Quando Maldonha parou de falar, todos continuaram
De certo modo, todos
pareciam impressionados com a história. Pedro estava fascinado, mas tentava não
demonstrar isso. Somente depois de Maldonha parar de falar é que ele tomou um
gole de chope. Engoliu a bebida à força e por pouco não a cuspiu, pois ela
havia esquentado no copo e perdido a fermentação.
— Ei, Gringo, me dá outro
chope! — pediu ele, ao derramar a bebida na pia com a mão por sobre o balcão.
— Vai ser uma honra
dançar uma…
— Não zombe! Isso não é
brincadeira! — Maldonha interrompeu o que Marsílio diria.
— Mas não estou zombando.
Apenas ia repetir o que disse o… o Diabo… ou sei lá quem disse isso!
— Ele próprio — disse
Maldonha, soltando em seguida uma nuvem de fumaça pelas narinas. — O Diabo, ou
um Demônio enviado por ele.
— Fascinante! — exclamou
Álvaro, enquanto erguia a caneca de chope como se fosse fazer um brinde. —
Realmente é fascinante — olhou para Maldonha. — Mas… diga aí, Maldonha, o que
aconteceu depois com Paulo?
— Isso é outra história —
respondeu Maldonha.
— Mas você não quer que a
gente acredite nessa história, quer?
Maldonha pigarreou, pegou
o copo e bebeu o resto de vinho em um único gole.
— Não — disse, segurando
o copo vazio sobre o balcão. — Eu não quero que acreditem em nada.
— Eu pensei que você quisesse
que a gente acreditasse — resmungou John, ao colocar sobre o balcão a caneca
com o chope que Pedro pediu. — Eu não acredito!
— Não estou pedindo que
acreditem — enfatizou Maldonha. — Não vou dizer que essa história é verdadeira
ou falsa, mas se eu tivesse que esconder algo… seria a respeito dos nomes; apenas
os nomes nessa história seriam outros, como de fato são.
Todos riram, menos Pedro.
Algo naquilo tudo lhe causou uma sensação estranha. Não que acreditasse
piamente na história, não era isso; era algo inexplicável, algo que o fazia
suar como se a temperatura tivesse subido uns cinco graus, ou mais. Olhou para
os amigos, que riam, e depois bebeu todo o chope de uma única vez, sem tirar a
caneca da boca.
— Você pensa que assusta
alguém com essa conversa de dançar uma valsa com… — esbravejou John, tentando
achar o termo adequado para concluir a frase. — Com essa… essa coisa… o Diabo,
a noiva que era o Diabo… sei lá o quê? Você pensa, Viúvo?!
Maldonha ficou em
silêncio.
— Hein, Viúvo?! —
insistiu John, com uma austeridade quase incontrolável; ele sabia que Maldonha
havia contado a história direcionada ao que ele havia dito a Afonso sobre
mandar lembranças ao Diabo e, de alguma forma, sentiu-se ofendido, incomodado.
— Se eu tivesse um único filho, contaria essa história pra ele dormir e, com
certeza, depois de rir muito, ele dormiria tranquilo.
Maldonha fixou os olhos
em John à espera de que ele continuasse a esbravejar, mas John ficou quieto,
devolvendo o olhar. Ficaram assim por alguns instantes, como se tentassem
descobrir através dos olhos o que um estava pensando do outro. Já os demais não
sabiam o que dizer, mas Pedro aproximou-se de Maldonha e com indulgência disse:
— Vamos parar com isso,
pessoal — em meio a um sorriso amarelo, ele pôs a mão sobre o ombro de
Maldonha. — Estamos aqui pra nos divertir.
— Conta outra história,
velho! — atacou John, sem dar a mínima para o que Pedro acabara de dizer. —
Assim quando eu resolver ter um filho, poderei escolher uma das suas histórias
pra contar pra ele dormir. Esse tal de Paulo tinha razão, pra que ter medo do
Diabo?! Pra quê?! Se eu não tiver medo dele, o que ele vai fazer? Pôr fogo no meu bar? É isso?! Pôr fogo no meu bar?! Pois que bote, então!
