! É isso! Maldonha está mentindo, e fim de papo. Maldonha é um mentiroso, um tremendo de um velho mentiroso.
— Se eu lhe disser algo — começou a falar Pedro —, você não vai se aborrecer?
— Por que me aborreceria?
Deram mais alguns passos e pararam em frente à rua que dava para casa de Maldonha.
— Você me contou essa história só pra me deixar impressionado, não foi? Ela não aconteceu de fato, não é mesmo?
Decepcionado, Maldonha balançou a cabeça para os lados. Pedro percebeu o que acabara de fazer e sentiu vergonha. Sentiu-se também ridículo, pois ninguém o estava obrigando a acreditar em nada. Bastava não acreditar e pronto. Por que levar o velho Maldonha tão a sério? No entanto, algo o confundia, como se necessitasse acreditar, o que, para ele, era excessivamente estranho.
— Bem, já está tarde — continuou Pedro, passando a mão direita no rosto, como se tentasse consertar o que acabara de dizer. — Qualquer dia desses, a gente sai de novo pra beber junto, certo?
Maldonha comprimiu os lábios e tornou a balançar a cabeça, dessa vez afirmativamente. Aproximou-se de Pedro e bateu-lhe a mão no ombro. Depois deu as costas e seguiu seu caminho. Pedro observou-o entrar na estreita e pouco iluminada rua sem saída; quando não pôde vê-lo mais, olhou para o relógio. Era tarde da noite, e Lívia deveria estar preocupada.
Pedro apressou os passos. Não estava bêbado. Aquelas poucas latas de cerveja não eram suficientes para tanto. Sentia apenas uma leve tonteira, mas se julgava sóbrio.
Enquanto caminhava, pensava em tudo o que Maldonha lhe havia dito.
Conheça a verdade, e ela vos libertará.
Logo adiante, a poucos metros, havia uma árvore. Lembrou-se do exemplo que o velho lhe havia dado sobre o livre-arbítrio. Quando chegou próximo da árvore, segurou um fino galho com a mão direita e continuou andando, puxando-o por sobre a cabeça até arrancá-lo.
Nenhuma folha cai de uma árvore sem que haja o consentimento de Deus.
Enquanto seguia rumo a casa, ia puxando as folhas uma a uma do pequeno galho que arrancara da árvore. Ao passar ao lado de um portão, um cachorro pulou contra as grades, latindo ferozmente. Pedro estava tão distraído que tomou um susto daqueles e pulou para o lado, pensando que o cachorro pudesse pegá-lo.
— Cachorro filho-da-puta!!! — gritou de forma instintiva. — Vá assustar a cadela da sua mãe!
Depois de gritar essas palavras, sorriu, sentindo o coração bater na boca.
— Au! Au! — fez ele, inclinado o corpo na direção do portão, tentando imitar o cachorro, um vira-lata de porte grande e, por sinal, muito bonito. — Au! Au! Grrr!
Depois continuou a andar, a passos lentos, enquanto ouvia o cachorro latir de modo enlouquecido.
— A cadela da sua mãe — repetiu para si mesmo, pensando como isso era sugestivo, já que se tratava de um cachorro. — A cadela da sua mãe — repetiu, e o sorriso se transformou numa gargalhada.
Quando estava próximo ao portão de casa, percebeu que do galho que segurava não restou folha. Arrancara todas. Jogou-o para trás, por sobre o ombro, antes de abrir o portão.
Ao abrir a porta de casa e entrar, viu Lívia sentada no sofá, lendo. Ela usava uma calça de moletom cinza-claro e uma camiseta azul. Gostava de usar essa camiseta quando estava em casa porque a achava confortável, mas nem sequer sairia ao quintal usando-a. Ela já havia passado da metade do livro que lia. Estava ansiosa para saber o desfecho, mas, mesmo estando envolvida pela leitura, marcou a página e fechou o livro.
Pedro trancou a porta, olhou para a filha e piscou-lhe um olho, e ela percebeu que ele estava um pouco ébrio.
— E a sua amiga?
Lívia largou o livro sobre o sofá e levantou-se.
— Faz tempo que foi embora.
— Eu demorei?
— Eu estava tão entretida na leitura que nem percebi a hora.
Pedro se aproximou da filha e beijou-lhe o rosto, orgulhoso.
— Teve alguma ideia pra começar a escrever seu livro?
— Não, não tive, mas por que a pergunta?
— Por nada — desconversou. Achou melhor não dizer que havia comentado com Maldonha que ela pretendia escrever um livro. — Eu vi você lendo e lembrei. Só isso.
Lívia sorriu e o abraçou.
— Adivinha quem me ligou — disse ela, exultante.
— Quem? 
— O Roberto!
— Roberto… Roberto… — Pedro tentava se recordar.
— O Roberto foi quem me deu aquele celular.
— Ah, sim! — exclamou ele, enquanto caminhava em direção ao sofá, no qual se sentou. — Pelo seu rostinho de felicidade, ele chamou você pra sair, não foi?