Maldonha soltou o cigarro
no chão, apagou-o com o calcanhar da bota mal engraxada e, em tom de
advertência, disse:
— Na multidão de palavras não falta transgressão, mas o que
modera os lábios é prudente — fez uma pausa enquanto colocava a mão no bolso da frente da
calça para retirar algo. — Provérbios dez, versículo dezenove — encarou John
por alguns segundos e bateu com a mão esquerda espalmada sobre o balcão, no
qual largou uma nota de dinheiro, dizendo: — Pode ficar com o troco… E modere
suas palavras, pois elas, meu caro amigo, têm poder. E você não tem mais idade pra
ser pai.
— Você é um doente, velho
maluco! — esbravejou John. — Um velho demente!
— Lembre-se sempre das
coisas que você disse. Elas ganharão forma e vão voltar pra você. Pode esperar
que um dia elas voltam — ao dizer isso, Maldonha deu as costas e seguiu
caminho.
— E a esposa, vai bem?! —
gritou John, e Maldonha olhou para trás, com um misto de tristeza e raiva no
olhar.
Todos olharam para John
numa espécie de reprovação.
— Isso foi cruel, John —
ponderou Pedro. — Não deveria ter dito isso.
John pegou o dinheiro
sobre o balcão olhando para o velho, que caminhava de modo trôpego em direção à
porta do bar, sem olhar para trás.
Por alguns instantes, o
silêncio tomou conta do local. Todos tinham algo a dizer, mas, sem explicação,
preferiram guardar para si próprios como se não conseguissem expressar em
palavras o que estavam sentindo. Também não havia o que comentar, e se o
fizessem seria apenas para dizer que, apesar de muito interessante, aquela
história não passava de uma invenção de Maldonha. Já Pedro, embora fizesse o
possível para não demonstrar, era o único que parecia ter levado Maldonha a
sério. De alguma forma, a história mexeu com ele, deixando-o extasiado,
pensativo, como se quisesse relacioná-la a alguma coisa, mas na cabeça apenas
surgiam hipóteses à deriva, em um imenso mar de incertezas.
— Vê uma rodada por minha
conta… pra quebrar esse clima chato… — disse Álvaro, ao bater no balcão com a
palma da mão direita para chamar a atenção de John.
Beberam essa rodada, e
outra, e mais outra, até que ficaram bêbados. Nenhum deles fez menção de
comentar o ocorrido entre Maldonha e John, mas estavam certos de que tudo
ficaria por isso mesmo, sem mais personagens, intrigas ou provocações. Havia
sido uma discussão isolada, pelo menos era o que esperavam.
Ao cabo das rodadas de
chope, todos foram embora.
— Posso deixar o carro na
sua oficina, Afonso? — pediu Álvaro, voz ébria, enquanto saíam do bar.
— Está tão ruim assim pra
dirigir? — brincou Afonso, e sua voz também denunciava o estado de embriaguês.
— Pra dirigir por longo
tempo… sim.
— Homem prudente —
gracejou Pedro, dando-lhe umas tapinhas nas costas.
— Pode sim, sem problemas
— consentiu Afonso.
Pedro e Marsílio seguiram
a pé. Os outros dois entraram no carro, Álvaro ao volante. Dirigir bêbado por alguns
metros até a oficina do amigo, que ficava a uns cem metros do bar, do outro
lado da rua, não o faria perder a habilitação, mas dirigir por quase meia hora seria
assinar um atestado de burrice, e ele não estava a fim de se aborrecer por
causa de uma tolice, ou ainda, na pior das hipóteses — não que fosse descartada
—, poderia sofrer um acidente. Tudo foi decidido de maneira sensata e, ao chegar
à casa de Afonso, Álvaro deixou o carro na oficina, chamou um táxi e foi
embora.
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