Lívia pegou o livro do sofá e sentou ao lado esquerdo do pai.
— Ele já havia me convidado algumas vezes. Na última, eu fiquei de ligar pra dar a resposta e acabei esquecendo. Foi no dia em que fomos ao cinema.
— Claro, claro! — disse Pedro, mudando a voz para fazer graça —, o Pedrão aqui é irresistível.
Lívia sorriu e bateu com o livro no braço do pai.
— Para de brincadeira, pai! — fez um instante de silêncio. — Tudo bem, eu confesso que fiquei tão feliz de sair com você que acabei esquecendo. O Roberto passou o dia ligando aqui pra casa…
— Coitado!
—… e não havia ninguém pra atender.
— Ele deve ter ficado muito chateado. Eu ficaria.
— Ficou mesmo — Lívia se mexeu no sofá e sentou-se sobre a perna direita para ficar quase de frente para o pai —, mas depois me deu um celular; assim ficará mais fácil pra ele falar comigo.
— Como é esse rapaz? — Pedro estava preocupado com a filha. Lembrava-se muito bem do último rapaz que ela namorou.
— Ele é um colega de turma na faculdade. É legal. É bonito!
Pedro pôs a mão direita no rosto da filha. Os olhos dela brilhavam ao falar do rapaz.
— Cuidado pra não se machucar, meu bem — disse ele, em tom carinhoso. Estava realmente preocupado, mas reconhecia que a filha sabia se cuidar.
Lívia beijou o rosto do pai e ficou olhando-o por alguns segundos. Depois, dizendo que o amava muito, abraçou-o com muita força.
— Eu também amo você — secundou ele, sentindo uma inexplicável sensação de perda no peito.
Após o abraço, Pedro levantou-se e subiu para tomar banho. Lívia voltou à leitura, louca para terminar logo de ler o livro.
Pedro passou tanto tempo no banho que Lívia não estava mais na sala quando ele saiu do banheiro. Depois de tirar o roupão, ele vestiu apenas uma bermuda e ficou sem camiseta. Com os cabelos ainda molhados e despenteados, foi ao quarto da filha. A porta estava apenas encostada, e a luz, acesa; Lívia dormia. Adormecera com o livro aberto sobre o peito. Pedro pegou-o com cuidado, olhou o título, Contágio Criminoso, e com um marcador de páginas com um desenho das Meninas Superpoderosas, que estava sobre a cabeceira da cama, marcou a página, fechou o livro e colocou-o sobre o criado-mudo ao lado. Contemplou por um instante a filha e lembrou-se de quando ela era pequena, e ele contava-lhe histórias infantis para dormir, que nada se assemelhavam com O Cemitério ou O Iluminado, obras de Stephen King, que ela lera recentemente.
A Valsa. As taças de vidro, foi o que ocorreu na cabeça de Pedro, enquanto colocava um lençol sobre a filha. Depois se afastou, apagou a luz, saiu e encostou a porta devagar para não fazer barulho. Novamente uma sensação de perda apertou-lhe o peito e um calafrio envolveu-lhe o corpo.
O que está acontecendo com você, Pedro? O quê?
Em meio ao pensamento, foi para o quarto, caminhou para o banheiro, no qual acabara de tomar banho, pegou a toalha e secou os cabelos. Enquanto olhava para o espelho, tentava organizar os pensamentos. Tudo o que ouvira de Maldonha lhe havia tirado o sono; estava elétrico demais para poder dormir, e, para piorar, o salame lhe havia dado uma azia tremenda. Sabia que não deveria comer coisas do tipo, pois sempre sentia essa queimação que estava sentindo.
Antes de se deitar, foi à cozinha; não estava aguentando aquele gosto de salame que a cada instante subia-lhe pela garganta em doses amargas. Sobre a geladeira estava guardado um sachê de antiácido. Pegou-o e despejou-o dentro de meio copo com água. Ficou à espera da completa dissolução, enquanto observava as bolhas formarem uma fina espuma que subia até quase a borda do copo. Em seguida, virou o líquido garganta abaixo em grandes goles. Resmungando, voltou para o quarto.
Enquanto subia a escada, limpou os lábios com a mão.
No quarto, deitou-se e manteve apenas o abajur ligado à sua esquerda. Talvez, se tivesse bebido um pouco mais, pudesse dormir sem ter de ficar pensando no que Maldonha lhe dissera. Sua mente remexia nas duas histórias que ouviu dele no Texas e nas coisas que lhe disse quando estavam sozinhos. Pensava e virava de um lado para outro, sonolento. Já a caminho do inconsciente, a voz do velho era um ruído em sua mente. Suposições sem nexo passavam-lhe pela cabeça uma após a outra, já desbotadas, quase sem foco, em meio ao sono que o fazia cochilar. Dormiu outra vez com a luz do abajur acesa. Foi um sono ininterrupto e sem sonhos.


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